quinta-feira, 25 de abril de 2013

O CIRCO








A vila dormia. Como sempre dormira, desde seus primórdios, desde que as pequenas cabanas haviam sido escoradas de pau a pique, o barro das paredes endurecido e o sapê as abrigado da chuva e do frio da noite.

Lentamente, o casario foi-se transmutando em casebres de tijolo, porta e janela sem contornos retos, toscas telhas mal encaixadas, permitindo que sol e lua desenhassem figuras no chão de terra batida e gotas de chuva salpicassem os poucos pertences de uma mobília rústica.

Depois, devagar, avançou. A primitiva agricultura de grãos comestíveis foi alargando suas fronteiras pelo ermo inculto. Pastos apareceram, gente chegou, carros de bois gemiam pela estrada precária até terras vizinhas. Uma igreja brotou singela, uma escola nasceu no alto da colina, o cemitério enterrou seus primeiros mortos. 

Mas, por mais que se esforçassem, os habitantes da pequena aldeia não conseguiam ser felizes. Tinham sempre de lutar contra uma natureza ingrata e caprichosa, que com um simples sopro destruía colheitas inteiras, secava os açudes onde o gado acabava por definhar até a morte, castigava os telhados com granizo ou estorricava jardins criados com dedicação e esmero.

Aos poucos, o povo entristecido e cansado começou a acreditar que alguma pérfida maldição assombrava o vale de contornos doces e o suave regato que o banhava. Haviam combatido, esperado, murmurado promessas contritas, ajoelhado ao altar pedindo clemência. Debalde.

Na manhã daquele primeiro dia de inverno, cujos malsinados efeitos começavam a enregelar a pele e as almas, o torpor da derrota de há muito já havia drenado as últimas gotas de ilusão. O orvalho por fim deixara de cair nas flores secas do desespero.  O povo dormia, exausto e descrente.

Mas, apesar de frio, o sol nasceu, como sempre fazia. Mais um dia começava e, um por um, os habitantes foram despertando para suas rotinas sem cores, seus afazeres repetidos e inúteis, seu dia-a-dia acabrunhado pela sorte sovina. Despertaram sonâmbulos como sombras encurvadas e foram tentar vencer mais uma jornada sem fé.

De repente, uma trombeta soou pelos lados da serra que servia de entrada à aldeia. A notícia se espalhou logo. O Circo estava chegando!

Em minutos, a criançada correu lá pros altos do cemitério e postou-se em ambos os lados da rua de terra. As janelas das primeiras casas logo encheram-se de moradores, arrancados de seu desânimo pela voz potente do Mestre de Cerimônias, apregoando as funções do espetáculo que iria apresentar no dia seguinte.

«Atenção, muita atenção, Senhoras e Senhores. O Gran Circo Dellavida está chegando! Preparem-se para o maior show da Terra. Os maiores artistas do Mundo. A grande vidente Madame Verité, que dirá o que lhes vai na alma. O famoso ilusionista Pangloss, cujas artes mágicas transformarão seus dias em perene alegria. O destemido domador de feras reais e imaginárias Il Grande Testafresca. A engraçadíssima dupla de palhaços Alto e Astral, que os farão debochar da adversidade. E, o maior número de todos, a família de equilibristas de fama internacional Os Incríveis Semmedos, que mostrarão como caminhar juntos sobre um fio de esperança. Não percam! Amanhã, em soirée única, às sete da noite na praça!»

Era um final de tarde quando o Circo deixou a aldeia. Ao espetáculo do dia anterior, todos haviam comparecido. E agora acenavam, enquanto o desfile de despedida subia a colina. Quando a última carroça sumiu no topo, Vênus brilhava num céu vespertino e sem nuvens.

Quem notou a mudança foi um ambulante que havia passado pela vila meses antes e lembrava-se da imagem de uma comunidade moribunda. Tudo havia mudado. As casas estavam pintadas de novo, a igreja substituíra o sino quebrado, havia flores em profusão na praça e sorriso no rosto das crianças. Perguntou às pessoas que passavam o que causara a grande transformação. Foi embora sem entender a resposta.

Muitos passarão pela vida sem ver o Circo. Talvez porque não o procurem direito. Talvez porque não acreditem nele e, mesmo vendo-o, não o reconhecem. Mas, se um dia a vida tiver perdido o juízo e noite não prometer amanhã, apurem os ouvidos. Quem sabe não ouvem a voz do mestre de cerimônias, anunciando com garbo:

RESPEITÁVEL PÚBLICO...


Oswaldo Pereira
Abril 2013


4 comentários:

  1. Que maravilha!!Muito bom.Me lembrou Paraguaçu e numa linha direta nos traz à realidade. Bj.

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  2. Gostei muito !

    Eu sempre estou tentando ouvir a voz do mestre de cerimônias ... quando a gente consegue escutar a chamada, quem sabe fica mais alegre e feliz ?!

    Afinal o circo nos "vende" alegria, se é possivel compra-la !

    A+
    Fi²

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  3. Ludico.......o despertar em cada um o seu circo imaginário.....adorei

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  4. Caro Primo,

    Nem seria necessário comentar que, seguindo a chamada Respeitável Público!, ouvi os acordes de Rosamunde, ou, para nós, Barril de Chopp, música que, invariavelmente era a trilha sonora dos circos de minha infância.

    Geraldo

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