sábado, 26 de abril de 2014

CRAVOS EM ABRIL



Não posso escrever muito sobre a Revolução dos Cravos. Não estava em Portugal naquele 25 de abril de 1974. Retornara ao Brasil havia dois anos e meio e só acompanhei os acontecimentos pelos noticiários e por relatos de amigos e parentes. Mas vivi o antes e o depois.

O antes fui encontrar no início de 1967, quando me mudei para Lisboa. O Estado Novo estava em pleno funcionamento, com o controle da cena política, da mídia e da opinião pública firmemente seguro na mão do Poder Central. Era o tempo em que até certas palavras eram proibidas, como “vermelho”, sutilmente substituído no vocabulário por “encarnado”. Com relação às possessões de além-mar, colônias era termo maldito e o politicamente correto era Portugal Ultramarino. Nunca entendi porque os regimes fortes têm medo de palavras... Também banidas estavam quaisquer críticas à política adotada com relação à África Portuguesa, cuja orientação, desde o pós-guerra, de transformá-la em reserva de mercado dos grandes grupos que apoiavam Salazar, impedindo um crescimento econômico e social sustentado, havia desaguado num conflito colonial longo e extremamente custoso. Uma geração de jovens lusos via seu futuro conturbado por quatro anos de serviço militar obrigatório e extenso período de ações de combate em solo africano. Dois cunhados meus viram isto de perto, sendo que um deles foi ferido nos pântanos da Guiné. Embora presa na garganta, uma imensa mágoa feria as famílias portuguesas e, aos poucos, ia alimentando um profundo descontentamento. Em 1968, Salazar sofreu a queda que o afastaria do Governo e cujas consequências causariam sua morte dois anos depois. Sem a figura do velho Ditador, o regime não encontrou mais forças para reagir à oposição que se avolumava. No meu conto “João Penha” (está no meu Livro de Contos, disponível neste blog. Não custa fazer uma propagandazinha...) eu comentei sobre o período:

“Nesse meio tempo, Portugal também passara por seu vendaval, uma tempestade política cujos ventos precursores já se anunciavam mesmo antes da incapacitação, e depois morte, de Salazar. O breve Governo de Marcelo Caetano apenas se aguentara enquanto o momento inercial das décadas salazaristas o fizera flutuar uns poucos anos sobre a boca de um vulcão com prazo de erupção marcado. Não foi necessariamente uma surpresa para ninguém quando, em Abril de 1974, a caldera explodiu.”

O depois eu vivi seis meses após a Revolução, quando estive por uma semana em Portugal. Vinha de uma viagem de trabalho à Suíça e à Espanha e cheguei de tardinha, e bastante cansado, a Lisboa. Fui para a casa de meus sogros sem ver muito da cidade e apaguei. À noite, meus cunhados vieram buscar-me. Estavam eufóricos. Quando saímos foi que eu vi. A euforia transbordava pelas ruas. Havia outdoors com propaganda partidária por toda a parte, no rádio do carro um locutor convidava para um congresso do Partido Comunista Português, meus parentes discutiam política aos brados. Por alguns segundos, ainda com um pouco de sono e imaginando que estava no Portugal de três anos atrás, tive receio que a PIDE nos viesse prender... Mas, o clima era de festa. Todo mundo agora podia jogar nos caça-niqueis do Cassino do Estoril, revistas para adultos enchiam as bancas de jornal, os cinemas passavam filmes pornôs, a imprensa era livre. Em suma, era uma grande bebedeira de liberdade. E, para não perder a viagem, brindo-os com mais um trecho do meu citado conto (agora vocês vão ter de lê-lo...):

“Foi o turbilhão que se seguiu, as ondas partidárias se movimentando como loucas, o pêndulo do poder levado a extremos que transportaram a vida portuguesa a um nível de paixões e sobressaltos inédito há mais de meio século. Mas, depois de beber com sofreguidão os cálices da liberdade subitamente escancarada, e de sofrer a ressaca do porre libertário, o país deixou o clamor arrefecer e tropegamente de início, mas decidido depois, caminhou para a calmaria de um governo representativo de viés centro-socialista.”

São 40 anos. Nesse meio tempo, a grande aventura do Mercado Comum mudou radicalmente o país. Não sei julgar se para melhor ou pior. Só o futuro e a alma portuguesa o dirão.


