segunda-feira, 29 de março de 2021

A MOSCA AZUL

 


Era uma mosca azul

Filha da China ou do Indostão

Que entre folhas brotou de uma rosa encarnada

Em uma noite de verão

Estes são os primeiros quatro versos do poema “A Mosca Azul”, escrito por Machado de Assis em 1901. Leve, ligeiramente jocosa e ambientada nas terras mágicas do oriente, a poesia conta a história de um poleá, isto é, um plebeu no antigo Malabar, que certo dia vê zunir ao redor de si uma mosca de asas de ouro e granada.

Este inusitado acontecimento faz com que o pobre indivíduo, enlevado pelo zumbido e o fulgor do moscardo, imagine-se rei de Cachemira, com todas as riquezas, os prazeres e o poder inerentes à sua sublime posição. Ao leva-la para casa, e na tentativa de dissecá-la para poder apoderar-se de seus sortilégios, ele termina por matar a mosca que, ao final, revela-se um simples e desprezível inseto.     

A partir daí, inspirada na composição poética de Machado, a figura mítica da mosca azul passou a ser aplicada às aspirações exageradas, aos sonhos ambiciosos e aos propósitos desmesurados. Irresistivelmente, a expressão avançou para o meio político e caiu como uma luva para descrever a miragem de poder que, muito comumente, inebria e enlouquece vários de nossos homens públicos.

A proximidade de eleições para a Presidência do país, por exemplo, tem o condão de povoar o ar nacional com enxames de moscas azuis.  Os recentes meses brindaram-nos com a revelação das picadelas de que conhecidas figuras pátrias foram vítimas e dos efeitos, por vezes desastrosos, que tal infecção lhes causou.

Luiz Henrique Mandetta infectou-se, mas logo os anticorpos da racionalidade eliminaram os efeitos da mordida. Rodrigo Maia teve febre alta depois da picada, mas, internado num asilo político, curou-se. A mosca rodou durante algum tempo a cabeça de David Alcolumbre, mas não lhe chegou à epiderme, dispersada que foi por potentes sprays desinfetantes. Ciro Gomes foi atacado pela mosca há anos e desenvolveu uma síndrome crônica. Para ele, não há remédio que resolva. Arthur Lira foi o mais recente caso de infestação. Ainda é cedo para diagnosticar a evolução de seu caso.

João Dória é o paciente mais curioso. Não se tem conhecimento de quantas picadas já sofreu, mas tudo leva a indicar que a dose absorvida por ele já revela níveis perigosos de distanciamento da realidade. Um caso quase perdido.

A ocorrência mais grave da doença da mosca azul, entretanto, foi a que acometeu o ex-Ministro Sérgio Moro. Talvez convencido de que sua resposta imunológica o defenderia de um desenvolvimento mais sério da enfermidade, deixou-se picar várias vezes. Hoje, está numa UPA (Unidade de Político Abandono) sem previsão de alta.

Há dias, entretanto, um fato novo veio alvoroçar a nuvem dos insetos azulados e, praticamente, afugentá-los. A reaparição no cenário sucessório (ia dizer brejo, mas deixa para lá...) de um sapo (outra vez, estou usando a imagem para se coadunar com a narrativa figurada deste texto. Longe de mim...), um gigantesco sapo, que irá engolir de uma só bocada todas as moscas e os por elas afligidos.

Oswaldo Pereira

Março 2021

segunda-feira, 22 de março de 2021

O SUICÍDIO DA GRANDE IMPRENSA

 


Sou do tempo pré-televisão (vejam se conseguem imaginar isso...)

In illo tempore, que é como, nas missas ainda em latim, se dizia naquele tempo, o jornal era o rei da informação. O rádio era o príncipe. Este verbalizava as notícias, em geral em tiradas rápidas e sucintas, como o decantado Repórter Esso, da Rádio Nacional, “o primeiro a dar as últimas”. Mas aquele aprofundava o conteúdo, esmiuçava os detalhes, enriquecia a reportagem. Havia periódicos com até duas edições diárias e o sonho de então de todo o jornalista era conseguir um “furo” sensacional, que o regalasse com o supremo prazer de gritar para as oficinas gráficas: parem as impressoras!...

Na segunda metade da década de 1940, com o término da guerra e o ideal democrático soprando forte no mundo ocidental, à Imprensa escrita e falada foi permitida a existência de jornais e emissoras de rádio de todas as cores políticas à disposição. O espectro era grande.

Mas, e aí está o importante mas, a expressão do pendor ideológico dos donos do noticioso era cingida ao espaço do Editor-Chefe. Era nos seus editoriais, ou mesmo nas colunas dos comentaristas alinhados com ele, que o fato era interpretado. O relato puro da notícia real procurava ser o mais isento possível. Num tempo sem imagens, a palavra escrita tinha de ser o elemento informativo mais descritivamente fiel ao acontecimento.

