segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

2019



Quando criei este Blog em fevereiro de 2013 (Deus meu, como o tempo passa), imaginava-me um comentarista cuja verve iria atrair milhares de atentos e sequiosos seguidores, todos ávidos para devorar as ideias e as palavras produzidas por meu inesgotável manancial literário. Ah! as sandálias da humildade. Depois de quase 7 anos, os meus pés estão descalços e esfolados pelo chão áspero da realidade.

In illo tempore, e até recentemente, cria-me acorrentado a uma obrigação anual de brindar afortunados leitores com as minhas esclarecidas análises sobre o ano que ia-se findar - as famosas (e ubíquas) Retrospectivas, praga que acomete, todo final de dezembro, cronistas, editores, jornais, canais de TV e blogueiros, como este seu incorrigível criado. E, assim, vinha repetindo o ritual, a cada final de ano.

Desta vez, pensei em ser diferente e pular o evento. Afinal, quem iria perder seu precioso tempo, antenado em catadupas de imagens captadas pelo Instagram, por textos microscópicos e telegráficos do Twitter e pelos expressivos emojis do Facebook e atentar para um palavrório meu sobre um ano que morre? T’esconjuro.

Mas, o fascínio do calendário me é irresistível. O tempo envolto em cápsulas de 365 (ou 366) dias acaba por suscitar uma pausa de reflexão. E de perguntas. Por que este ciclo, que une convenções a ritmos imutáveis da Mãe Natureza, exerce tanta devoção e tanta expectativa nas gentes? Por que o término de um conjunto de quatro estações e o início de outro enchem-nos de resoluções e esperanças?

Não vou, entretanto, falar do mundo, do que ocorreu de importante no globo. Disto, a Globo, e milhares de outros canais de informação encarregar-se-ão. Não quero ser bis in idem, chover no molhado,

Como eu mesmo já disse por aqui, a história de um determinado ano acontece em vários planos. Ele pode ser lembrado por um acontecimento planetário ou por uma estória individual, particular. Coisas que só a nós causaram impacto. Casamento, nascimento de filhos, primeiro beijo, primeira transa, primeiro emprego.

Para mim, por exemplo, 2019 foi minha glória como torcedor e adepto. No início do ano, o querido Flamengo foi campeão carioca. Viajei para Portugal a tempo de ver o meu Benfica sagrar-se campeão português. A seguir, Portugal ganhou a Liga das Nações e o Brasil a Copa América. Regressei ao Rio para assistir novamente o Flamengo conquistar, com 4 jornadas de antecedência, o Campeonato Brasileiro, 24 horas depois de também ter vencido a Copa Libertadores. Vivesse eu mais 50 anos, e alguém me perguntasse como fora o longínquo 2019, certamente esta seria a sua marca para mim.

E, assim, o ano terá mais de 7 bilhões de resenhas. Reveja a sua. E, como cada um destes bilhões, sinta a esperança de um novo ciclo, de um novo tempo e comece a escrever sua nova estória anual assim que os ponteiros se juntarem na vertical na noite do dia 31.

UM FELIZ 2020!

Oswaldo Pereira
Dezembro 2019

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

DOIS PAPAS





Há tempos, escrevi um texto aqui no Blog em que falava sobre certos artistas e sua capacidade de encarnar um personagem da vida real. E apontava alguns cuja semelhança física com pessoas conhecidas deveria ser aproveitada pelos responsáveis do casting na hora de escalar o time de atores. Assim, mencionei os que eu achava perfeitos para certos papéis, como Cuba Gooding Jr. na pele de Louis Armstrong, Kevin Kline como Errol Flynn, Jean Dujardin para representar Gene Kelly e, last but not least, Jonathan Pryce como o Papa Francisco.

No mesmo escrito, eu também chamava a atenção para atores que, embora com pouquíssima ou até nenhuma parecença com a figura representada, e mesmo sem utilizar qualquer truque de maquiagem, faziam-nos ver aquela figura. Neste grupo, eu me lembrava da simbiose de Leonardo DiCaprio/Howard Hughes e Cate Blanchet/Katherine Hepburn (em The Aviator), ou Helen Mirren/Elizabeth II (em The Queen), entre vários outros.   

Como não acredito que alguém da Netflix tenha tomado conhecimento desse meu escrito (ou deste meu Blog, para falar a verdade), foi com uma boa dose de satisfação que soube do lançamento do filme Dois Papas (The Two Popes). Nele, não só a minha escolha para fazer Francisco foi contemplada, como a escalação de Anthony Hopkins para representar Bento XVI veio confirmar, pela enésima vez, seus insuperáveis talentos de mimetismo. Com alguns segundos de projeção, o espectador deixa de ver os atores e passa a enxergar somente Bergoglio e Ratzinger.

