quarta-feira, 20 de março de 2013

BEATLES & BOND







No dia cinco de outubro de 1962, um raio cósmico deve ter passado pelos céus de Londres.
Explico. Nesse dia, estreou nos cinemas da cidade o filme Dr. No e foi lançado nas lojas de discos um compacto tendo de um lado a música P.S. I Love You e do outro Love Me Do.
(Nota do Tradutor: Compacto, galera, era um disco de vinil pequeno que girava num objeto chamado toca-discos a 45 rotações por minuto e tinha uma música só de cada lado.)

Naquele dia 5, é bem provável que os dois fatos tenham ter passado despercebidos para a maioria dos londrinos. Hoje, mais de 50 anos depois, todo mundo sabe do que eu estou falando pois ambos são História. Cada um deflagrou seu terremoto, criando duas mega Manias  planetárias, legiões de aficionados, seguidores e copiadores. Ícones absolutos da segunda metade do Século Vinte, influenciaram poderosamente as maneiras de vestir e de estar, de cantar e de tocar, de pensar e de viver da sua geração.

O disco marcou o início da carreira fonográfica e artística dos Beatles. Já então na formação com a qual iria dominar o mundo, tendo Ringo Starr na bateria, a banda tomou de assalto as paradas de sucesso, empresariada por um não menos gênio Brian Epstein. Falar mais sobre o assunto seria chover no molhado, pois a trajetória do conjunto está contada em milhares de livros, sites, documentários, filmes e só alguem que tenha morado incomunicável numa caverna nos últimos 50 anos poderá desconhecê-la.
O filme foi o primeiro da mais vitoriosa série de todos os tempos, dando vida a Bond, James Bond, o herói implacável, destemido e charmoso criado por Ian Fleming. Partindo do orçamento pequeno de Dr. No, as produções subsequentes tornaram-se suntuosas, na medida em que a audiência se multiplicava por milhões ao redor do globo e o público exigia peripécias cada vez mais mirabolantes. Uma longa lista de endorsements comerciais fomentou o estilo Bond de ser, vendendo carros, cigarros, relógios, pastas executivas, temas musicais, champanhes e vodka martinis para seguidores ávidos por absorver a destreza sedutora do agente secreto.
O que realmente marcou estes dois movimentos foi o fato de que eles não se resumiram a um simples modismo, como tantas outras febres que assolaram as décadas a seguir. Hoje, é quase uma convicção generalizada crer que a música genial dos Beatles viverá para sempre e que, daqui a uns duzentos anos, será reverenciada como atualmente reverenciamos a música de Beethoven, Bach e Brahms (só para ficar na letra B...). E que 007, tendo sobrevivido, mais que às armadilhas de seus vilões, ao esgotamento das obras de seu criador e a uma sucessão de atores, se perpetue nas telas, principalmente depois do recente sucesso conseguido por Skyfall.

O curioso é que, tendo feito parte da indústria de comunicação durante todos estes anos, só por duas vezes Beatles e Bond reconheceram a existência um do outro. A mais notória foi a escolha de Paul McCartney para compor o tema de Live and Let Die (1971).

A outra, talvez pouco conhecida até dos mais aferrados bondmaníacos, é uma cena de Goldfinger (1965), na qual  Bond faz uma referência pouco elogiosa ao quarteto. Por preceder uma das imagens mais marcantes do cinema de ação de todos os tempos, a figura de Jill Masterson pintada de dourado em cima da cama, é provável que quase ninguém se lembre do diálogo. Para avivar a memória, aí estão eles, cena e diálogo.


James Bond
It's lost its chill!  (Perdeu o seu frescor!)
Jill Masterson
Why, you! (Ora ,você!)
James Bond
There's another in the fridge (Há uma outra na geladeira)
Jill Masterson
Who needs it? (Quem precisa disto?)
James Bond
My dear girl, there are some things that just aren't done. Such as drinking Dom Pérignon '53 above a temperature of 38° Fahrenheit. That's as bad as listening to the Beatles without earmuffs....(Minha querida, existem coisas que simplesmente não devem ser feitas. Como beber Dom Pérignon ´53 acima de 4 graus centígrados. É tão ruim como ouvir os Beatles sem protetores  de ouvido...)

Só posso concluir que 007 não entendia de música...


