domingo, 28 de abril de 2013

O ESTÁDIO



NOVO MARACANÃ

O estádio ficou pronto. Custou quase 860 milhões de reais, depois de dois anos e oito meses de obras. A antiga marquise de 30 metros, no século passado orgulho da arquitetura nacional, foi substituída por outra com mais do dobro. Agora, há camarotes suntuosos, 60 bares, 231 banheiros, 16 elevadores, 4 telões de  100 metros quadrados, lugares para quase 79.000 pessoas. É o novo Maracanã.

Maracanã...

MARACANÃ EM 1950
Quando entrei nele pela primeira vez, em 24 de junho de 1950, a capacidade estimada beirava os 200.000 espectadores. Era a abertura da IV Copa do Mundo, sem a pompa e circunstância dos eventos de agora. Entenda-se. A Segunda Guerra Mundial acabara há apenas quatro anos. A maioria dos países europeus e várias nações asiáticas ainda lutavam para sair dos escombros. Por isso mesmo, a FIFA aceitara a proposta brasileira para sediar o certame, adiado por duas vezes (em 1942 e 1946) devido ao conflito.  

Não houve eliminatórias. Os países haviam sido convidados, quase convencidos, a participar e, mesmo assim, muitos tinham declinado. Índia e Turquia desistiram logo. Seus apontados substitutos, França e Portugal, também.  Os ingleses, entretanto, depois de esnobar as Copas anteriores, por se considerarem os reis do esporte (bretão, como muitos locutores ainda o chamam) e autossuficientes em sua prática, resolveram comparecer. E serem protagonistas de um dos maiores vexames da história do futebol, ao perderem para uma equipe amadora dos Estados Unidos por um a zero. Enfim, foi uma Copa diferente. Em tudo.  Assim, nenhuma cerimônia precedeu aquela partida inaugural, Brasil e México.

Mas, para o garoto de nove anos que eu era, a entrada no estádio foi uma das maiores sensações que vivi.  Para começo de conversa, meu pai comprara duas “cadeiras perpétuas” (gimmick de venda, que prometia a posse definitiva do lugar) no anel superior, bem ao lado da Tribuna de Honra. Para mim, que estava acostumado a ver as partidas quase à beira do gramado, na Gávea, em Álvaro Chaves, a repentina visão do campo lá em baixo deu-me uma suave tontura e a impressão de que eu “voava” sobre o gramado. Inesquecível.

O Maracanã estava “pronto”. Com aspas, é claro, pois a infra estrutura era mínima e o conforto precário. Mas, quem ligava para isto em 1950? O orgulho de sediar um evento de prestígio internacional perdoava tudo, numa nação ainda no andar debaixo do mundo civilizado.

O Brasil venceu, fácil. Quatro a zero. E dava início à indescritível euforia que envolveu o país inteiro e culminou na apoteótica vitória sobre a Espanha (considerada o melhor time europeu), em que 165.000 torcedores acenaram lenços brancos e cantaram a marchinha de carnaval “Touradas em Madri”. Seis a um! Como, pela única vez na história do certame, o título seria decidido num torneio quadrangular, a acachapante vitória dava ao Brasil a vantagem do empate na última partida contra o Uruguai. Era bom demais.

Quem se lembra, sabe. Às 16:50 de 16 de julho, o silêncio fantasmagórico de duzentas mil pessoas deixando o estádio ensurdecia a alma brasileira com a maior de decepção sofrida por este povo. Quem não estava lá vai achar que eu estou exagerando. “Afinal, é só um jogo de futebol”, dirão. Não é. Não foi.

Pensem num tempo em que pouco havia para nos servir de referência como conquistas internacionais. Nossa pauta de exportações era uma monocultura, nossa indústria apenas nascera em Volta Redonda, nossa única imagem musical lá fora era uma madeirense que usava um turbante com bananas. Brazil era somente um endereço de turismo exótico onde o sol brilhava perene nas calçadas onduladas de Copacabana. De repente, o futebol nos iria resgatar.