A produção cobre o interregno que vai da eleição do cardeal alemão à do argentino, ou seja, a história recente da Igreja Católica, um crucial período de questionamentos, recriminações e enfrentamentos. No pano de fundo, estão os problemas do próprio clero, a ocultação dos casos de pedofilia, os escândalos do Banco do Vaticano, as ligações com regimes ditatoriais, a perda de fiéis e a necessidade de reformas. Na linha de frente, o encontro de duas personalidades diametralmente opostas, visceralmente engajadas em linhas de pensamento contrárias relativas a assuntos de doutrina e a respeito do futuro da Igreja.

A aproximação dos dois dá-se, por iniciativa de Bento XVI, no momento em que este prepara-se para renunciar ao trono de São Pedro. Nesta época, descontente com os rumos conservadores defendidos pelo Vaticano, o Cardeal Bergoglio deseja, também ele, abdicar de seu posto episcopal.

Nesse contexto, a magistral interpretação de Pryce e Hopkins faz com que um roteiro constituído quase que exclusivamente de diálogos e de cenas simples brilhe intensamente. Não vou contar mais nada para não estragar a festa. Mas, aqui vai uma recomendação. Católico ou não, interessado ou não em história religiosa, procure não perder o filme e (grande pecado) as atuações inesquecíveis destes dois magos da cena cinematográfica mundial.

Oswaldo Pereira
Dezembro 2019

domingo, 22 de dezembro de 2019

FELIZ NATAL 2019






FELIZ NATAL PARA TODOS!

E, para manter a tradição dos natais passados, aí vai o Conto de Natal de 2019.

Mamãe Noel acordou. Madrugada. Olhou para o lado da cama. O marido não estava. E ela sabia o porquê.

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Tudo começara há um mês e meio. No dia seguinte ao Halloween, o primeiro sinal. Nenhuma carta. O sub encarregado da recepção postal estranhara. Dois dias depois, ainda com as caixas de entrada do correio vazias, resolveu falar com o chefe da repartição. Após alguns minutos em silêncio, este dissera: Não deve ter problema. O pessoal ainda deve estar se divertindo com as bruxas. Vamos esperar...

No dia 15 de novembro, soou um primeiro alarme. Convocados para uma reunião, os diversos superintendentes foram para a grande Sala da Situação. Sentaram-se ao redor da imensa mesa. A preocupação era evidente nos cenhos franzidos. Papai Noel chegou.

«HO!HO!HO! everybody... Então, como estamos?»
O Chefe dos Correios pigarreou e começou, soturno.
«Mal, é quer dizer... Isto nunca aconteceu. Falta um mês e dez dias para o Natal e nenhuma, eu repito, nenhuma correspondência chegou até nós. Não consigo encontrar uma explic...»
O Supervisor dos Embrulhos Coloridos, um duende brincalhão e otimista, atalhou.
«Ora, não seja tão alarmista. Atrasos na correspondência não são nenhuma tragédia. Há gente que deixa tudo para a última hora. Os brasileiros, por exemplo. Suas cartinhas só chegam lá para o dia 23 de dezembro. Portugueses, italianos, os latinos em geral não ficam muito atrás...»
O Gerente da Linha de Produção de Bonecas Articuladas, um elfo de óculos grossos e pragmático, retrucou.
«Sim, mas e os alemães? Seus pedidos começam a chegar logo depois da Páscoa. Os escandinavos, assim que o verão vem e vai naquela quarta-feira de agosto, já mandam suas mensagens. Há razão para alarme, sim! Eu acho...»
Papai Noel tossiu suavemente.
«Desculpe interromper... Seção de e-mail?» E olhou para uma moça de cabelos pintados de vermelho.
«Nada, Mestre...»
Noel recostou na poltrona de costas altas. Ficou algum tempo em silêncio. Depois, disse.
«Realmente, alguma coisa está fora do lugar. Temos de verificar. Pessoal das Relações Públicas. Quero que vocês investiguem. Procurem averiguar o que há. Nova reunião daqui a dez dias. Boas Festas.»

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Mamãe Noel resolveu levantar-se. Sabia onde encontrar marido. Quando abriu a porta da grande sala, encontrou-o, de semblante amargurado, a olhar para o Relógio Calendário que dominava a parede do fundo. Debaixo do letreiro com a data, outro maior ainda. Em neon verde, anunciava N – 10. Dez dias para o Natal. E nenhuma cartinha chegara.

O resultado das pesquisas, apresentado pelo pessoal da RP após a reunião de novembro, eram desalentadores. No fundo, ele se resumia a alguns nomes. Amazon, E-Bay, AliBaba, e outros sites menores. O mundo estava coberto pela Internet.  Ninguém mais utilizava o tradicional ato de escrever sua lista de presentes e mandar para o Bom Velhinho. As crianças do planeta tinham agora suas wish lists nas plataformas comerciais. Tudo ia para as grandes nuvens virtuais e dali saiam os sedex dos pacotes natalinos. Trenós, renas, meias em cima das lareiras, descidas pelas chaminés, tudo isso ficara obsoleto. Noel também.

Mamãe Noel tocou o ombro do marido.
«O mundo mudou, querido. Não há nada que possamos fazer. Vamos dormir. Ainda é muito cedo.»