Oswaldo Pereira
Março 2013

segunda-feira, 18 de março de 2013

PAPO DE BAR - NOSTRADAMUS

 
 
 
 
«Quem me contou foi a Antonia»
«E você acreditou...»
«Piamente. Afinal, a Antonia não mente»
«Não? E não foi ela que disse que ia cair um asteróide na Terra no dia 21 de dezembro e acabar com o mundo?»
«E não caiu?»
«Caiu foi um em fevereiro, uma pedrinha que não matou ninguém»
«E você queria que matasse?»
«Não é isso. Só estou dizendo que o tal asteróide da Antonia não apareceu»
«OK, não exatamente como ela disse, mas na mesma semana que a sua “pedrinha” caiu na Rússia, um raio caiu no Vaticano e o Papa renunciou. Renunciou, ouviu bem, uma coisa que não acontecia há 700 anos»
«Quatrocentos. E isto quer dizer que já aconteceu antes e o mundo não acabou»
«Cara, você não vê? Um meteorito na Russia e um raio no Vaticano. Existe coisa mais reveladora? O materialismo e a espiritualidade atingidas ao mesmo tempo. Os comunistas por sua doutrina ateia. A Igreja pelos seus pecados. É ou não é um prenúncio?»
«Prenúncio de que?»
«De que Deus fartou-se dos desmandos do Homem e quer zerar a pauta. E está avisando a toda a gente»
«Não há dúvida, você fritou. E a Antonia também»
«Quer mais sinais? Um Presidente negro nos Estados Unidos, as duas Coréias voltando a brigar, o ressurgimento do Islã, o Ahmadinejad pertinho de construir sua bomba, as geleiras retraindo numa velocidade nunca vista, o desaparecimento das abelhas na Bélgica, França, Italia e em vários outros países»
«E daí? O Obama já está na Casa Branca há mais de quatro anos. Acabou de ser  reeleito, numa boa. As Coréias nunca assinaram a paz e sempre estiveram naquele empurra-empurra na fronteira. O Irã de repente vai construir a bomba atômica, que hoje pode ser montada num quintal. O Paquistão já tem e nem por isso o mundo treme. A história do aquecimento global já foi entendido como um fenômeno cíclico que se repete regularmente há milhões de anos. E que diabos tem o desaparecimento das abelhas na Europa a ver com o fim do mundo, eu não consigo enxergar» 
«É o que dizem... O pior cego é mesmo o que não quer enxergar. Olha cara, converse com a Antonia. Ela é uma expert no assunto. Já leu tudo, inclusive Nostradamus. No original»
«Esse é que é o problema. Nostradamus falou um monte de ambiguidades, que podem tanto dizer uma coisa como outra. Depois que elas acontecem, há sempre um cretino que interpreta um verso dele de acordo com o acontecido. É como a previsão do tempo. Amanhã teremos bom tempo com eventuais pancadas de chuva. O sol pode aparecer entre as nuvens. Claro, assim acertam sempre»
«Tá legal. Mas, e o novo Papa, hein...hein?»
«De novo, não... O que é que tem o novo Papa? Já sei! É argentino...»
«Nada disso. A Antonia já consultou os livros. tudo lá. A começar pela data. Ele foi escolhido no dia 13 do 3 de 2013. Se você somar estes números, dá 13. Papa Francisco tem 13 letras. Ele tem 76 anos. Sete mais seis dá treze. E Nostradamus não foi ambiguo quando disse que o último Papa seria negro»
«Ahá! vendo. O argentino é mais branco do que eu. Nostradamus deu uma bola fora...»
«Você é que se engana, meu caro. O Cardeal Bergoglio é jesuita. E você sabe como sempre foi chamado o Superior da Companhia de Jesus? O Papa Negro...»
«My God, é muita imaginação. A Antonia devia ganhar o Oscar de roteiro original. Daqui a pouco, ela vai dizer que o fato dele ser o ducentésimo sexagésimo sexto papa também é um sinal...»
«Mas é claro que é! 66 é o número cabalístico da besta. Nostradamus escreveu que...»
«Eu desisto...»
 
