terça-feira, 29 de novembro de 2016

ADIÓS FIDEL


Fidel morreu numa Black Friday. Nada de mais emblemático.

No dia maior do consumismo capitalista, desaparece o campeão latino da esquerda histórica. Dois símbolos diametralmente opostos unidos numa esquina do tempo.

A figura de Fidel Castro Ruz dominou grande parte do século XX, principalmente no cenário americano. Do herói barbudo e romântico de Sierra Maestra ao incômodo espinho cravado no calcanhar yankee, de defensor do ressurgimento cubano ao vingativo algoz do paredón, de orador prolífico e inspirado a agente exportador da revolución aos países do continente, idolatrado e odiado, reverenciado como deus ou jurado de morte, patriarca iluminado ou ditador sanguinário, Fidel vai deixar como legado exatamente esta bipartida memória. Mesmo com o passar do tempo, seu julgamento pela posteridade nunca será pacífico.

Resta saber agora que Cuba existirá para além da morte de El Comandante. Mesmo que se possa argumentar que a transição já fora feita e que o velho líder retinha, nestes últimos tempos, muito pouco do antigo poder, a imensa sombra que ele continuava a lançar no imaginário de seu povo era intensamente palpável. Uma presença, uma luz no sacrário, um pedaço da história, uma referência viva. Queiram ou não, sua morte abre um vácuo nacional.

Além disso, seu irmão e sucessor não é muito mais jovem. Raúl Castro tem 85 anos. Quando se for, a dinastia acaba e a ilha ficará órfã.

O Caribe sempre povoou o imaginário das lendas como sendo uma terra de piratas, vendavais e tesouros enterrados na areia. De aventuras e de pilhagens. O ritual de passagem de Cuba para um mundo sem os Castro poderá ser traumático. Sua própria gente está dividida. Enquanto em Miami os exilados faziam um carnaval, em Havana as lágrimas acompanhavam a cremação. Por outro lado, a proximidade com os Estados Unidos será sempre um ingrediente complicador e, com Trump na vizinhança, a promessa de um futuro imediato turbulento.

Uma dose de rum e um puro, para quem adivinhar o que vai acontecer...


Oswaldo Pereira

Novembro 2016

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

WESTWORLD



O filme “Westworld” foi realizado em 1973. Custou 1,2 milhão de dólares e já rendeu acima de 11 milhões, ao longo de mais de quatro décadas. Com um roteiro escrito por Michael Crichton (já então um escritor de sucesso, cujo best seller “O Enigma de Andrômeda” fora lançado dois anos antes) e dirigido pelo próprio autor, virou cult.  Na época de seu lançamento, a ideia de um parque de diversões, em que androides construídos como perfeitas réplicas dos humanos seriam anfitriões prontos a satisfazer qualquer desejo, foi uma bela “sacada”. O mundo despertava para a cibernética user friendly, isto é, a desmistificação do uso do computador, antes privilégio de analistas e programadores, e sua transformação em ferramenta do dia-a-dia. Influenciado, segundo ele próprio, pelas possibilidades que se abriam e por uma visita à Disneyworld, em que se deslumbrou com os animatronics do “Piratas do Caribe”, Crichton criou a sua ficção.

O filme acabou sendo pioneiro na utilização, ainda que em forma primitiva, da computação gráfica e foi a primeira vez que se usou a expressão virus para descrever a “doença” que atacava os computadores internos dos robôs.  Some-se a isto a icônica interpretação de Yul Brynner como Gunslinger (o Pistoleiro), e a película encontrou seu lugar na História.


Quarenta e três anos depois, a HBO resolveu beber na mesma fonte e recriar Westworld, agora como uma requintada série de TV. Segundo o famoso canal, a produção está destinada a ocupar o lugar do seu mais bem-sucedido seriado, o extraordinário Game of Thrones, que se encaminha para as últimas temporadas. Como já foram ao ar oito dos dez episódios da primeira parte de Westworld, dá para ensaiar uma crítica inicial.