Horas depois, o dia ainda não raiara quando as campainhas começaram a tocar. Todas. Uma grande movimentação parecia ter tomado conta de tudo. Mamãe e Papai Noel foram acordados por alguém que esmurrava a porta do quarto. Era a Vice-Diretora de Operações, uma fada já entradona que vivia perdendo sua varinha de condão. Estava agitadíssima e trazia um barrete vermelho por sobre os cabelos desalinhados. Papai Noel ainda tentou falar.
«Não precisa mais usar este chapéu. Nós...»
Ela interrompeu.
«Venham rápido!»

Quando chegaram à Sala da Situação, a efervescência era enorme. Todos olhavam para as gigantescas telas de televisão. Nelas, repórteres e âncoras, comentaristas e operadores de câmera transmitiam dos quatro cantos do planeta algo de extraordinário. As nuvens haviam sido atacadas e destruídas.
«Nuvens?», perguntou Noel. Alguém mais próximo explicou.
«Sim! As nuvens virtuais que guardam os dados digitais de todo o mundo. Hackers invadiram-nas e as apagaram. A Humanidade está em pânico!»

Noel levou algum tempo para digerir a imensidade do problema. Foi só quando Mamãe Noel falou de mansinho.
«Agora, quem quiser ganhar presentes de Natal vai ter que usar o método tradicional...»
Nesse exato instante, o Chefe da Recepção Postal entrou correndo e gritando.
«Ei, pessoal! Estão chegando as cartas. São milhares por minuto. O que vamos fazer?»
Os olhos de Noel brilharam. Sua voz ecoou potente por toda a grande sala.
«HO! HO! HO! everybody. Vamos trabalhar!»

Oswaldo Pereira
Dezembro 2019

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

TERRAPLANISMO

FERNÃO DE MAGALHÃES
Neste meu Brasil do século 21, a palavra da moda é terraplanismo. O termo, que supostamente serve para definir a crença na teoria de que a Terra é plana, dominou o fogo cruzado na área da cultura. Pode parecer, mas infelizmente não é, uma piada. Principalmente no mesmo momento em que o mundo mais sério comemora os 500 anos de um dos maiores feitos náuticos da História – a Circunavegação.

Que a Terra não era plana, isto já se sabia desde antes da viagem de Colombo. Os portugueses da Escola de Sagres possuíam, inclusive, medições extremamente aproximadas do tamanho do globo terrestre, que era muito maior do que o navegador genovês imaginava. Sabiam que ele não chegaria às Índias no tempo previsto e também desconfiavam que havia outras terras pelo caminho. Recusado por Portugal, Colombo foi buscar apoio na Espanha e o resto é História.

Outro que, anos depois, também decidiu procurar os espanhóis, foi Fernão de Magalhães. Mas, por outros motivos. Nascido em família nobre e abastada do Minho, em 1480, Magalhães teve educação esmerada e proximidade suficiente do Poder para engajar-se na maior aventura de seu tempo – os Descobrimentos. Em tudo semelhante à corrida espacial que contrapôs Estados Unidos e União Soviética nas décadas de 1950 e 1960, a disputa entre Portugal e Espanha nos séculos XV e XVI absorveu a intelectualidade, o engenho e os recursos financeiros das duas maiores potências mundiais de então. Em causa estava o domínio do comércio de especiarias, introduzidas na Europa no tempo das Cruzadas e transformadas em riqueza dada a sua utilidade como conservante de alimentos, medicamentos e princípio ativo de perfumes e afrodisíacos.

Com o auxílio dos sábios judeus que a Inquisição havia expulsado do país vizinho, Portugal chegou ao estado da arte no desenvolvimento de instrumentos de navegação e na técnica da construção naval, e saiu na frente da disputa. Em várias expedições descobriu o caminho para as Índias (as verdadeiras) e para todo o Oriente. No final da primeira década do século dezesseis, o país controlava praticamente sozinho as relações comerciais na região.

Este foi o período em que Fernão de Magalhães aperfeiçoou seus conhecimentos de navegador e sua sina de aventureiro. Esteve no Ceilão, em Goa, em Malaca, em Calicute, em Ceuta e nas Molucas, ou seja, por todo o lado onde Portugal exercia sua presença. Participou em combates, foi ferido e ganhou promoções.

Se foi inveja, não sei. O fato é que uma rede de intrigas começou a acusar o jovem navegador de comércio ilegal com os mouros em Marrocos. Quando Fernão retornou a Lisboa em 1515, seu prestígio havia desabado e nem o Rei D. Manuel quis saber dele. Em suma, estava desempregado. Foi então que tomou conhecimento de um projeto ambicioso dos rivais peninsulares – chegar ao Oriente pelo Ocidente, por fora do Atlântico português, que terminava na fronteira marinha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas. A frustração com o fracasso de Colombo ainda doía no orgulho castelhano.

Magalhães conquistou o comando da expedição e, após um largo tempo de marchas e contramarchas, no dia 20 de setembro de 1519, partiu, capitaneando 5 naus e 250 homens. Uma empreitada correspondente hoje a uma viagem a Marte.