 
Oswaldo Pereira
Março 2013

CIDADES QUE DÃO MÚSICA I




SAN FRANCISCO


"If you're going to San Francisco
Be sure to wear some flowers in your hair…"
San Francisco. John Phillips, 1967

Se você vai para San Francisco, não deixe de usar flores em seus cabelos…"

HAIGHT-ASHBURY  

Eles ainda lá estão. Mais velhos, claro. Os cabelos estão brancos, mas ainda cheios de flores, as mulheres vestindo largas batas de seda pintada com rosas psicodélicas, os homens com suas jeans surradas e velhos casacos de couro. Eles ficaram. São os eternos hippies, sobreviventes do fantástico Verão de 1967, o inesquecível Summer of Love, quando centenas de jovens cantando slogans pela paz, "viajando" nos mais diversos alucinógenos disponíveis e pregando a nova Era de Aquarius invadiram esta parte da cidade. Nem desconfiavam que a sua mensagem iria ganhar um país, um mundo, marcar um época, inspirar uma geração. Hoje talvez nem fumem, à exceção de um ou outro baseado, cujo perfume acri-doce a gente sutilmente percebe quando entra em suas charmosas lojinhas. Para os maiores de 60 anos, é uma volta mágica ao passado. Posters, buttons, velhas fotos, Jimmy Hendriks, Janes Joplin, roupas da época, cordões e colares, "make love not war"… Se você ainda se emociona ouvindo "California Dreamin'", não deixe de visitar.

"I'm sitting on the Dock of the Bay
Watching the tide roll away…"
(Sitting on) The Dock of the Bay. Otis Redding & Steve Cropper, 1968

 “Estou sentado na doca da Baía, vendo a maré baixar ”…

 FISHERMAN'S WHARF/PIER 39 

Os leões marinhos saúdam o sol, enquanto ele pacientemente se prepara para mergulhar. Faz isso todos os dias, há zilhões de anos. O pier está cheio de fotógrafos amadores, namorados nem tanto, turistas descabelados pelo vento.  Outros mais devem estar andando pelo passeio do Embarcadero, comendo o obrigatório clam chowder in the sourbread bowl, (literalmente traduzido como creme de ameijoas dentro de um pão de massa azeda. Bem melhor do que possa soar na tradução, é o prato sãofranciscano por excelência. Jamais diga a um nativo daqui que você não gostou. Dá briga). Esteja também preparado para encontrar os tipos mais inesperados, estátuas vivas, camelôs falantes e bandas extraordinárias. Ande, olhe, escute.E se tiver tempo, olhe para o meio da baía. Entre a cidade e a outra margem, como diria Drummond "há uma pedra no meio do caminho". Uma pedra que é uma ilha, ou uma ilha que é uma pedra. Chama-se Alcatraz. Se já ouviu falar, o nome certamente lhe trará arrepios. Pois lá foi instalada, em 1934, a primeira prisão de segurança máxima dos Estados Unidos. Tipos simpáticos como Al Capone e "Machine Gun" Kelly foram alguns de seus "hóspedes". Até sua desativação, em 1963, e sua transformação numa atração turística, não há registro oficial de alguma fuga bem sucedida. Entende-se. Além de ser quase impossível burlar a vigilância e pular n'água, a ilha era cercada por atentos e famintos tubarões.

"I guess you could say that it was fate
How else could I have met my love on the Golden Gate…"

Got The Date On The Golden Gate. Mel Torme, 1949

"Eu acho que se pode chamar de destino. De outro modo, como poderia eu ter encontrado meu amor na Golden Gate…"

 

PONTE GOLDEN GATE

Ela deve ser o sinônimo visual da cidade. Quando se pensa São Francisco, se pensa na ponte, pintada de vermelho, sublime e olímpica sobre a entrada da baía, primeira a receber o fog que vem do mar e a dar as boas vindas aos navios que chegam, e última despedir-se deles quando se vão e dos suicidas que dela se jogam. Em todo o mundo, é a campeã na preferência deles. Foi terminada em 1937, custando US$1,3 milhões menos do que os projetados US$35 milhões. Coisa de gente honesta e competente. São 1970 metros de comprimento, que você pode atravessar a pé, de bicicleta, moto, automóvel, como quiser. Vale a pena. Do outro lado lhe espera uma fantástica vista da cidade e uma graciosa vila chamada Sausalito. A extensão verde desta área turística é a colina do Presidio, que foi dos índios, dos espanhóis, dos mexicanos e, a partir de 1846, do Exército americano. Árvores, silȇncio, sombras, belvederes, passado e história. Tudo junto. Numa das pontas do imenso parque, está um inesperado templo greco-romano no melhor estilo dos filmes épicos, chamado Palace of Fine Arts (Palácio das Belas Artes). Passeie por aí, deite na grama como os da terra, fotografe e fotografe-se. Quer mais uma área verde? Ande até o Golden Gate Park. Leva o nome da espetacular ponte e é tão fantástico quanto ela. Se você tiver fôlego e o dia estiver claro, siga para oeste. Quando o parque terminar, você estará na praia, de frente para o Pacífico infinito. Ninguém é de ferro, certo? Então, tome um vodka martini alla James Bond no Beach Chalet, olhando o vento entortar as árvores na marginal da Great Hyway e pentear de branco as ondas.