Em primeiro lugar, fica um pouco difícil compará-la com o filme de 1973.  Embora a trama central repouse na concepção imaginada por Crichton, a dimensão das duas realizações estabelece dois patamares distintos. O filme teve a duração de 88 minutos. A série terá dez capítulos de uma hora por temporada, o que facilmente poderá significar mais de sessenta horas de exibição. No cinema, Delos (o nome do Parque) oferecia três mundos aos seus clientes. Roma, Idade Média e o Velho Oeste. Na TV, só existe o ambiente western, embora nada impeça que outras variações, ou narrativas, para usar o jargão do atual roteiro, venham a ser criadas. Há também uma versão (não confirmada) de ligação entre os dois parques, segundo a qual o presente Westworld seria uma reconstrução do antigo Delos, destruído, como o filme mostra, por uma rebelião dos androides.  Nessa mesma vertente hipotética, o personagem vivido agora por Ed Harris (o Homem de Preto) seria nada mais nada menos que o antigo Gunslinger de Yul Brynner.

Mas, se formos comparar Westworld com Game of Thrones, aí a coisa complica. Apesar de ambas contarem com duplas de talentosos roteiristas (Lisa Joy e Jonathan Nolan pela primeira. Davis Benioff e D. B. Weiss pela segunda), a fonte literária na qual uma e de outra buscaram seus argumentos difere diametralmente. Guerra dos Tronos tem como âncora conceitual a alentada obra A Song of Ice and Fire, cinco volumosos tomos escritos por um verdadeiro gênio, o americano George R. R. Martin. A única referência de Westworld é o roteiro criado por Michael Crichton há quarenta e três anos. O que implica na ausência de uma linha mestra de longa duração na administração criativa do tema.

A série é boa, não me levem a mal. É esmerada e elegante, move-se num ritmo condizente com a trama intrincada, tem uma trilha sonora instigante. A fotografia é primorosa. E conta com um elenco de primeiríssima qualidade. Além de Ed Harris, lá estão Evan Rachel Wood, Thandie Newton, até o nosso Rodrigo Santoro. Pairando acima de todos, o mago Anthony Hopkins.

Mas, daí a ser a sucessora do mundo mágico de Westeros, da saga insuperável dos Starks, Lannisters, Targaryans, Baratheons e outros, não sei não...

Oswaldo Pereira
Novembro 2016





quinta-feira, 17 de novembro de 2016

ALJUBARROTA



Que os portugueses respeitam o seu passado e procuram preservá-lo com cuidado e carinho, já todo mundo sabe. Neste modesto blog eu já me referi diversas vezes a isto.

No último domingo, eu tive mais uma agradável prova deste invejável sentido de preservação da História.

Muitas pessoas já visitaram o Mosteiro da Batalha. Situado relativamente perto do Santuário de Fátima, outra conta preciosa do rosário de lugares de importância cultural, de que Portugal é pródigo, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, nome de batismo da magnífica construção em estilo manuelino, foi mandado erigir por D. João I em agradecimento aos céus pelo sucesso de suas tropas na batalha de Aljubarrota.

O que pouca gente já foi visitar é o local onde os combates realmente ocorreram. Fica a uns três quilômetros do Mosteiro e hoje abriga um Centro de Interpretação, magnífico trabalho de reconstituição de um evento determinante da civilização ocidental. A visita, que pode ser feita em não mais que duas horas, inclui a apresentação de um detalhado vídeo sobre os acontecimentos que desaguaram no confronto e, mercê de um excelente trabalho de computação gráfica, a recriação de todo combate.

Aljubarrota foi uma esquina do destino. E também foi, mais que tudo, a extraordinária vitória de uma estratégia inteligente sobre a força bruta. Possuído pela atávica ambição dos espanhóis de dominar toda a península, D. Juan I de Castela, que um ano antes quase conquistara Lisboa, ataca novamente em 1385.  Na tentativa anterior, quando conseguira sitiar a capital por quatro meses, fora derrotado por um surto incontrolável da Peste Negra e, deixando as fogueiras crematórias para trás, retirara-se.

Seu exército agora é maior e mais poderoso. A ordem é deslocar-se rapidamente e atingir de novo a capital. Do lado português, o Mestre de Avis, aclamado como D. João I meses antes, após uma conturbada disputa pelo trono, sabe que a cidade não conseguirá sobreviver a outro cerco. Tem de confrontar o inimigo antes que ele chegue ao litoral. Mas, onde? E como? As forças são cruelmente desproporcionais. D. Juan traz 40.000 homens, os melhores de seu reino, soldados profissionais e cavaleiros bem treinados. O máximo com que Portugal pode contar é com 10 mil, dos quais cerca de 4.000 camponeses, que nunca viram uma luta e portam apenas foices, pás e enxadas como armas.