Em dezembro, depois de atravessar o oceano rente à linha do equador e descer a costa brasileira, chegou a uma linda e despovoada enseada que, anos antes, Gaspar de Lemos batizara de Rio de Janeiro. E continuou rumo sul, procurando uma passagem para um outro mar, aquele que o levaria ao reino das especiarias. Acabou encontrando-a nos confins gelados da América do Sul. O estreito que hoje leva o seu nome foi a porta para entrar no infindável oceano que ele próprio chamou de “pacífico”.

Nesse meio tempo, entretanto, havia perdido a nau “Santiago”, que soçobrara, e a “San Antonio”, mercê de um motim que obrigara a embarcação a retornar à Espanha. Cinco meses de céu, água e horizontes vazios até que, em abril de 1521, as três naus chegaram a Cebu, onde hoje são as Filipinas. E ali, num confronto com uma tribo local, Fernão de Magalhães viu terminar seu sonho e sua vida.

Sob o comando de Juán Sebastián de Elcano, a pequena frota acabou chegando às ambicionadas Molucas, mas o desgaste da viagem pouco ajudou os espanhóis a promover algum comércio sustentado na região. Restava, agora, voltar para casa. Mais perdas e desvios pelo caminho fizeram com que só a nau “Victoria”, com apenas 18 tripulantes, chegasse a Sevilha em setembro de 1521, três anos após haver partido.

O esforço rendera pouquíssimos frutos materiais. Um furioso Carlos V, melancolicamente, recusou pagar os sobreviventes. Só depois é que o imenso significado do feito foi aparecendo. “Victoria” havia sido a primeira embarcação a dar a volta ao mundo e provar, definitivamente, que a Terra era redonda...

Oswaldo Pereira
Dezembro 2019

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

DADOS



Com os assuntos do presente envoltos numa nebulosidade enjoada, fica complicado escrever sobre eles com um mínimo de discernimento. E, quando a nuvem se dissipa, revela-se um perturbante panorama que mistura paixões e fake news, discórdias e baixarias, punhos fechados e ranger de dentes. Para manter um pouco a sanidade, resolvi voltar ao passado e republicar um texto que escrevi há seis anos e meio, em que pus o título de Quadrinho na Parede. Ei-lo, novamente.

"Na parede da varanda da casa de meus pais, havia um pequeno quadro. Era diferente de todos os outros, porque, no lugar duma pintura ou uma aquarela, tinha a metade de um copo de couro em alto relevo, do qual dois dados, também em relevo, projetavam-se para fora, como se tivessem sido arremessados no ato de jogar.  Logo abaixo, havia uma inscrição.

La vida es como los dados. Tiene sus puntos marcados.

Como, durante anos, vi esta frase praticamente todos os dias, nunca cheguei a me demorar sobre seu significado. Para mim, que com ela convivi desde criança até deixar a casa paterna aos vinte e três anos, era uma simples peça de decoração.

Agora que tenho muito mais passado que futuro, me pego a olhar para trás com frequência. E, acreditem ou não aqueles que ainda não chegaram neste ponto, com o maravilhoso sentido de perspectiva que a simples acumulação de várias décadas confere aos mais velhos. Esta “visão de cima”, talvez o mais precioso componente do que os americanos chamam de gray power, ou o poder dos grisalhos, nos dá a acuidade visual de poder entender o que, na vida, é importante e o que é supérfluo, embora este “presente” só nos seja regalado quando já pouco podemos fazer para reparar erros passados. Mas, se aceitarmos que esses erros foram exatamente as pedras que construíram a “torre” de onde agora contemplamos o mundo, a perspectiva fica ainda mais nítida. E aí, surge novamente a frase do pequeno quadro.

“A vida é como os dados; tem os seus pontos marcados...” Será?

De caras, parece uma afirmativa fatalista. Ou seja, a vida é aquilo que a fortuna (na falta de outro deus) nos reserva. Maktub. Assim estava escrito.  A linha é traçada antes de nascermos e dela não podemos fugir. Os pontos dos dados são aqueles e, por mais que queiramos driblar a sorte, o resultado não muda e o que determinam será o nosso caminho entre os dois invólucros que marcam os nossos extremos. O útero e o túmulo.

Mas, se olharmos bem para o quadrinho, ele não torna implícito que o resultado daquela virada do copo é a única. A vida, como os dados, pode ter seus números estampados em cada uma de suas faces, mas a combinação que fica na parte virada para cima pode mudar cada vez que o copo os arremessa na mesa do destino. Viver seria então uma sucessão de jogadas, uma série de apostas, um contínuo girar da roleta, um novo embaralhar de cartas a cada momento nos quais, nós, os jogadores, teríamos a oportunidade de mudar o jogo.

O que vi, e posso contar, é que às vezes parece uma coisa, às vezes outra. Há épocas em que o inevitável nos torna impotentes, em que tudo parece ter sido engendrado por uma divindade imutável e imune às nossas esperanças ou ao nosso desespero. Há outras em que o comando parece estar na nossa mão, em que capitaneamos o barco com a certeza dos iluminados, dos invencíveis e dos eternos.