"To be where little cable cars
Climb halfway to the stars…"

I Left My Heart In San Francisco. George Cory & Douglass Cross, 1954

"Estar onde os bondinhos sobem até meio caminho para as estrelas…"


PASSEIO DE BONDINHO

Eles sobem, mesmo. Até o topo da Nob Hill, passando pela chinatown, pelo labirinto florido da Lombard Street, indo até a Mason. Uma vertigem gostosa, ver as docas lá embaixo e o céu azul lá em cima. No estribo, a coisa é ainda mais excitante. Sem dúvida, a melhor maneira de ver um pouco do centro da cidade. No ponto final, deixe-se ficar pela zona do mercado, compre um pão na Boudin e aceite ser envolvido pela tontura macia de estar numa das cidades mais agradáveis do planeta. E prometa-se voltar.



Oswaldo Pereira
Maio 2012

quinta-feira, 14 de março de 2013

ENCRUZILHADAS






Today is the Tomorrow you worried about Yesterday
(Hoje é o Amanhã que o preocupava Ontem)
Dale Carnegie

Ando no túnel do tempo. Avançando, avançando sempre. Não há retornos, não há resets...
Mas, eu queria voltar. Não para fazer ou desfazer. Só para olhar. Queria ver-me de novo, subindo alguns degraus, tropeçando em outros, enfrentando encruzilhadas, identificando os vetores que definiram o meu futuro, que agora é o meu passado...
Alguns foram tão sutis, tão aparentemente insignificantes que, na hora, nem percebi o mistério que carregavam. Foram esquinas que dobrei sem hesitação, com o coração leve e desatento, o olhar de repente hipnotizado por uma quimera, uma miragem distraída.

Assim somos nós. Em qualquer momento da vida, somos o produto final das nossas opções precedentes, nosso destino o resultado de uma sucessão de caminhos escolhidos às vezes ao acaso. E há escolhas que determinam amor ou desespero, fortuna ou desgraça, paz ou desassossego, vida ou morte.
Como não fomos aquinhoados com a faculdade de pressentir o porvir, perdoem-me os videntes, é uma maravilhosa ousadia, tão intrínseca ao ser humano, o ato de decidir, a cada segundo, se vamos pela esquerda, pela direita ou seguimos em frente. Evidentemente, em alguns momentos, valemo-nos de experiências vividas, informações armazenadas, cálculos educados de probabilidades para darmos o inevitável passo. Em outros, na inexistência daqueles arrimos e sem o benefício de um conselho confiável, acabamos por seguir o que carinhosamente chamamos de instinto ou, em outras palavras, a cara e a coragem. No fundo, temos a incômoda certeza que ambos os procedimentos nada nos garantem.

Será isto justo? É esta a proposta? Irmos pela vida às cegas, apostando contra um invisível croupier na roleta de um cassino aleatório? Termos sempre pela frente um imenso ponto de interrogação chamado Amanhã?  
Há os fatalistas, aqueles que convivem confortavelmente com a situação. Há, no ponto oposto do espectro, os que não a aceitam e tentam driblá-la, acreditando que podem redesenhar os desígnios e o mapa de suas estradas.

E há a imensa legião dos que se assustam de vez em quando, toda vez que a vida lhes prega uma peça ou lhes prepara uma surpresa, cujo sabor amargo ou doce nada teve a ver com os seus hábitos ou suas escolhas.