A expectativa natural era de que, com o advento das radiofotos, depois dos documentários filmados e, por fim, da televisão, a autenticidade do fato reportado ficasse auto evidente. Afinal, a imagem não mente...

Aos poucos, entretanto, e à medida que as técnicas de contextualização dominaram os meios de comunicação, a suposta garantia de isenção conferida pela imagem e a esperança de que o fato estaria preservado em sua pureza e sua verdade foram sendo erodidas pelas ilhas de edição e por textos dúbios e explicitamente tendenciosos.

Em maior ou menor grau, este é o atual panorama vigente na imprensa mundial e seria de se admitir que o Brasil experimentasse o mesmo fenômeno.

De uns tempos para cá, no entanto, a coisa tomou, neste nosso país, um viés mais distorcido e mais desonesto. Embora indesculpável, o ato de maquiar um evento noticioso poderia até ser esperado por parte da mídia nacional num ambiente político tão polarizado como o que vivenciamos no presente.

Mas, o que vemos não é só isto. Por um motivo que pode dever sua explicação a interesses corporativos contrariados, praticamente TODA a grande imprensa brasileira resolveu bater no Governo Bolsonaro. E está-se desincumbindo desse expediente da maneira mais cega e decididamente perigosa possível, ou seja, pela descarada omissão de sua função de informar, simplesmente desprezando a existência de certos acontecimentos que, na sua miopia profissional, poderiam favorecer politicamente o atual Presidente.

O impenetrável silêncio que dominou os meios tradicionais de comunicação, no dia em que grandes manifestações de apoio a Bolsonaro tomaram conta das cidades, é uma prova.

Qualquer que seja a sua preferência, mesmo como um ferrenho antagonista de tudo o que este Governo faz, não acredito que você possa nutrir um mínimo vestígio de confiança numa imprensa com esse comportamento.

Isto já seria desastroso, por si só. Mas, numa época em que a percepção da sociedade é de que as redes sociais constituem a sua fonte de atualização por excelência, isso é suicídio.

Oswaldo Pereira

Março 2021

terça-feira, 16 de março de 2021

AGUALUSA

 


Uma das consequências imediatas da decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, que anulou todos os processos contra o ex-Presidente Lula no âmbito da Lava-Jato, foi o acirramento da polarização que já crepitava em fogo não muito brando na sociedade brasileira.

Se o objetivo era botar mais lenha na fogueira, Fachin acertou em cheio. Corremos o risco de, daqui até outubro de 2022, convivermos com um país rachado, dividido e briguento. Como se a pandemia já não fosse suficiente. Portanto, apertem mais os seus cintos...

O jeito, pelo menos o meu, é tentar achar paz e tranquilidade dentro de mim mesmo, aproveitando os minguados nichos de tempo entre discursos e estatísticas, vociferações e controvérsias, lives e outras toneladas de notícias que tentam nos soterrar, para gozar da companhia de algum bálsamo de espírito. O meu preferido são os livros. Sempre foram meus amigos. Mesmo os mais chatos, os de mal com a vida e com o leitor, os irremediavelmente sonhadores têm seu lugar na minha estante. São como aquelas amizades forjadas na infância e na adolescência, das quais o nosso coração está sempre disposto a aceitar, e perdoar, as falhas e os defeitos.

Assim como revisitei Fernando Sabino há dias, desta vez meu encontro foi com “Os Vivos e os Outros”, do escritor angolano José Eduardo Agualusa (aliás, na minha ingênua concepção, alguém com este poético sobrenome só podia ser escritor...)

Não sei quantos os que lerão este texto já conhecem a literatura de Agualusa. Se você for daqueles que ainda não teve este prazer, e aprecia as delícias de uma rica descoberta intelectual, pelas mãos de uma prosa ágil e cativante, acione suas plataformas de busca na net e encomende esse livro.

Agualusa nasceu no Huambo, em 1960, e, ao lado do moçambicano Mia Couto, forma o pelotão de frente da extraordinária geração de autores surgida neste século na África de língua portuguesa.

“Os Vivos e os Outros” tem como trama central um festival de escritores africanos na ilha de Moçambique. Uma feroz e demorada tempestade acaba isolando-os do continente e do mundo. Confinados na ilha, passam a conviver uns com os outros e com seus personagens, embolando realidade e ficção em vários planos intertemporais, magistralmente criados por Agualusa.

É claro que não vou adiantar mais. Apenas revelo que o livro está semeado de diálogos simplesmente primorosos. São verdadeiros diamantes travestidos de palavras caídas do céu. Algumas dessas joias.