Logo após a derrota, a caça aos culpados começou. Falou-se em excesso de confiança, celebrações antes da hora na véspera do jogo que haviam desconcentrado os jogadores, até numa missa antes da partida que os obrigara a ficar duas horas em pé. Mas, foi dentro do campo que o povo elegeu seus réus. Um foi João Ferreira, o Bigode, lateral do Fluminense, que supostamente teria se acovardado perante Obdúlio Varela, o capitão da equipe uruguaia. O outro foi Moacyr Barbosa, goleiro do Vasco. Afinal, a bola passara nos dois palmos que estavam entre ele e a trave esquerda, no que se podia classificar como uma lamentável falha, para não dizer um terrível “frango”.

Sobre este lance, há um curta metragem maravilhoso, filmado em 1988 e dirigido por Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, com roteiro adaptado dos dois e mais Giba Assis Brasil. Naquele ano, ganhou os prêmios de melhor filme de ficção no Festival de Havana e de melhor edição em Gramado e tem como ator principal Antonio Fagundes. Vale a pena ver, para compreender do que estou falando.




Oswaldo Pereira
Abril 2013

quinta-feira, 25 de abril de 2013

O CIRCO








A vila dormia. Como sempre dormira, desde seus primórdios, desde que as pequenas cabanas haviam sido escoradas de pau a pique, o barro das paredes endurecido e o sapê as abrigado da chuva e do frio da noite.

Lentamente, o casario foi-se transmutando em casebres de tijolo, porta e janela sem contornos retos, toscas telhas mal encaixadas, permitindo que sol e lua desenhassem figuras no chão de terra batida e gotas de chuva salpicassem os poucos pertences de uma mobília rústica.

Depois, devagar, avançou. A primitiva agricultura de grãos comestíveis foi alargando suas fronteiras pelo ermo inculto. Pastos apareceram, gente chegou, carros de bois gemiam pela estrada precária até terras vizinhas. Uma igreja brotou singela, uma escola nasceu no alto da colina, o cemitério enterrou seus primeiros mortos. 

Mas, por mais que se esforçassem, os habitantes da pequena aldeia não conseguiam ser felizes. Tinham sempre de lutar contra uma natureza ingrata e caprichosa, que com um simples sopro destruía colheitas inteiras, secava os açudes onde o gado acabava por definhar até a morte, castigava os telhados com granizo ou estorricava jardins criados com dedicação e esmero.

Aos poucos, o povo entristecido e cansado começou a acreditar que alguma pérfida maldição assombrava o vale de contornos doces e o suave regato que o banhava. Haviam combatido, esperado, murmurado promessas contritas, ajoelhado ao altar pedindo clemência. Debalde.

Na manhã daquele primeiro dia de inverno, cujos malsinados efeitos começavam a enregelar a pele e as almas, o torpor da derrota de há muito já havia drenado as últimas gotas de ilusão. O orvalho por fim deixara de cair nas flores secas do desespero.  O povo dormia, exausto e descrente.

Mas, apesar de frio, o sol nasceu, como sempre fazia. Mais um dia começava e, um por um, os habitantes foram despertando para suas rotinas sem cores, seus afazeres repetidos e inúteis, seu dia-a-dia acabrunhado pela sorte sovina. Despertaram sonâmbulos como sombras encurvadas e foram tentar vencer mais uma jornada sem fé.

De repente, uma trombeta soou pelos lados da serra que servia de entrada à aldeia. A notícia se espalhou logo. O Circo estava chegando!

Em minutos, a criançada correu lá pros altos do cemitério e postou-se em ambos os lados da rua de terra. As janelas das primeiras casas logo encheram-se de moradores, arrancados de seu desânimo pela voz potente do Mestre de Cerimônias, apregoando as funções do espetáculo que iria apresentar no dia seguinte.

«Atenção, muita atenção, Senhoras e Senhores. O Gran Circo Dellavida está chegando! Preparem-se para o maior show da Terra. Os maiores artistas do Mundo. A grande vidente Madame Verité, que dirá o que lhes vai na alma. O famoso ilusionista Pangloss, cujas artes mágicas transformarão seus dias em perene alegria. O destemido domador de feras reais e imaginárias Il Grande Testafresca. A engraçadíssima dupla de palhaços Alto e Astral, que os farão debochar da adversidade. E, o maior número de todos, a família de equilibristas de fama internacional Os Incríveis Semmedos, que mostrarão como caminhar juntos sobre um fio de esperança. Não percam! Amanhã, em soirée única, às sete da noite na praça!»