Se sei a resposta? Talvez. Mas é provável que ela sirva só para mim, pois é fruto das minhas vivencias e andanças. E, se a compartilhar, talvez estrague a chance que cada um tem de decifrar por si só o mistério da vida e dos dados."

Você decifrou?

Oswaldo Pereira
Dezembro 2019

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

BEN-HUR - 60 ANOS


Em 1973, uma das grandes atrações do Carnaval carioca eram os concursos de fantasia. Um território mágico, em que reinavam grandes figurinistas, como os inesquecíveis Clóvis Bornay, Mauro Rosas e Evandro Castro Lima, e alimentava, pelo menos uma vez por ano, uma coorte de costureiras, maquiadores e encenadores. Além de uma ampla cobertura da imprensa, que promovia o evento como um dos imprescindíveis pontos de comparecimento das celebridades que aportavam no Rio durante os festejos.

No ano citado, o concurso já havia se deslocado do Theatro Municipal para o Hotel Glória. E, como amigos do seu Gerente Geral fomos, eu e minha mulher, uns dos felizes convidados para sentarmos na primeira fila da plateia.

Enquanto no palco desfilavam os suntuosos figurinos e o naipe de famosos vindos para o Carnaval (nesse ano, Rock Hudson capitaneava uma trupe de atrizes e atores hollywoodianos), nós passamos o tempo todo conversando com um casal de velhinhos americanos sentados ao nosso lado.

Por que eu estou contando isto? Porque há exatos 60 anos, estreava nos cinemas dos Estados Unidos um dos maiores blockbusters da história, Ben-Hur, dirigido por William Wyler, nada mais nada menos do que simpático velhinho que acabávamos de conhecer.

O filme já nasceu destinado a ser superlativo em tudo. O enredo, baseado no romance de Lee Wallace escrito ainda no século XIX, tivera uma primeira versão para a telona em 1925, com sucesso moderado. Desta vez, Sam Zimbalist, o poderoso chefão da MGM, estava decidido a romper barreiras e colecionar recordes.

Foi um longo caminho e vários percalços, com problemas financeiros, equívocos de localização, troca de diretores e de roteiristas e aqueles criados pela própria dimensão do projeto, inédito para os padrões da época. De 1951 a 1958, foram marchas e contramarchas, idas e vindas, até que o desenho final da produção ficasse definitivamente definido, com Wyler assumindo a batuta.

Nesse meio tempo, vários galãs haviam sido cogitados, entre eles Stewart Granger, Robert Taylor e (imaginem) Marlon Brando, para o papel título, até que a escolha recaísse em Charlton Heston, ungido que estava pelo seu bíblico Moisés em Os Dez Mandamentos.

Foram então 15 meses de intensa filmagem, que demandaram 100 fabricantes de roupas, 200 camelos, 1.500 cavalos e 10 mil figurantes para reproduzir Judeia e Roma dos anos 30 da era cristã, com as espetaculares cenas de uma batalha naval (feita com miniaturas num descomunal tanque de água) e a fantástica corrida das bigas.  Só a pós-produção levou seis meses nas ilhas de edição, até que a versão definitiva com 222 minutos ficasse pronta em novembro de 1959.

Como Zimbalist imaginara, Ben-Hur obteve recordes de premiação nunca antes alcançados em Hollywood. Só da Academia foram 11 oscars, marca que seria empatada apenas por Titanic, quase 50 anos depois. Apesar de ter sido o filme mais caro até então (16 milhões em dólares de 1959), Ben-Hur pagou-se mais de dez vezes. Até hoje, é a segunda maior bilheteria da História (atrás de E O Vento Levou).

Um esforço desta dimensão não podia deixar de ter suas lendas paralelas. Uma delas, é o fato de que a vinheta de abertura de Ben-Hur é a única em que o famoso Leão da Metro não ruge. Wyler e Zimbalist concordaram que o rugido de Leo poderia evocar o sacrifício dos cristãos nas arenas de Roma, inadequado num filme sobre os primórdios do cristianismo.

Outra é sobre o relacionamento entre Ben-Hur (Heston) e o tribuno Messala (o ator inglês Stephen Boyd). De acordo com o enredo, os dois haviam sido amigos íntimos na adolescência e nutriam uma sólida admiração mútua. O filme inicia com o retorno de Messala à Judeia como Governador, depois de anos em Roma, e o feliz reencontro entre os dois amigos. Vistas hoje, estas cenas têm levantado cogitações sobre uma possível vertente homossexual desse relacionamento.

E há fundamentos para isto. No livro, a opção fica em aberto, até porque relacionamentos gays eram considerados aceitáveis na Roma antiga. Zimbalist e Wyler sabiam disso, mas, em 1959, seria impensável retratá-lo explicitamente. Resolveram, então, instruir os dois atores para deixarem isto no ar, com atitudes ambíguas. Só que recearam passar essa instrução a Heston, com medo que ele abandonasse as filmagens. A ideia foi passada apenas para Boyd. E é assim que os olhares de Messala são sempre mais doces do que a expressão de pedra de Ben-Hur.