Aí entra em cena o talento. Chamado pelo rei português a comandar suas inferiorizadas tropas, D. Nuno Álvares Pereira sabe que tem pelo menos uma vantagem. Escolher onde. Quem visita o local descobre logo a esperteza de D. Nuno. Aljubarrota é uma colina estreita, com acentuados desfiladeiros dos lados. É ali que ele desafia o inimigo, forçando-o a atacar. Para dar-lhe combate, as linhas da vanguarda castelhana têm de afunilar-se. E perdem a vantagem dos números. Caindo em pequenas covas dissimuladas, cavadas na véspera pelos portugueses, os cavalos espanhóis derrubam seus cavaleiros, agora à mercê dos arqueiros e besteiros de D. João. A batalha, que começara sob um sol inclemente de agosto, termina antes da noite. O que resta das forças castelhanas é dizimado pela população das redondezas.

Este é o drama que, com riqueza de detalhes e profusão de pormenores, o guia que nos leva a andar pelo terreno da batalha, nos conta. Em diversos pontos, cenas do acontecido, colocadas em lunetas cuidadosamente localizadas, nos dão uma viva perspectiva do confronto. Uma bela e inesquecível aula de história sobre um dia decisivo. Tivesse D. Juan de Castela vencido, o capítulo seguinte da Humanidade, as Descobertas, teria sido uma aventura exclusiva da Espanha.

E nós brasileiros estaríamos hoje a hablar español...

Oswaldo Pereira
Novembro 2016










quarta-feira, 9 de novembro de 2016

O ELEFANTE NA CASA BRANCA



O recado está dado. Basta olhar o mapa eleitoral dos Estados Unidos. Tirando a costa oeste, dois estados sulistas (Colorado e Novo México), e a Nova Inglaterra, o povo americano mandou sua mensagem ao resto do Mundo. F...K YOU!

Há dois anos, quando Donald Trump apareceu como postulante a uma vaga para concorrer à Presidência pelo Partido Republicano, toda gente achou graça. Inclusive os próprios republicanos. A imprensa troçou, os snobs do Establishment caíram na gargalhada, os comentadores políticos fizeram blagues, os cartoonists tiveram um prato cheio. Tudo era motivo de diversão. O discurso era populista demais, naïve demais. As propostas eram inconsequentes demais, xenofóbas demais. Até o cabelo era louro demais.

Quando estive nos States, em janeiro, Donald Trump já havia comido pelas bordas a maioria dos outros pré-candidatos do Partido e se apresentava como provável candidato à Casa Branca. A TV já não o tratava mais como uma brincadeira. Num texto que escrevi então fiz esta observação.

"En passant. Assisti há dias a uma entrevista do Donald Trump no canal Fox. Aos que acham que ele não passa de um bufão e que suas chances eleitorais são quase nulas, atenção! O cara é extremamente articulado, defende suas posições com os pés no chão e com a cabeça bem firme em cima dos ombros. É perigoso porque não tem nada a perder e diz o que muito americano da Middle America gosta de ouvir. Não estou fazendo qualquer comparação de fundo ideológico, mas ainda em 1933 tinha muita gente na Alemanha que classificava um certo político extremado da Baviera como um bufão e sem a menor hipótese de chegar ao poder."

Agora, ele chegou lá. E o Mundo entra em choque.

Se Trump mantiver a cartilha que usou como plataforma de campanha, os Estados Unidos vão virar mais à direita e privilegiar o Grande Negócio, e serão mais protecionistas e isolacionistas. Desmontará alguns dos legados de Obama, especialmente o Obamacare. Como terá maioria no Congresso, ao contrário de seu antecessor, poderá fazer praticamente o que quiser. China, Comunidade Europeia e NATO terão agora um parceiro indigesto e um negociador impiedoso.

Isto a gente já sabe. Mas, o que me preocupa mesmo é o fato de que Donald Trump chega ao ponto máximo da hierarquia política americana sem jamais ter ocupado sequer um cargo eletivo, seja como Governador ou membro dos congressos, estaduais ou federais. Sua experiência como administrador público é zero. Deverá, portanto, cometer erros. Meio como o proverbial elefante numa loja de louças (não por acaso, o elefante é o símbolo do Partido Republicano...)