Se não for a tempo inteiro, ninguém chega a poeta – contesta Luzia, adiantando-se a Ofélia – Poeta não é ofício, é condição.

Somo escritores. Nosso trabalho consiste em absorver a luz, como as plantas. Em transformar a luz em matéria viva. Consegues escrever sem primeiro te encantares?

Não devemos ter medo dos lugares-comuns – diz Uli – Todo homem é um lugar-comum. Além disso, qualquer lugar-comum pode ser o mais raro dos lugares. Basta saber olhar.

Somos nós que construímos os mundos – grita Moira – Somos nós! Os mundos germinam dentro de nossas cabeças e crescem até não caberem mais, então soltam-se e ganham raízes. A realidade é isso, é o que acontece à ficção quando acreditamos nela!

Por estas e por muitas outras, “Os Vivos e o Outros” pode ser o companheiro ideal para atravessar uma tarde na penumbra de um abajur suave, um concerto ao fundo e com os ruídos do mundo do lado de lá desta nossa ilha...

Oswaldo Pereira

Março 2021

sexta-feira, 12 de março de 2021

INSEGURANÇA JURÍDICA




De vez em quando, este antigo ditado volta. Melhor dizendo, ele sempre está por aí, jocosamente nos observando, preparado para despontar, tão logo, neste sofrido Pindorama, alguém inventa absurdos e pirotecnias que só a nossa proverbial mansidão como povo resignado é capaz de aceitar.

“Se só existe no Brasil, e não é jabuticaba, é besteira...”

Ah!, quantas calinadas, quantos jabaculês, quantas quebradas de braço, quantos expedientes manhosos, quantas patranhas, aldrabices, gamelas, lorotas, potocas, maxambetas, petas e lambanças temos visto aqui prosperar em nome de um suposto jeito nacional de resolver as coisas.

Se eu sucumbisse à pachorra de elencar neste texto a longa lista das coisas que eu considero falsas jabuticabas, os meus minguados leitores teriam de percorrer páginas e páginas de uma leitura entediante.

Entretanto, há uma que não posso deixar de assinalar, não sem antes ressaltar o seguinte.

A existência de uma Suprema Corte é um apanágio do Estado de Direito. Nenhum país razoavelmente organizado numa sociedade democrática pode prescindir de um colegiado dessa natureza. Por definição, é esperado e aceito como premissa básica que sua em composição figurem os mais experientes e sábios juristas da nação.

Também por definição, essa Corte tem por função exclusiva se ocupar dos grandes temas do arcabouço legal vigente, principalmente na interpretação da Constituição, em seus níveis mais altos.

É assim no mundo civilizado. E é também assim que está previsto na nossa própria lei.

Mas...

Aí entra a jabuticaba.  O nosso Supremo Tribunal Federal resolveu investir-se de algo que, isto sim, só existe por estas bandas. Hoje, ele conseguiu arrebanhar para si várias instâncias. Numa auto proclamada concepção, para a qual o adjetivo esdrúxula é assaz débil para qualificar corretamente a imagem (e que eu já batizei de STI – Supremo Tribunal Imperial), atualmente seus membros, em várias ocasiões monocraticamente, interferem em casos muito abaixo da linha em que deveria se manter e agem como iniciadores da ação legal, instruidores do processo, julgadores e executores da sentença. E sem direito a recursos...

Um dos efeitos mais danosos deste distorcido comportamento é fazer aflorar na sociedade brasileira um sentimento enjoado de insegurança jurídica, justamente aquilo que uma Suprema Corte deveria impedir.

Esta última decisão do Ministro Edson Fachin é prova disto. Não estou sequer inferindo que possa ter havido poderosos interesses políticos nesta decisão. Poderia ser qualquer outro réu. O que me preocupa é a justificativa processual em que Fachin se baseou para proferir sua sentença. Se fosse um julgamento do mérito da acusação, eu até poderia aceitar. Afinal, para isso há as instâncias.

Mas, não. Fachin simplesmente anulou todo o rito processual, sob a alegação de que havia erro de competência na ação inicial. E isto significa o seguinte. Ou ele está equivocado, ou todos os quatro tribunais, com seus desembargadores e magistrados, que julgaram procedente e juridicamente hábil o processo, são uns ignorantes.

Bota insegurança jurídica nisso...

Oswaldo Pereira

Março 2021

segunda-feira, 8 de março de 2021

ELAS...



Às vezes, faltam palavras.

Para quem se mete a escritor (indevidamente) com eu, é como faltar o ar, uma apneia angustiante e desesperada.

 O que dizer? Como dizer?

A pedra de onde garimpo as mal traçadas linhas de minha prosa, já pequena por natureza, ou as rimas pobres e tortas de minha poesia capenga, está dura, impenetrável, um cascalho que não se tornará diamante, um granito negro e invencível.