Oswaldo Pereira
Dezembro 2019




 



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

JESUS



Segunda parte do Hino do Flamengo, composto pelo genial Lamartine Babo em 1945:

“Na regata ele me mata
Me maltrata, me arrebata
Que emoção no coração
Consagrado no gramado
Sempre amado, o mais cotado
Nos Fla-Flus é o ai Jesus!...”

Jorge Fernando Pinheiro Jesus é um português com sólida história no futebol de seu país. Na juventude, chegou a jogar pelo Sporting, mas seu destino estava mesmo fora, ou melhor, ao lado das quatro linhas. Treinou um bom número de equipes, até chamar a atenção quando levou o Belenenses a uma inédita final da Taça de Portugal. Do Restelo foi para o Minho, dando continuidade à sua série de vitórias e conquistas no comando do Sporting de Braga. Como não podia deixar de ser, logo um dos integrantes da tríade máxima do panorama futebolístico português chamou-o para treinador. Foi o Benfica. E, entre 2009 e 2015, Jorge Jesus comandou um dos mais vencedores períodos da vida benfiquista, quase comparável à Época de Ouro de Coluna, Torres e Euzébio. Foram 10 títulos, duas finais da Champions League e um rosário de recordes vitoriosos.

A missão seguinte não foi tão brilhante. Saindo do Benfica para o seu tradicional rival, Jesus não conseguiu reverter a situação de profunda crise em que vivia (e ainda vive), o Sporting de Lisboa. Acabou fazendo um acordo com o clube e foi para a Arábia Saudita. E lá, no início deste ano, uma improvável esquina do destino apareceu em seu caminho. O convite do Flamengo.

Não sei se Jesus imaginava a paixão em que iria mergulhar. O time havia saneado suas finanças e fizera um inteligente programa de novas contratações. A conquista do campeonato carioca, logo no início do ano, já dava indicações de que o trem rubro-negro deixara a estação em que amargara um insípido jejum de títulos. Estava ganhando movimento. Mas, precisava de mais velocidade. Precisava de um maquinista que soubesse disparar a pressão que vinha da caldeira. E, o que este novo maquinista fez, foi dirigir o comboio para além do limite de velocidade da linha. O trem agora parece voar.

Disciplina, plantel e inspiração. Com esta trinca de cartas, Jesus desembaralhou a monótona cena do futebol brasileiro, de partidas e mais partidas sem imaginação nem entusiasmo, de retrancas e caneladas, de passes para o lado. E mais. Sua obsessão com um esquema sempre ofensivo, ao mesmo tempo em que fecha os espaços na defesa, atraiu a admiração dos que se recordavam do espírito atacante que, por muito tempo, foi a característica do jogo brasileiro.

Lamartine adivinhou. O Flamengo de hoje é o Ai, Jesus.

Oswaldo Pereira
Novembro 2019

terça-feira, 5 de novembro de 2019

NAS RUAS


O mundo parece estar com febre. Dos gilets jaunes franceses, aos ninjas de Hong-Kong. Dos desconfiados eleitores bolivianos aos enraivecidos contribuintes chilenos. 1968 todo de novo.  Do burn baby burn dos guetos negros. Dos les jours em Mai de Paris.

Povo nas ruas. Uma onda cíclica que deságua por entre os canyons de concreto das grandes cidades. Um monstro icônico que rebate balas de borracha e inspira gás lacrimogêneo. Estaremos nós novamente sob o império das vontades das grandes marchas populares, as poderosas manifs de 50 anos atrás? Terá a moda voltado?

E o que ela hoje significa? Há meio século, o planeta experimentava um salto quântico. Moral e costumes davam uma acentuada guinada no conceito dos valores tidos como pedras basilares pela sociedade dita civilizada. Saindo da hecatombe da guerra, o comportamento certinho era o padrão default para um mundo cansado, mas esperançoso de um futuro tranquilo e regido pelos denominadores família, trabalho e, se possível, religião.

A contracultura da beat generation, o desencanto com o Establishment, a liberalização da pílula, a floresta mágica das drogas, a desconstrução da arte e os mantras hare-krishnas sobre a Era de Aquarius viraram, a partir do início da década de 1960, o mundo engomado e esterilizado, saído da Segunda Guerra Mundial e mantido refém do medo da Bomba, de pernas para o ar. Ir para a rua protestar era de riguer ou, melhor dizendo, IN.

Tudo indica que estamos em nova mudança de ciclo. Não sei que Era é esta, mas o milênio que nasceu sob a fumaça da Torres Gêmeas vem agitando suas bandeiras. A ferramenta do século, as Redes Sociais, já está mudando, como há 50 anos as flores nos cabelos, os patamares e as etiquetas de comportamento. Inclusive, e principalmente, na disseminação de percepções políticas antes só atingida por esforços imensos de coordenação. Hoje, bastam alguns cliques.