Oswaldo Pereira
Abril 2014




segunda-feira, 21 de abril de 2014

2014: UM ANO QUE PODE NÃO TERMINAR





Um terço do ano está a caminho do fim. Um ano de final 4, como outros que marcaram as páginas dos livros de História, urbi et orbi, ou seja, aqui no nosso canto e no resto do mundo. Só no século passado, 1914 desencadeou a Primeira Guerra Mundial, 1944 o evento que mudou o rumo da Segunda (o Dia D). 1954 trouxe o suicídio de Vargas e o nascimento do rock, 1964 a Redentora e os Beatles, 1974 a Revolução dos Cravos. 1984 foi o título do fantástico livro de Orwell. E em 1994, fomos campeões pela 4ª vez.

E este 2014 promete. Ainda vai antes da metade, e já esquentou o discurso entre russos e americanos, enfezou o clima planetário com verões cáusticos e invernos gélidos, aproximou a Eurozona da Direita.  Aqui, teve um Carnaval em março, o encerramento do julgamento-espetáculo do Mensalão, os percalços da Petrobras.

E é aqui, neste berço esplêndido ao som do mar, que o ano começa a desenhar os contornos de uma decisiva procura por caminhos, um aprofundado questionamento de nossa identidade como povo, do explodir de uma sede enorme por definições. Que Sociedade queremos ser? Quem é esse Brasileiro-tipo? O que quer ele? Que espécie de cidadania ele espera?

O primeiro sintoma que dedura 2014 como sui-generis é o sentimento de desencanto com um acontecimento esportivo que, até um passado mais ou menos recente, seria motivo de um delirante orgulho nacional. Os 90 milhões em ação, o Brasil de chuteiras estão sendo olhados com desconfiança, impaciência e até com certa raiva. Muita gente não está aturando mais o bombardeio verde-amarelo da mídia, os filmetes de propaganda com redes balançando, as mil embaixadinhas do Neymar para vender carros ou sungas. É a primeira vez que vejo isto tão nitidamente. Há uma certa vergonha pelo atraso das obras, uma revolta surda pelo custo delas e o lamento indignado pela inversão de prioridades.

Depois, é a encruzilhada das eleições. A queda livre da popularidade de Dilma pode escancarar uma torrente aberta de fundos da Viúva para reverter o quadro, como a ilusão do PAC serviu para elegê-la, embora as benesses governamentais já estejam num limite por demais perigoso. Os programas de Bolsa Família sustentam hoje 14 milhões de famílias. O funcionalismo público também. Vinte e oito milhões de núcleos familiares que, usando a média nacional de 3,1 pessoas/grupo familiar, correspondem a 86,8 milhões de brasileiros vivendo diretamente à custa do Erário. Se adicionarmos os 30 milhões de aposentados do INSS, verificamos que 60% da população pátria dependem exclusivamente do governo para sobreviver.

Soma-se o encolhimento da economia mundial, o fim do ciclo virtuoso que cobriu de glórias o PT nos anos Lula. A Comunidade Europeia está numa quarentena que se estende no tempo, os Estados Unidos apenas colocaram o nariz para fora d’água depois da debâcle de 2008, os tigres asiáticos perderam as listras, o dragão chinês está empanturrado de dólares e arrefeceu o ritmo. Internamente, a política de preços da energia virou refém do clima e a probidade fiscal refém da política. O monstro da inflação abriu seus olhos. A corrupção é endêmica. Há gente falando em revisão da Lei da Anistia. E o Brasil pode sair da Copa nas oitavas de final...

É neste ambiente que vamos caminhar nos próximos dois terços de 2014. Um ano que pode também entrar para a História, como seus primos de final 4.  Um ano que pode não terminar.

Oswaldo Pereira
Abril 2014





sábado, 12 de abril de 2014

CARÁTER





Meu pai sempre dizia que só se conhecem o caráter e a educação de uma pessoa numa mesa de jantar ou numa mesa de jogo. Eu vou mais além. E vou em razão de um fato acontecido comigo há muitos e muitos anos.

Foi em 1995. Eu havia acabado de comprar uma Omega Suprema 0 km. Com família grande e o hábito de viajar, o carro era do tamanho ideal, com um excelente motor Chevrolet e alguns acessórios confortáveis. Uma escolha certa que estreei indo jantar com minha mulher, minha filha e seu namorado em Ipanema, logo no domingo seguinte. A refeição foi excelente, regada à minha euforia em relatar as vantagens da compra, especialmente por se tratar de um automóvel novinho em folha, confirmando a minha máxima da época – “carro bom é carro novo”...