Mas, hoje, especialmente hoje, eu preciso delas, de uma inspiração sublime, uma chuva de frases perfumadas e melodiosas que encharque minha pena virtual e escorra para o teclado deste laptop mudo, as trovas de um poeta endeusado suspiradas por misericórdia em meus ouvidos, e sua voz dizendo toma, leva, são tuas...

Mas, o que digo eu?

Nem assim, nem que todos os meus anseios de encontrar a estrofe encantada ou um parágrafo genial, com ou sem a ajuda de deuses da poesia e das gotas espalhadas por nuvens carregadas de magia, fossem atendidos, poderia eu encontrar a louvação certa que vocês, mulheres, merecem hoje. E sempre.

A vocês, é tudo devido. E é assim porque vocês dão vida. Já seria o suficiente. Mas, o eterno feminino da entrega a fundo perdido de um coração de mãe, as jornadas sobrepostas que sustentam lares e sonhos, a força imensa e insuspeitada que, durante séculos, enfrentou preconceitos, desrespeitos submissões e violência são coisas que as palavras (ah, as palavras, vãs palavras) não conseguirão jamais verbalizar.

O mais que eu consigo é isto. Uma tosca, mas reverencialmente sincera, homenagem.

 

Oswaldo Pereira

Março 2021

 

Obs.: Também nos anos anteriores, neste mesmo blog, eu fiz outras tentativas de achar a homenagem certa. Se quiserem conferi-las, aí estão os links.

quarta-feira, 3 de março de 2021

PANDEMIA - UM ANO

 


Há praticamente um ano, a Organização Mundial da Saúde, ainda à época uma entidade encarada com respeito por grande parte dos habitantes deste planeta, batizou a disseminação de um vírus originário da cidade chinesa de Wuhan com o apelido de Pandemia. E o mundo, como o (des)conhecemos, nunca mais foi simplesmente uma bola redonda (pleonasmo conscientemente assumido pelo autor).

De lá para cá, um filme Z de cenários lúgubres e assustadores, roteiros desencontrados e mal alinhavados, edições tendenciosas e falaciosas, atores medíocres e canastrões e diretores obscenos e temperamentais foi lançado, com sucesso de bilheteria, mas fracasso de crítica, nas telinhas de todo o mundo, já que os telões foram fechados.

Foi o ano em que o melhor e o pior, com todas as gradações in between, da raça humana afloraram com todo o seu esplendor ou sua miséria. Tivemos heróis a mancheias, e também vilões em profusão. Tivemos socorristas, plantonistas e toda uma legião universal de médicos e enfermeiros enfrentando um inesperado tsunami de doentes desesperados. Um denodo digno de titãs e semideuses.

Na outra ponta, surgiram os canalhas, os aproveitadores, os desonestos arautos do apocalipse, os assassinos que desviaram recursos que iriam salvar vidas, os abjetos bandidos que falsearam dados e estatísticas por orientação política, os mercadores da desgraça, os vendilhões de um templo em fogo.

Por isso e por tudo, chegamos ao aniversário da pandemia ainda perdidos e, dois e meio milhões de mortos depois, com quem nos devia esclarecer imerso em dúvidas e indagações, com apostas em vacinas experimentais, dançando no ritmo frenético de lockdowns intempestivos e aberturas precoces. Tudo extemporâneo. Tudo sem critério.

365 depois, há coisas que precisam ser analisadas. Por que, por exemplo, dos 15 países com o maior número de mortes per capita, 13 são europeus? Mas, não é na Europa que mais se aplicou uma política austera de confinamento e distanciamento social?

Qual a racionale que suporta um toque de recolher entre as 8 da noite e as 6 da manhã? Admitindo como verdade basilar (espero que todos concordem...) que o COVID não tem sensibilidade bastante para distinguir o dia da noite, e aceitando que, a estas horas noturnas, o movimento é menor, para que fechar bares e restaurantes que tanto investiram em precaução e atendimento às normas de prevenção?

Se acreditarmos na sabedoria popular do ditado que reza que caldo de galinha e cautela não fazem mal a ninguém, qual a razão do feroz negacionismo ao uso de remédios ministrados há mais de 70 anos? Com pouco ou nenhum efeito colateral danoso, mesmo que sejam inúteis no combate ao coronavírus, por que impedir o seu uso?

No vácuo de afirmações dignas de crédito e ações coerentes vicejam achismos, providências esdrúxulas e teorias estapafúrdias. As da conspiração abundam. Mas, nenhuma delas é tão inconsistente e tragicamente absurda quanto a realidade em que vivemos.

Oswaldo Pereira

Março 2021