Era um final de tarde quando o Circo deixou a aldeia. Ao espetáculo do dia anterior, todos haviam comparecido. E agora acenavam, enquanto o desfile de despedida subia a colina. Quando a última carroça sumiu no topo, Vênus brilhava num céu vespertino e sem nuvens.

Quem notou a mudança foi um ambulante que havia passado pela vila meses antes e lembrava-se da imagem de uma comunidade moribunda. Tudo havia mudado. As casas estavam pintadas de novo, a igreja substituíra o sino quebrado, havia flores em profusão na praça e sorriso no rosto das crianças. Perguntou às pessoas que passavam o que causara a grande transformação. Foi embora sem entender a resposta.

Muitos passarão pela vida sem ver o Circo. Talvez porque não o procurem direito. Talvez porque não acreditem nele e, mesmo vendo-o, não o reconhecem. Mas, se um dia a vida tiver perdido o juízo e noite não prometer amanhã, apurem os ouvidos. Quem sabe não ouvem a voz do mestre de cerimônias, anunciando com garbo:

RESPEITÁVEL PÚBLICO...


Oswaldo Pereira
Abril 2013


sábado, 20 de abril de 2013

QUADRINHO NA PAREDE


Na parede da varanda da casa de meus pais, havia um pequeno quadro. Era diferente de todos os outros, porque, no lugar de uma pintura ou uma aquarela, tinha a metade de um copo de couro em alto relevo, do qual dois dados, também em relevo, projetavam-se para fora, como se tivessem sido arremessados no ato de jogar.  Logo abaixo, havia uma inscrição.

La vida es como los dados. Tiene sus puntos marcados.

Como, durante anos, vi esta frase praticamente todos os dias, nunca cheguei a me demorar sobre seu significado. Para mim, que com ela convivi desde criança até deixar a casa paterna aos vinte e três anos, era uma simples peça de decoração.

Agora que tenho muito mais passado que futuro, me pego a olhar para trás com frequência. E, acreditem ou não aqueles que ainda não chegaram neste ponto, com o maravilhoso sentido de perspectiva que a simples acumulação de várias décadas confere aos mais velhos. Esta “visão de cima”, talvez o mais precioso componente do que os americanos chamam de grey power, ou o poder dos grisalhos, nos dá a acuidade visual de poder entender o que, na vida, é importante e o que é supérfluo, embora este “presente” só nos seja regalado quando já pouco podemos fazer  para reparar erros passados. Mas, se aceitarmos que esses erros foram exatamente as pedras que construíram a “torre” de onde agora contemplamos o mundo, a perspectiva fica ainda mais nítida.

E aí, surge novamente a frase do pequeno quadro.

“A vida é como os dados; tem os seus pontos marcados...” Será?

Ao primeiro exame, parece uma afirmativa fatalista. Ou seja, a vida é aquilo que a fortuna (na falta de outro deus) nos reserva. Maktub. Assim estava escrito.  A linha é traçada antes de nascermos e dela não podemos fugir. Os pontos dos dados são aqueles e, por mais que queiramos driblar a sorte, o resultado não muda e o que determinam será o nosso caminho entre os dois invólucros que marcam os nossos extremos. O útero e o túmulo.

Mas, se olharmos bem para o quadrinho, ele não torna implícito que o resultado daquela virada do copo é o único. A vida, como os dados, pode ter seus números estampados em cada uma de suas faces mas a combinação que  fica na parte virada para cima pode mudar cada vez que o copo os arremessa na mesa do destino. Viver seria então uma sucessão de jogadas, uma série de apostas, um contínuo girar da roleta, um novo embaralhar de cartas a cada momento, no qual, nós, os jogadores, teríamos a oportunidade de mudar o jogo.

O que vi, e posso contar, é que às vezes parece uma coisa, às vezes outra. Há épocas em que o inevitável nos torna impotentes, em que tudo parece ter sido engendrado por uma divindade imutável e imune às nossas esperanças ou ao nosso desespero. Há outras em que o comando parece estar na nossa mão, em que capitaneamos o barco com a certeza e a liberdade dos iluminados, dos invencíveis e dos eternos.

Se sei a resposta? Talvez. Mas é provável que ela sirva só para mim, pois é fruto das minhas vivências e andanças. E, se a compartilhar, talvez estrague a chance que cada um tem de decifrar por si só o mistério da vida e dos dados.