Saímos do restaurante já tarde da noite, eu deliciando-me em conduzir e saboreando o cheirinho dos estofados usados pela primeira vez, as inovações técnicas no painel brilhante, os comandos sofisticados que ainda me solicitavam um aprendizado meticuloso. E assim, dirigindo com calma e esperando que jamais um arranhão leve maculasse o admirável tom cinzento metálico da minha Suprema, parei suavemente na luz vermelha de um sinal de trânsito na Rua Prudente de Moraes.

Dez segundos depois, o ruído frenético de pneus em freada brusca foi seguido pela pancada de uma violenta colisão na minha traseira. Embora eu não quisesse acreditar, a verdade ali estava. Meu virgem carrinho havia sido abalroado. Vendo que, além do susto, nada de sério acontecera conosco, desci para ver os estragos e a cara do idiota que causara o acidente.

Era um indivíduo com várias doses a mais (ainda não havia a Lei Seca), com uma acompanhante assustada, dentro de uma Brasília com a frente em frangalhos em consequência da batida. Bem que ele tentou, inicialmente, achar alguma culpa minha, mas os efeitos etílicos baralhavam-lhe qualquer tentativa de raciocínio lógico. Mais atrapalhado ficou quando o então namorado da minha filha, Renato Reston, filho da atriz Thelma Reston e também ator, reconheceu o carro. Por uma dessas incríveis coincidências, ele estivera ensaiando, na tarde do mesmo dia, uma peça com a dona daquela Brasília – Mônica Torres, à época mulher de José Wilker.

Em minutos, uma patrulhinha da Polícia apareceu. Nem precisei dizer nada ao guarda. Num segundo ele percebeu a situação e, ignorando as súplicas desesperadas do desastrado motorista, que agora se intitulava “secretário” do conhecido ator global, levou-nos todos para a Delegacia do Leblon. E lá, obrigou-o a chamar o patrão.

José Wilker veio logo e, embora fosse madrugada de uma segunda-feira e a situação representasse para ele uma fonte de chatices e prejuízos, exibiu uma notável atitude de civilidade, resignação e até de um inesperado bom-humor, informando que o auto proclamado “secretário” era apenas seu jardineiro e que, sem autorização, resolvera pavonear-se com a namorada no carro da patroa. Sem discutir, assumiu imediatamente a responsabilidade pelo ocorrido, dando-me o endereço de uma oficina de sua confiança que, por instruções suas e às suas expensas, iria consertar o meu automóvel.

Na semana seguinte, agi como ele me instruíra. Em 15 dias, a Suprema ficou pronta como nova, sem que eu pagasse um centavo.

Não podia deixar de dar este testemunho sobre o grande ator que nos deixou semana passada. É ou não é uma maneira bem clara de se conhecer o caráter e a educação de uma pessoa?


Oswaldo Pereira
Abril 2014




sábado, 5 de abril de 2014

MEU RELATO





Parece que todo mundo já escreveu sobre o assunto. Nos últimos dias, a imprensa brasileira foi pródiga em artigos, testemunhos, entrevistas, declarações de quem esteve lá, de quem não esteve, fartas análises de colunistas, posicionamentos categóricos, denúncias contundentes.  Abriu o baú. Dada a importância do fato, nada mais natural. Mas o que me perturbou realmente foi a falta de distanciamento histórico que, julgava eu, seria adequado aplicar-se a um evento ocorrido há 50 anos.  Só por comparação, outra convulsão de igual magnitude, a Revolução dos Cravos em Portugal, desencadeada dez anos depois, tem sido tratada naquele país com um amadurecimento digno de feridas cicatrizadas.

Pelo que vi e ouvi, a nossa ferida ainda está aberta. Ainda se procuram culpados, se abrem arquivos, se remexe em pedaços de passado. A justificativa é de que há ainda porões a serem abertos e histórias a serem contadas. Mas, assim é o passado, sempre incompleto, sempre escrito pela metade, contado pelos vencedores, passível sempre de revisão. Até entendo que muita gente viu-se amputada de seu futuro, perdeu juventude, amigos, parentes e quer saber a Verdade. Também quero. Todos queremos. Mas seria preferível que essa procura fosse feita para apaziguar lembranças, encerrar inquietudes e dúvidas e não para acirrar revanchismos. E que fosse feita imparcialmente, que expusesse todos os pecados, tanto de um lado da trincheira como do outro.

Resolvi também escrever sobre o assunto. Mais como testemunho do que presenciei, lançando mão mais uma vez desta prerrogativa que a idade me confere, que é a circunstância de ter estado presente, vivo e atento, nos dias da Revolução de 31 de Março, que aconteceu mesmo em 1º de abril e já foi apelidada de Golpe Militar e de Redentora, dependendo do prisma político com que se olha o movimento. Antes de mais nada, quero acrescentar que não vou fazer qualquer juízo de valor. Meu testemunho é na primeira pessoa do singular e serve apenas como mais um dos milhões de relatos individuais de quem viveu a hora.