Assim, o povo está vindo de novo para as praças e avenidas. Menos românticos do que há 5 décadas. Mais conscientes, e, por isso mesmo, mais decididos, incansáveis e combativos. Não querem mais mudar o mundo. Seus objetivos são específicos, dizem respeito às suas necessidades e sonhos de agora, aos direitos que entendem como seus. Novos tempos.

Oswaldo Pereira
Novembro 2019

terça-feira, 22 de outubro de 2019

STF



Barbosa, Augusto e Juvenal, Bauer, Danilo e Bigode, Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico...
Ou ainda
Gilmar, Djalma Santos, Bellini e Nilton Santos, Zito e Orlando, Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagallo.
Mais uma?
Felix, Carlos Alberto, Brito e Piazza, Everaldo e Clodoaldo, Jairzinho, Gerson, Pelé, Tostão e Rivellino.

Brasileiros, desde o tempo em que a seleção era chamada de scratch, lembram destas formações. Perdedores em 1950, mas consagrados na Suécia em 1958 e no México em 1970, a escalação da equipe nacional de futebol era como uma prece, um mantra conhecido por toda a população.  Seus nomes evocavam, e ainda hoje evocam, o que de melhor tínhamos a cultuar. País do futebol. Embora um pouco depreciativo, o apelido reconhecia a nossa habilidade e a maestria no domínio da bola e rendia um certo ufanismo nos corações pátrios. Nomes inesquecíveis...

Hoje, principalmente depois da hecatombe frente à Alemanha na Copa de 2014, poucos são os compatriotas que conseguem recitar por inteiro o time nacional. Os deuses deixaram de andar pela Terra. Outras preocupações vieram diminuir o romantismo do futebol e, embora ainda pujante como esporte, saiu um pouco da cena brasileira. O Brasil vai entrar em campo. Mas, quem é mesmo que vai jogar?...

No entanto, hoje há um outro onze que está na boca do povão. Basta perguntar por aí, e a quase maioria vai entoar tintim-por-tintim seus nomes. Quem não sabe?

Gilmar, Fux e Marco Aurélio, Fachin, Alexandre e Celso, Weber, Lewandovsky, Toffoli, Barroso e Carmen Lúcia.

Para os meus abnegados leitores que não moram no Brasil, eu explico. Este plantel é a constituição atual do Supremo Tribunal Federal, o órgão máximo da justiça brasileira. Vocês, então, poderão pensar que nós evoluímos e que trocar o culto a futebolistas por interesse em juízes togados seria a indicação de uma inesperada seriedade e um louvável fervor cívico.

Nem tanto.

O presente protagonismo do STF vem de outra origem. Embora designado institucionalmente para ser a instância final do processo legal, guardião e intérprete por excelência da Constituição, o Supremo tem sido palco de jogos de interesses que extrapolam sua função e conspurcam seu lugar.

Aproveitando o caráter leniente da legislação penal brasileira, os magistrados da suprema corte têm dado, com raras e honrosas exceções, um show de bola no que tange à suavização de penas e protelação de condenações de políticos envolvidos em tenebrosos casos de malversação de recursos públicos.

Num país em que mais de trinta mil pessoas têm direito a foro privilegiado, isto é, tratamento diferenciado perante a lei e, na prática, um bilhete premiado de impunidade, uma corte branda e conivente é tudo o que não se precisa.

Agrava a situação o fato de que a Constituição atual, promulgada em 1988, três anos após o término do regime militar, foi elaborada com sentimento de culpa. Procurando expurgar o arcabouço legal de possíveis exageros de autoritarismo, os constituintes empurraram o pêndulo para o extremo oposto, criando um diploma que, além de absurdamente extenso (508 artigos!), é um buquê de salvaguardas que qualquer ardiloso advogado pode lançar mão para adiar a condenação de seu cliente.

Haja vista que o país, nos últimos 12 anos, sofreu o maior assalto aos cofres públicos de sua história, um episódio de corrupção inédito no mundo que enredou os seus líderes políticos num obsceno esquema de enriquecimento ilícito pessoal e partidário, era de se esperar que o Supremo Tribunal Federal apoiasse e ratificasse a extraordinária ação de um punhado de juízes e procuradores na luta contra o crime – a Operação Lava-Jato.

Infelizmente, não é o que se vê. Remando ao contrário do sentimento de justiça e de cobrança da maioria da população brasileira, o STF afasta-se da realidade, encastela-se em sua visão torta do Direito e vem-se firmando como o Inimigo Público número 1 das esperanças nacionais.

As seleções de futebol do passado são lembradas com respeito. O atual time de magistrados inspira apenas repulsa, revolta e desprezo.

Oswaldo Pereira
Outubro 2019

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

SAUDADES DE PORTUGAL




Foi hora de deixar Portugal. Sempre dói, um pouco. Sempre há poentes dourados na véspera, estrelas vadias na noite, manhãs clareadas no dia, músicas inesquecíveis no momento da partida.