Oswaldo Pereira
Abril 2013
   



quarta-feira, 17 de abril de 2013

GENIALIDADE


Milagres devem acontecer todos os dias. Mas flashes de genialidade em estado puro são raros. Como os três exemplos musicais abaixo, que nos fazem indagar de que fonte de energia brotam estes tesouros de criatividade, inspiração e talento.



Numa determinada manhã, em 1965, Paul McCartney acordou de um sonho com uma música na cabeça. Mesmo antes de tomar o café da manhã, foi para o piano e a tocou. A música completa, primeira e segunda partes. Direto. Depois, escreveu a partitura. Como não tinha um nome para ela e seu breakfast estava pronto, resolveu chamá-la de Scrambled Eggs (Ovos Mexidos)...

Com receio de que pudesse ter ouvido a canção anteriormente e estivesse agora apenas recordando, passou um mês perguntando a todo o mundo se alguém já a escutara antes. Não queria ser acusado de plágio. Ninguém a reconheceu.

No dia 14 de junho do mesmo ano, Paul finalmente gravou-a, agora com a letra que escrevera durante uma viagem de férias a Portugal. E com outro nome. Yesterday.

De acordo com o Livro de Recordes do Guinness, esta linda canção pop-barroca de amor é a música mais regravada da História.



Era uma noite chuvosa de 1939. Ary Barroso jantava em casa com a mulher e os cunhados, em seu apartamento na Urca, meio contrafeito de não poder sair devido à forte tempestade. Antes da sobremesa, levantou-se e disse: “Vou compor um sambinha...”
Uma hora depois, chamou a família para ouvir o que tinha composto. O pessoal achou a música interessante, mas estranhou o uso de palavras fora de moda como “inzoneiro”, “merencória”, ”trigueiro” e as redundâncias de “Brasil brasileiro” e “coqueiro que dá côco”.
Ary não se perturbou nem mudou nada.  Mesmo antes de ser gravada, a composição foi lançada na peça Joujoux e Balangandãs, sem despertar muito interesse. A gravação de Francisco Alves, o então “Rei da Voz”, também não foi capaz  de atrair os ouvidos do público. Ary achou que tinha errado na mão.

Mas, em 1942, a música, que nascera com o nome de “Aquarela Brasileira”, foi incluída no filme de Walt Disney “Saludos Amigos”. Seu nome agora era “Aquarela do Brasil” e foi a primeira canção a ser executada mais de um milhão de vezes nos Estados Unidos.



Eben Ahbez em 1948
Em 1947, o cantor e pianista de jazz americano Nat “King” Cole estava às voltas com o fisco. O Leão yankee dera uma dentada furiosa em sua contabilidade e isto ameaçava a sua estabilidade orçamentária. Nat já era famoso, mas seu sucesso como balladeer ainda era incerto.
Certo dia, um estranho personagem procurou-o. Chamava-se Eben Ahbez, tinha uma comprida barba, vestia-se como um hippie de vinte anos à frente e morava debaixo do lendário letreiro do Monte Lee, que ainda ostentava o nome HOLLYWOODLAND.  O cantor pensou que o estranho iria pedir-lhe dinheiro. Eben, entretanto, entregou-lhe uma partitura com uma composição sua. Disse apenas que gostaria que Nat a gravasse. E foi embora.
 
A música tinha por título “Nature Boy”. 


Foi o maior sucesso da carreira de Nat ”King” Cole, tendo ficado, em 1948, por 15 semanas seguidas em primeiro lugar na lista dos discos mais vendidos e acabado para sempre com as dificuldades financeiras do celebrado músico.

Oswaldo Pereira
Abril 2013

domingo, 14 de abril de 2013

PAPO DE BAR - ENCENAÇÃO




«Aí vem chumbo!»

«Como é que é? Vão assaltar o Bar?»

«Não brinca, cara. falando sério. A Coréia do Norte vai mandar bala! Aquele mongolóide do Kim Jong-un vai desencadear uma guerra de consequências imprevisíveis. E o Japão é capaz de levar com outra bomba atômica na cabeça. Coitados dos japas. Vivem às voltas com ataques nucleares. Hiroshima, Nagasaki, o problema com a usina de Fukushima. Caramba...»