A primeira coisa de que me lembro foi a assepsia da deposição de Jango. Nem um só tiro foi deflagrado. A coisa ocorreu como num tabuleiro de xadrez, com o perdedor derrubando seu rei ao reconhecer a derrota. A sensação dominante era de que as forças defensoras do projeto político de Goulart, tão propaladas pelos sindicatos e organizações de esquerda, nada mais eram do que um castelo de cartas. Se havia alguma parcela da sociedade que desejava as reformas anunciadas pelo Governo no Comício da Central, ou era ínfima ou totalmente desorganizada.

A segunda foi a sensação geral de regozijo. Logo no dia 2, a Marcha da Vitória reuniu quase um milhão de pessoas na Avenida Rio Branco, no centro do Rio. Ninguém me contou. Eu estava lá, como quase todos os meus amigos e colegas de trabalho. Gente de todas as classes, de todos os níveis sociais e culturais, de todas as idades também lá estava, festejando. Depois, a vida seguiu, normalmente. O Campeonato Carioca prosseguiu com estádios cheios, e os cinemas, os bares e as praias continuaram, como se nada tivesse acontecido, a celebrar o Outono temperado do Rio.  

Era a primeira página de um capítulo de 21 anos da vida nacional.
Menos de um ano depois, quando ainda se cogitava a realização de eleições livres para breve, eu deixei o Brasil. Por motivos profissionais, iria viver por sete anos na Europa. Quando retornei, em 1971, o regime militar já enfrentava uma inquietante dissenção interna, um braço de ferro entre o pessoal da linha dura e os que já apontavam para uma distensão política e, ao mesmo tempo, reforçava a repressão e a censura. Preocupado em gerir a minha família, com mulher e três filhos pequenos, e totalmente apolítico, não senti nem uma coisa nem outra. É claro que, conceitualmente, incomodavam-me certos procedimentos truculentos e, mais ainda, o conhecimento abafado de que uma guerra surda e suja vicejava nas profundezas do poder. Mas, eu tinha emprego, estabilidade financeira, escola para os meninos, segurança nas ruas e ainda lia o PASQUIM. Vi muitos erros, mas também vi muitos acertos. Vi o desmantelamento do campus universitário, vi a quimera da Transamazônica atolando-se no barro, vi a burrice do fechamento do mercado de informática, vi o desastre dos choques do petróleo golpeando uma economia super endividada. Mas também vi a construção de um parque industrial revocacionando um país que só exportava commodities, vi o aparelhamento da política energética, que acabou por tornar o Brasil autossuficiente em combustíveis, vi o Proálcool e o Mobral.

Depois, vi o fim do Regime, os destinos da Nação sendo mansamente entregues pelos militares às lideranças civis. Regozijei-me novamente. Mais uma transição histórica sem sangue. Assim fora com a Independência, declarada pelo próprio filho do Rei colonizador; com a República, proclamada por um Marechal doente a depor uma Monarquia ainda mais debilitada; com a própria Revolução de Março.  Vi o Comício das Diretas. Vi Tancredo morrendo aos poucos. Vi a inflação estratosférica de Sarney, o impeachment do Collor. Vi o Plano Real. E vi a promessa de um estado democrático.

O que eu vejo hoje?

Vejo um sistema político viciado, refém das mais rasteiras manobras para privilegiar interesses diametralmente opostos aos anseios de um povo. Vejo o escorrer do rio podre da corrupção, em todos os níveis e patamares da administração pública, roubando o futuro, a dignidade e a vida da geração presente e, ainda pior, das próximas.
Neste rememorar do 31 de Março, lamenta-se a perda das mais de trezentas pessoas mortas ou desaparecidas durante a Ditadura. Também lamento. Mas, alguém já parou para contabilizar os milhares de mortos nas filas dos hospitais, criminosamente desequipados e desaparelhados pela subtração dos recursos a eles destinados e que, em vez de leitos, remédios e atendimento médico competente, vão pagar viagens milionárias, regabofes partidários, comissões sombrias?

Vi o bastante para poder afirmar, sem a menor dúvida, de que, pior, muito pior do que redentoras ou anos de chumbo, é o monstro insaciável e assassino da corrupção. Só não é pior do que o silêncio anestesiado de uma Sociedade.

Oswaldo Pereira
Abril 2014