Virar uma esquina a cada momento. Não podemos fugir a isto. Só de uma coisa detemos o livre arbítrio. Se vamos ter medo ou esperança, recear o perigo ou achar que o melhor ainda está para começar. Se isto faz a diferença, não sei. Mas acho fascinante o ditado francês que avisa: après-demain, demain sera hier... (depois de amanhã, amanhã será ontem...) 
Oswaldo Pereira
Março 2013 

quinta-feira, 7 de março de 2013

VETERANO DE GUERRA

Há exatos 50 anos, um fato pitoresco mexeu com as forças armadas brasileiras. Desde o final da década de 1950, o Brasil vinha aumentando significativamente a exportação de lagostas, abundantes no litoral nordestino, enquanto, no resto do mundo, a pesca estava em declínio. A partir de 1961, companhias francesas solicitaram, e obtiveram, do Governo brasileiro, uma licença para desenvolverem pesquisas na região, visando coletar dados que permitissem uma recuperação das populações do crustáceo em águas internacionais. Pouco tempo depois, a “pesquisa” transformara-se em efetiva captura de lagostas ao longo da costa brasileira.

O Brasil reagiu. Navios da Marinha passaram a patrulhar o litoral e, inevitavelmente, confrontos quase ocorreram, com alguns barcos franceses sendo detidos e obrigados a entregar a carga. Em janeiro de 1962, a corveta brasileira Ipiranga esteve a ponto de por a pique o pesqueiro francês Cassiopée. O tom subiu. Num gesto de boa vontade, o então Presidente João Goulart resolveu perdoar os pescadores e mandou devolver-lhes o que tinham apanhado. No Nordeste, a grita foi geral. Associações de pesca de Pernambuco e de outros estados reclamaram duramente contra o que taxaram de concorrência desleal, dado que os barcos estrangeiros eram muito mais bem equipados que os nossos. Além disso, argumentavam, os franceses praticavam a pesca de arrasto, considerada extremamente predatória e prejudicial.

João Goulart recuou. E foi a vez da França (na época, governada por ninguém menos que De Gaulle) se enfurecer. A famosa frase “o Brasil não é um pais sério” nasceu aí, embora até hoje haja controvérsias sobre quem efetivamente a proferiu.

Paralelamente, em foros internacionais, brasileiros e franceses discutiam uma questão fundamental: a lagosta nadava ou andava? A importância desta definição era crucial. Se a lagosta nadasse, como defendiam os europeus,  ela seria peixe, uma criatura do mar, que, naquela época antes das 200 milhas da Revolução de 64, era internacional. Se, por outro lado, ela andasse, seria um crustáceo, um ser da plataforma continental nordestina e, portanto, brasileira. Os franceses contra atacavam, afirmando que capturavam o bicho quando ele, ao pular para cobrir algumas distâncias, nadava. Isto provocou a antológica pergunta do representante brasileiro, o almirante e respeitado oceanógrafo Paulo Moreira da Silva: e por acaso,o canguru, quando pula, vira ave?

Enquanto os debates descambavam para o perigoso terreno da galhofa, as providências militares progrediam. Em fevereiro de 1963, De Gaulle resolveu falar grosso e despachou para o Brasil uma força tarefa com o porta-aviões Clemenceau à frente. Como resposta, o nosso cruzador Barroso e mais alguns navios partiram para o Nordeste. Em Recife, o IV Exército mobilizou-se e, em primeiro de março, todos os quartéis da costa brasileira entraram em prontidão.

Mas, por que eu estou contando isto?

Porque naquele mesmo dia primeiro de março de 1963, eu era o Oficial de Dia do 2º Grupo de Artilharia de Costa, também conhecido como Fortaleza de São João, na Urca. Para quem não é versado em rotina castrense, a função confere ao seu ocupante a responsabilidade sobre toda a área e sobre todas as atividades de guarda, manutenção e vigilância do quartel. Mas, embora a Fortaleza fosse enorme, englobando todo o terreno situado na entrada oeste da baia da Guanabara, inclusive o sitio histórico do Forte Velho, o serviço prometia ser calmo. O Carnaval acabara há pouco mais de uma semana, a maioria dos soldados já estava em final de incorporação e havia previsão de bom tempo. De repente, tudo mudou. A ordem de prontidão foi-me dada por telefone, já tarde da noite, diretamente do Ministério da Guerra. Depois das identificações de praxe, segui o regulamento, entrando em contato com o meu coronel comandante e convocando todos os oficiais da unidade.  E aí seguiu-se a azáfama pertinente à preparação para uma eventual ação militar: tropas equipadas, postos guarnecidos, sentinelas reforçadas, munições prontas, linha de tiro preparada. Depois do efetivo contabilizado, os portões foram fechados.