«Não vai acontecer nada»

«Você acha que não? Pois os Estados Unidos acham que sim. Elevaram o nível de defesa para DEFCON 2. Sabe o que quer dizer isto? DEFCON 1, o estágio a seguir, é Guerra. A última vez que isto aconteceu foi durante a Crise de Cuba, na década de sessenta.»

«Tudo encenação»

«Encenação?! Estamos falando de um louco com o dedo no botão nuclear. Um espirro mal dado, e a coisa começa. E, a partir daí, ninguém sabe como parar. É a hecatombe, amigão»

«Meu Deus. Você anda lendo muita ficção científica. E da pior qualidade.»

«Que ficção científica droga nenhuma. Estou lendo os jornais, vendo a CNN, a BBC. A coisa feia»

«E você acredita no que lê e ouve? Desde quando a imprensa é confiável? Desde quando o compromisso com a verdade suplanta o interesse comercial dos donos das mega redes de comunicação? Ou um acerto com as fontes governamentais em troca de concessões e financiamentos? Como diz o Batman, “santa ingenuidade”...»

«Você, com este seu cinismo empedernido, está ultrapassado, meu caro. O Batman não fala mais nada disso. E a imprensa de hoje se baseia em repórteres investigativos, tem meios visuais que podem descobrir tudo, âncoras independentes que formam opiniões em cima de fatos e não histórias de terceira mão»

«Muito bonito. É claro que os meios estão todos aí. O problema não está na recolha dos fatos. Está na edição da matéria jornalística. O que vai para as páginas dos jornais e para as telas de TV, não é o fato, mas a versão mais conveniente dele, determinada pelo presidente da cadeia de  notícias e seu redator-chefe. Quer um exemplo recente? A mídia americana comprou sem questionar a história de que o Iraque possuía “armas de destruição em massa”, quando todo mundo já sabia que era um truque do Bush filho para deletar o Sadam Hussein e manter os interesses petrolíferos do Dick Chenney intactos»

«OK. Mas para um caso destes há centenas de outros em que a ação reveladora da imprensa trouxe à tona verdades encobertas por interesses inconfessáveis. Antigamente, os poderosos da vez faziam e desfaziam, sem se preocupar com a opinião pública justamente porque a imprensa não se metia. O Kennedy promovia orgias na Casa Branca e nada vinha a público. Trinta anos depois, o coitado do Clinton ensaiou uma brincadeirinha com uma estagiária e foi exposto e crucificado. Isto sem falar no mais famoso episódio de investigação jornalística de todos os tempos que foi papel dos repórteres do Washington Post no caso Watergate»

«Pois eu ainda não sei se isto tudo não obedeceu a um plano pré-definido. Nixon era um escroque, ninguém gostava dele. Tudo pode ter sido armado para defenestrá-lo. Lembre-se que foram as confidências do Garganta Profunda ao Bernstein e ao Woodward que selaram a sorte do caso. Por isso, eu acho que o caso da Coréia do Norte é apenas mais uma encenação combinada»

«Combinada? Por quem?»

«Pela China, pelos Estados Unidos...  A última coisa que interessa aos dois é uma mudança radical na situação atual da península coreana. Uma hipotética união entre Norte e Sul é impensável. Para os americanos, a abissal diferença entre as duas Coréias é um formidável item de propaganda a favor do capitalismo. Para os chineses, a Coréia do Norte é uma fonte de minério de ferro e carvão mineral a preços irrisórios. E qualquer desequilíbrio no poder poderia causar a invasão do território chines por  milhões de fugitivos coreanos através de uma pouco patrulhada fronteira.»

«Então não faz sentido. Prá que criar esta crise?»

«O problema é o Kim Jong-un. Tem 28 anos. Comparado com os gerontocratas do poder militar, com os seus quépis enormes, é um moleque. Deve estar sendo posto à prova pelos velhinhos e precisa mostrar que tem aquilo roxo. Deve ter-se comunicado secretamente com a titia China e pedido ajuda propondo “eu banco o machão, faço cara feia e ameaço todo o mundo. Vocês peçam para os Estados Unidos fingirem que estão apavorados e aumentem a prontidão. Assim eu fico bonito na fotografia e os generais me aceitam. Depois, damos o dito pelo não dito em nome da paz mundial e tudo continua na mesma”..»

«Não sei não...»

«É claro que é isso. Você vai ver. Na próxima semana, tudo acaba»

«Deus te ouça...»