Só que a loja é o nosso planeta, e a louça somos nós...

Oswaldo Pereira
Novembro 2016


sábado, 5 de novembro de 2016

DEMOCRACIA





«Antônia?! Ué, de novo aqui no ZanziBar? Veio de vez ou de férias?»







«Nem uma coisa nem outra, amigo. Vim votar...»








«Como é que é?! Tás brincando. Você se abalou dos States e veio para o Rio votar?! Em quem, posso saber?»

«Em ninguém, votei nulo nos dois turnos.»

«Agora eu me perdi de vez. Você voou dos Estados Unidos até aqui para votar e anulou o voto?  Peraí, é alguma pegadinha, não é?»

«Que pegadinha coisa nenhuma. Vim exercer meu direito como cidadã brasileira e carioca. Votar. Exprimir democraticamente minha vontade. Participar do processo. Usar as prerrogativas constitucionais que meu país me confere para demonstrar meu repúdio aos candidatos e... Por que você está abanando a cabeça, falei alguma besteira por acaso?»

«Antônia, my darling, estes meses lá no nosso grande irmão do Norte devem ter mexido com a tua linda cabeça. É compreensível. Estar vivendo na maior democracia do mundo, ainda mais agora, em plena campanha para a Presidência, assistindo ao grande espetáculo midiático, às convenções partidárias, aos gloriosos debates, ao...»

«Deixe de ser o cínico de sempre. Qual é o teu problema, cara? És contra a Democracia? Vai ver, preferes algo mais bolivariano, ou até gostas do Fidel...»

«Menos, Antonia, menos... Você sabe que não é nada disto. É que você, como muita gente que conheço, confunde Democracia, com D maiúsculo, com isso que temos aqui.»

«E tem diferença? Democracia é um conceito único, significa a mesma coisa, aqui, nos States ou na Conchinchina. É o governo do povo, pelo povo e para o povo.»

«O God! Lá vem você com o discurso do Lincoln. Por que não citar também Sócrates e Platão? Você está se esquecendo de um pequeno detalhe. Democracia pressupõe que o povo tenha consciência de sua responsabilidade na hora de eleger os seus representantes, aqueles que irão governar em seu nome. Que se predisponha a exercer uma permanente vigília sobre a atuação de seus eleitos. Que saiba profundamente quem eles são, e não se basear só nas baboseiras que dizem na hora da campanha eleitoral. Que estabeleça uma relação de causa e efeito entre a qualidade de seu voto e o tipo de legislação que irá governar seu dia-a-dia. Saber que seu futuro, imediato ou a longo prazo, vai depender da sua escolha.»

«É não é isto que temos hoje? O povo indo livremente votar, o espetáculo de um dos maiores colégios eleitorais do planeta exercendo o seu direito?»

«A imagem é linda, mas não é bem assim. Prá já, o voto aqui é obrigatório e...»

«Então, e não é o certo? Obrigar as pessoas a fazer a escolha, a entrar no jogo democrático, força-las a decidir, a participar da vida nacional...»

«É claro que não! A maioria vai votar como se fosse desincumbir-se de uma obrigação chata. Vota rápido e sem pensar, para ir logo à praia. Dez minutos depois, sequer se lembra em quem votou. Se o voto fosse voluntário, só os que estivessem preparados, e interessados, iriam participar do processo de escolha. A qualidade do voto seria muito maior.»

«Discordo. Inteiramente. A obrigatoriedade do voto faz com que as pessoas acabem aprendendo a mecânica, e a importância, do voto universal. O único caminho para a boa democracia é a má democracia. É um processo, um aprendizado. Não foi Churchill que disse a Democracia é a pior forma de Governo, excetuando-se as demais?»

«Churchill, Lincoln... Você está hoje cheia de citações. Vou lhe dar uma. A Democracia muitas vezes significa o poder nas mãos de uma maioria incompetente. George Bernard Shaw. Sabe o que ele queria dizer? Que sem educação, a Democracia pode ser um desastre.»

«Meu Deus. Só falta você citar o Pelé. O brasileiro não sabe votar. Me poupe.»

«Bem..., não adianta ficar aqui discutindo. Vai voltar para Nova Iorque?»

«Só se o Trump perder. Se ele ganhar, espero que me citem dizendo. O americano não sabe votar....»


Oswaldo Pereira
Novembro 2016