Foram dias de expectativa. Cadê os franceses? Alguém já viu o Clemenceau?

Mas, ninguém é de ferro. E o quartel, além de ficar num dos lugares mais bonitos do mundo, possuía dentro de seu território duas praias paradisíacas, quadras de vôlei, a melhor escola de educação física da época e um serviço de refeições de primeira.

Em 10 de março,  tudo estava resolvido. Sem um tiro de parte a parte, os franceses foram embora. Vinte dias depois, eu terminava o estágio na Fortaleza e o meu período no Serviço Militar. Dava baixa como tenente da reserva e “veterano” de guerra... Da guerra que, como Itararé, a  batalha que não houve, ficou apenas num rodapé da História. A Guerra da Lagosta.
Oswaldo Pereira
Março 2013

segunda-feira, 4 de março de 2013

"AMOUR" - IMPRÓPRIO PARA MAIORES DE 60 ANOS

As primeiras imagens em movimento, que mostravam a chegada de um trem na estação de La Ciotat, foram exibidas pelos irmãos Lumière, em 1895, causando comoção nos poucos espectadores presentes ao Salão Grand Café, em Paris. Muitos levantaram-se de suas cadeiras, convencidos de que a locomotiva realmente os iria atropelar. 

Rapidamente, a invenção conquistaria o interesse de visionários e empreendedores, que logo perceberam as infinitas possibilidades que a nova mídia lhes abria para aplicar sua genialidade ou construir sua fortuna. 
O que se seguiu ultrapassou a imaginação. O poderoso imã magnetizado pelo fascínio da tela viva atraia multidões sequiosas de se entregarem à catarse de um escapismo à sua realidade simples, às vezes dura, senão cruel.
Pois foi isto que o cinema vendeu, a partir das viagens interplanetárias de Georges Mélliès, tão bem homenageadas por Martin Scorsese em “Hugo”. O encanto inspirado pelas aventuras de Douglas Fairbanks, pelos olhos mortiços de Rodolfo Valentino. O riso imparável deflagrado por Chaplin, Keaton, Lloyd. Por um trocado, podia-se comprar uma viagem na sala escura, comédia ou o sonho, nada que tivesse a ver com o que acontecia para lá da bilheteria. Assim, o cinema atravessou as correrias dos anos 20, o glamour e o noir da década de 30, o romance e o heroísmo da guerra.  
A partir de meados dos anos 50, houve uma ruptura. Com o nome de nouvelle vague ou de neo-realismo, a tela começou a mostrar também a vida como ela era, a saga do homem comum e seu enfrentamento a mãos nuas com a vida. Rosselini, Sica, Visconti, Goddard, entre outros, operaram a mudança e inspiraram uma geração de cineastas dispostos a expor a crueza do mundo. 
E é esse realismo, seco, implacável, que vamos encontrar em “Amour”. Os planos estreitos, o ritmo de adagio, a interpretação corajosa e o diálogo contundentemente simples revelam a velhice sem photo-shop. Quem já passou dos sessenta anos e vai ver o filme, é apanhado pelo relato fiel de uma decadência física justamente no momento em que, muito provavelmente, vive, ou viveu, uma situação parecida com os seus pais e/ou começa a encarar a inevitabilidade de seu futuro. 
Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva mostram, literalmente, a cara. A câmera passeia impiedosa por seus rostos, suas mãos, seus cabelos. Faz o mesmo com o apartamento onde moram os personagens, as paredes encardidas da cozinha, o velho piano, a aparelhagem de som ultrapassada. Os longos silêncios, a escuridão, o medo, palpáveis, presentes. Incomodam por serem tão reais, trazidos para tão perto pelos atores, principalmente por ela, magnífica. Se a Academy não olhasse só para o seu umbigo, a teria premiado. Um Oscar só, não. Dez.
Um grande filme, sem dúvida. Mas, para ser visto por quem está longe da velhice e ainda se sente um pouco imortal e imune aos seus percalços. Eu sai do cinema querendo desesperadamente assistir a um musical, tipo Cantando na Chuva, Sete Noivas para Sete Irmãos. Ou, ainda, vê-los, Trintignant  em Un Homme et Une Femme (1966), um drama meloso em que ele é um sedutor piloto de corrida, e Riva em Hiroshima, Mon Amour (1959), um dos maiores filmes-cabeça de todos os tempos. Ambos resplandecendo de juventude.
Assim, se você tem mais de sessenta anos e decidir ver Amour, compre também ingresso para a sessão seguinte de uma boa comédia.
Oswaldo Pereira
Março 2013