«Deus? É quem menos tem a ver com esta história...»

Oswaldo Pereira
Abril 2013

domingo, 7 de abril de 2013

SONHO POTIGUAR








É o “ombro” do Brasil.

A partir dele, a costa brasileira abandona sua inclinação para leste e vira a sul. Geógrafos preferem chamá-lo de “esquina do continente”.
Ali há desertos que conversam com o mar, um cajueiro do tamanho de uma aldeia, camarões em profusão. Um pequeno quadrado do tamanho da Costa Rica, que recolhe 95% do sal consumido em nosso país e abriga o equivalente tupiniquim do Cabo Cañaveral americano, o Centro de Lançamento Espacial da Barreira do Inferno.  Durante a Segunda Guerra Mundial, recebeu a maior base aérea externa dos Estados Unidos, poeticamente denominada “Trampolim da Vitória” e palco da célebre Conferência de Natal, com a presença de Franklin Roosevelt. Era a moeda de troca para a construção de uma siderúrgica em Volta Redonda e o definitivo alinhamento do Brasil com os aliados. E o abrandamento da severa cultura nordestina, mercê do contato com os descontraídos militares yankees, gerando, além de inevitáveis encontros e desencontros amorosos, os já celebrados vocábulos “forró” (for all) e “óxente!” (o shit!).
Hoje, o interior sofre debaixo de uma seca impiedosa. Mas, os seus 400 quilômetros de costa são uma elegia do que se convencionou chamar de “paraíso tropical”.
São várias combinações, especialmente na vertente meridional da costa, a seguir a Maxaranguape. O primeiro casamento é entre o mar infinito e a areia complacente. O segundo junta o sol perene à natureza forte. Há outras uniões abençoadas. A brisa dócil abraçando o tempo. As nuvens pequenas navegando um céu azul, lagoas aconchegadas em dunas, palmeiras curvando-se solenes em homenagem ao pôr-do-sol, um dia claro que dura um ano inteiro. E, quando a noite finalmente chega, um gigantesco enxame de estrelas faz a festa.
Imagine tudo isto num só lugar e você chegará perto de visualizar Natal e seus arredores. Até a infalível Rede Globo escolheu a região para cenário de uma de suas recentes novelas.
A magnífica sequência de praias oferecida pelo litoral potiguar certamente não é a única disponível nos milhares de quilômetros da costa brasileira, mas a esplêndida simbiose dos vários elementos acima citados enche os olhos, regala a alma. E não há que não se sinta, ao se deparar com a imensidão do Atlântico à sua frente, um pouco menino, um pouco aventureiro, um pouco poeta.
E, falando de poesia, lembrei-me de um despretensioso poema que escrevi há muitos anos e acabei por inserir no meu livro O PÁTIO DE ATENAS, atribuindo-o a um dos seus principais personagens. Na época, não podia imaginar que ainda viria conhecer o lugar que deveria tê-lo inspirado – as praias norte-rio-grandenses.
PROPOSTA
Vem comigo, vamos passear
Por caminhos infinitos,
Pelo centro dos agitos
Pela calma, pela praia
Por Paris, Saramandaia
Pela montanha mágica
Pela planície básica
Pela selva
Pela relva...
Pés nus no chão de estrelas
Olhos postos na alvorada
Alma aberta, desvairada
No barco que enfuna as velas
E, ao vê-las
Partiremos! Isto eu te proponho
Com asas azuis na fronte
Do cavalo alado do sonho
Rumo à linha do horizonte...

Oswaldo Pereira
Abril 2013

INVERNO NO RIO



Maresia

Vento molhado. Julho, ou seria agosto? Não se lembrava, mas era inverno. Dois anos? Buzinas no sinal, apito do guarda, ronco de motor. A cabeça lateja. Céu de chumbo. Cheiro de óleo queimado. Água de chuva, bicicleta na calçada. Ainda dói...


Ipanema

 Primeiro beijo. Olhar de espanto. Segundo, boca aberta, gosto de hortelã. Língua no pescoço. Aqui não... Mãos dadas porta do cinema. Quer pipoca? Luzes que se apagam. Qual era mesmo o filme?

 Gosta de sushi? Um barco na mesa. Pauzinhos... Deixa eu te ajudar. Lágrimas de wasabi, sakê no nariz. Não ri de mim... Olhos castanhos, olhos negros, olhos nos olhos. O que vai fazer amanhã?