Desta vez, além de não ser diferente, alguém colocou na TV a canção “Chuva”, gravada ao vivo num show da Mariza. Aí, lembrei-me que, golpeado então pela sua beleza e entontecido de saudade, escrevi há anos um texto chamado “Esquina de Lisboa”, que jaz soterrado nos arquivos deste blog.

Resolvi republicá-lo. E inserir o link para a mágica apresentação da Mariza. Achei que o meu pobre escrito ficaria melhor ao som dela. E vocês poderiam talvez compreender mais este meu surto de nostalgia. E me perdoar por ele.



Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Estava a frase num azulejo, com letra miúda inclinada em azul sobre um fundo branco, a uns trinta centímetros do chão, embutida na parede pintada de amarelo. Andando ligeiro, prestando atenção no movimento, atento ao tráfego, interessado numa vitrina, mesmo o mais observador transeunte não a veria. Era uma informação pequena, quase obscura, feita para não ser vista, uma mensagem atirada ao nada. À noite, então, pior era, engolida pela iluminação precária daquela curva da cidade, desfigurada nas sombras.

Mas ela estava ali, e ali provavelmente deveria ter estado há muito, amornada pelo sol ou borrifada da chuva, por quanto tempo não sei, nem tenho como saber. Só sei que, um dia, a vi. Um dia em que procurava achar a Baixa em meio aos meus desatinos, em que andava a procura de um norte na escuridão de meus desencantos, um sentido qualquer, uma explicação para o inexplicável, um bálsamo para as minhas aflições. A vida me largara, ou eu me largara dela, tanto faz, aí a ordem dos fatores não altera o produto, mas o rumo desaparecera, o que restava eram labirintos, sinais trocados, ruas sem saída.


Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Por que só viu o poeta? E qual poeta teria visto? Quem seria o poeta naquele dia, ou naqueles dias em que passara e a esquina o vira? Bernardo Soares em seu desassossego? Ricardo Reis antes de ir para o Brasil? O filósofo Alberto Caeiro ou o torturado Álvaro de Campos? 

E por que só vira o poeta? E os outros, os “nós” anônimos, os comuns, os iguais, os despercebidos, os desimportantes, os esquecidos, os zés e as marias ninguém, os “eu” sem ribalta, as gentes do dia a dia, os náufragos da noite, todos com suas estórias para contar.

Talvez, só porque o poeta a dele contara. Talvez só porque ele escancarara suas entranhas, dera ao repasto do mundo e do futuro sua alma como alimento. E então, por isso, a esquina o registrara e orgulhosa do fato de tê-lo visto, de ter ouvido o ruído do taco de seu sapato ressoando na pedra da calçada, ali tão perto, quis apregoar a ventura de ter sentido a genialidade agitar o mesmo vento que a acariciava.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa


E agora me vê aqui. O vento não me acaricia; é nortada fria e molhada que me ensopa até os ossos, mas são o medo e a solidão que me gelam por dentro. A Baixa está vazia e lúgubre, lavada de chuva e caída no silêncio. Longe estão os verões dos turistas coloridos, das tardes de sol, dos pregões sonoros. Mais longe ainda está o meu verão, o verão meu que imaginava eterno, dos radiosos dias de amanhãs sem presságios, da felicidade ao alcance de um aceno. Onde foi a sensação de vida por viver, de tempo que obedecia ao ritmo do meu coração, parando quando eu queria, correndo quando eu mandava?

Ah, poeta! Você que aqui passou, que tanto sabia de angústias e de medos, que tantas vezes e de tantas maneiras os cantou, por que não me ajuda a destilar minha alma, a aliviar meus humores e minha bílis? Como gostaria de trocar esta febre insidiosa pelas dores do parto de uma poesia, de um embrião de palavras escritas que depois desabrochassem num soneto de amor, nuns versos perfeitos de rimas ricas.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa


Adeus, esquina. Vou-me embora. Não tive resposta do poeta. Ele terá as suas razões. Afinal, poesia não é arte que se aprenda por osmose. Não adianta cá ficar, esperando por uma centelha, um toque, um sussurro. A inspiração não vem assim, de presente, de graça, flutuando no ar como um balão de festas. Ela é dádiva rara, de um deus sovina e aleatório que, sabe-se lá por que critérios, escolhe alguém ao acaso e o regala com o dom de domar vocábulos, encilhar frases, cavalgar estrofes. De mim, nada sairá. Nem uma trova, nem mesmo um verso de cordel ou ainda um simples hai-kai.

Adeus, esquina. O poeta de novo aqui não passará. Só sua fama anda por aí, mas está dispersa pelo mundo, glorificada na memória das gerações de agora e do porvir. É imensa, galáctica, universal. Duvido que de ti tome conhecimento, assim como todos os que por ti passam, imersos em suas vidas, guiados pelos semáforos, atiçados pelas vitrinas, são imunes à tua rima pobre.

Só eu, esquina. Só eu te vi e ouvi teu grito para o nada. Esquece o poeta. Registra esta noite, o meu desalento, a nossa solidão. E escreve:

Esta esquina de Lisboa
Viu passar... uma pessoa

Oswaldo Pereira
Outubro 2019