sexta-feira, 1 de março de 2013

RETALHOS

 
Ela levanta-se da poltrona, dá um longo suspiro e, lentamente, como se cortasse um pouco da vida, fecha a janela. Faz desaparecer um raio de sol poente. O quarto cai na penumbra.
«Estava uma linda tarde...»
 
A voz dela é triste, cansada. Percebe-se que carrega anos de desventuras no peito. O vento agreste de suas renúncias deixou-lhe marcas. No rosto, no corpo. Na alma.

Acende o pequeno abajur. Uma luz mortiça banha alguns contornos do quarto abafado. A borda de uma cortina velha, as marcas de umidade na parede, a colcha de retalhos.
“Retalhos... Sou feita de retalhos...”, pensa, enquanto um quase soluço sobe para a garganta.
 
 
Retalho de seda vermelha, debruado de uma fita de cetim dourado
A cerveja morna a deixara num limbo desconhecido. Por que aceitara bebê-la? Só porque ele era moreno, parecido com aquele artista... Como era mesmo o nome dele? Não o do artista. O dele. Antônio. Sim, era isto, Antônio. A música era lenta, as luzes suaves. Do limbo passara para o purgatório de uma cama de motel. Primeira vez, primeira dor. Tudo muito rápido. Perguntou ao espelho do banheiro. «É isto?»
 
Retalho de linho branco bordado com corações
...na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida... Capela linda e iluminada, lírios e convidados misturando perfumes. Ela olha para ele e tenta ver o futuro, mas só consegue enxergar o seu rosto, que não é moreno, nem ele se chama Antônio. Ela sorri. Será amor? Não tem certeza. Conheceram-se, curtiram-se, deram-se bem na cama. Acha que dá para o gasto. Depois, o amor vem. Depois se vê...
 
Retalho de cambraia cor-de-rosa com motivos infantis
Êxtase. A mansa sucção em seu mamilo transforma-lhe o corpo exausto, enchendo-o de força e determinação. Agora, pode ver o futuro. É MÃE! Está pronta para a felicidade de sofrer calada, dar corpo e alma sem retorno, ceder sempre, amar de graça, perdoar tudo. Serão muitos retalhos de desenhos intrincados, angústia, glória, orgulho, medo, preocupação, entrega. Sou MÃE...
 
Retalho de percal lilás com listas amarelas
Ela olha para o relógio. Não queria ter olhado, mas a angústia vira-lhe o rosto na direção do inevitável. Ele não vem. Não virá mais. O abrigo dele não é mais o seu corpo, transformado pela prisão da rotina da casa, dos cuidados com a filha, pela falta de opções, pelo desânimo. O dela, da outra, é resplandecente de juventude, talhado em academias. Solar. No fundo da noite do leito vazio ela tenta achar uma estrela.  Recomeçar, ressurgir, re.... Será que vou conseguir?
 
Retalho de morim azul-escuro
“Mas, por que, filha?” Ela sabe que não haverá resposta. Oportunidade, carreira, independência, simples sabor de aventura. A frase gasta - criamos os filhos para o mundo. Quem foi o idiota que disse isto? Provavelmente, não os tinha. Nem filhos nem fibras a serem dilaceradas pela despedida. Um beijinho e tem diante dela olhos que coriscam de ansiedade, como asas que se abrem para o vôo. Adeus...
 Bom dia, solidão. Bom dia, monstro.
 
Retalhos de sarja em várias cores desmaiadas
Retalhos iguais de dias iguais. Semanas resvalando pela mesmice da rotina, do repeteco incessante de noites, madrugadas, manhãs e tardes sem cor nem som, uma gravação engasgada de um monótono ritmo repetido que lhe empurra a vida. Para onde?

Ainda há alguns pedaços de tecido para mais retalhos. Ela não sabe quantos serão.
 
Ninguém sabe...
 
 
Oswaldo Pereira
Março 2013