Barra

Pisca-pisca ligado. Suíte, por favor. Deixa eu tomar um banho. Como se liga a TV? Presilha do sutiã, tesão, cama redonda. Vai devagar amor... Bico do seio, calcinha lilás, calor úmido. Nome do motel?

Tarde da noite. Ar condicionado. Teu corpo é lindo. Vales e colinas. Não, aí não... Olhos fechados, cavalgada nas estrelas. Eu te amo num gemido. Vamos dormir aqui?

Centro

Desculpe, atrasei. Edifício Avenida Central. Ei, tio, vai graxa? Escada rolante. Prefiro bufê. Dois guaranás light. Vitrinas, gente. Gente, vitrinas. Tenho que comprar um pen-drive. Que hora você tem de voltar?

Claro ou escuro? Aqui quente. Menu, cardápio, batata frita, pastéis de camarão. Mais um chopinho? Chuva de fim de tarde. Meu carro perto. Mesmo motel de ontem?

Grumari

Bonita barraca. Areia, pedra, mar, frescobol. E o céu. Que dia é esse... Eu trouxe cerveja. Sanduíche naturaaalll... vai querer, meu nobre? Vou até a água. Beijo molhado. Sappore di sale. Me passa o bronzeador. Quer comer qualquer coisa?

Que leseira. Canga vermelha. Gosto de você. Café? Mais um beijo. Outro. O pessoal olhando. Maquineta do cartão. Débito. Sopra uma brisa. São quase sete. Vamos?

Copacabana/Gávea

Oi, já tava dormindo? Bateria no fim. Se apagar, me liga pro fixo. Saudade... Sirene lá na rua, claridade no quarto. Fantástico na TV. te gostando pacas... Semana que acaba. Semana que começa. Vamos nos ver na quarta?

Sussurros. Eu te amo, eu te amo... Já é madrugada, amor. Não desliga não. Silêncio na rua. indo tudo tão rápido. Pus o despertador para as seis e meia. Então, boa noite. Te adoro. Pensa em mim?

Botafogo

Brinde. Um mês, querida. Restaurante cheio. A carta de vinhos, por favor. Cestinha de pães, grissines compridos e salgados. Vais mesmo querer couvert?

A nós! Balde de gelo suando frio. Hiatos de silêncio. Voz alta na mesa do lado. Ontem, fui me inscrever naquela academia. Olhar perdido. Estás muito quieta. Algum problema?

Lagoa

Puxa, faz uma semana que você não liga. Lua no ceu, trilha de prata. Tenho trabalhado muito. Gente que caminha, gente que corre. Gente que sonha com a paz do espelho de água. Você gosta mesmo de comida árabe?

Quer andar um pouco? Uma nuvem engole a lua. Não, estou cansada. Cristo iluminado de azul, suspenso no céu. Morro dos Cabritos apagado e inerte. Quando te vejo de novo?

Gávea/Copacabana

No momento, não posso atender. Depois do sinal, deixe seu recado...

De novo?

Dez da noite. No momento, não posso....

Vou desistir. Ligo amanhã. Que dia é mesmo amanhã?

Jardim Botânico

Manobreiro. Espera de mesa. Tem cinco pessoas na frente, mas é rapidinho. não tava em casa na quinta de noite. É... atrasei no trabalho. com fome?

Meia de alicci e meia de margarita, OK? Barulho de copos, barulho de pratos, barulho de talheres, barulho de barulho.  Mãos frias. Que é que havendo?  

Leblon

Vento no mirante, começo da Niemayer. Vou fazer uma viagem. Gaivota em vôo rasante, onda lambendo a pedra. Não tinhas falado nada... Quando volta?

Tchau. Chuva fina. Vareta quebrada, guarda-chuva de camelô. Te ligo antes de ir para o aeroporto. Reflexos de luz na poça d´água. te achando distante. Liga não, quando eu voltar a gente se fala. Promete?

Galeão/Gávea

Oi. Já chamaram o vôo. Acho que acabou. Não consegui dizer cara a cara. Não me espere. Te cuida.

Silêncio. Click...


Dois anos. É isso mesmo, dois anos. Ainda dói...

Oswaldo Pereira
Março 2011