terça-feira, 29 de janeiro de 2019

LAMA




A cena, por todo o drama impiedoso que carrega, traz uma sensação de desamparo. Repetida vezes e mais vezes nestes últimos três dias, nos afunda numa tristeza surda, mesclada de uma raiva impotente.

É a cena dos helicópteros trazendo, um a um, os corpos das vítimas do desastre de Brumadinho. A cada um que pousa, trezentas famílias entram num transe dolorido. São famílias que ainda falam de seus parentes desaparecidos no presente, na esperança doida de que sejam resgatados com vida. E aquele helicóptero pode estar trazendo o fim deste presente e o esfacelamento do futuro. Vai restar apenas o passado. Momentos compartilhados, de repente, na última sexta-feira, um convite, um beijo, um programa, um sonho.

Como pôde isto acontecer?

A culpa é imensa, maior que a lama cruel que escorre da barragem desfeita. A lista engloba empresas e governos, incompetências e descuidos, cálculos errados e avaliações enganosas, ganâncias e descasos. A rigor, esta lista deveria imputar nomes. Empresas e governos são feitos de gente, de políticos e funcionários, públicos e privados, cuja responsabilidade no desastre tem de ser revelada, cujas decisões têm de ser examinadas à luz do terror desencadeado, da perda de vidas, da destruição da propriedade, do crime ambiental.

De propósito, deixei de fora, no parágrafo anterior, a palavra mais importante. A palavra que faltou na tragédia precedente de Mariana. De três anos para cá, a empresa Samarco, responsável direta, num evento semelhante, pela destruição da cidade de Bento Rodrigues e pelo maior desastre ecológico ocorrido no país, com a poluição quase terminal do Rio Doce, vem protelando, com sucesso, as decisões processuais. Das 26 multas que recebeu, está pagando apenas uma, em suaves prestações. Ninguém, até hoje, foi condenado e preso.

Pois é. A palavra que deixei para o final é PUNIÇÃO. Sem ela, nada adianta. Sem ela, os helicópteros nunca pararão de trazer sua carga funesta, a lama continuará escorrendo e engolindo sonhos, a Natureza ficará mais ferida, o presente perderá seu futuro e nós choraremos mais.

Oswaldo Pereira
Janeiro 2019


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

PAPO DE BAR: ÀS ARMAS...




«Prá que que eu fui voltar...»

«Antonia! Mal chegou e já está reclamando?»

«Pois é, não estava mais aguentando o Trump. E depois da derrota do PT, resolvi voltar para o Rio. Mas, mal chego...»

«Qual é o problema? Você não sente a renovação no ar? Menos ministérios, pessoas técnicas em suas áreas substituindo as indicações políticas, enxugamento da máquina, reformas sendo propostas... Não é um começo saudável?»

«É... pode ser... mas esta da liberação das armas me derrubou. Que insensatez é essa?»

«Insensatez?! Prá começo de conversa, o que houve foi uma flexibilização maior de um direito que sempre existiu. A posse de armas nunca foi proibida, desde que atendidos os regulamentos de registro e propriedade. Pensando bem, a nova legislação até aperfeiçoa o que antes havia. Agora, o cidadão tem de ter seus antecedentes examinados, precisa fazer um curso de uso da arma, tem de ser morador em áreas estatisticamente perigosas. É um avanço.»

«O inferno está cheio de boas intenções, Cezar. Você acha mesmo que este protocolo todo vai ser observado tintim-por-tintim? Como diz o Batman, santa ingenuidade...»

«Ora, por que não acreditar? E não me diga que você concorda com a situação que temos, os bandidos com um bruto arsenal e a sociedade desarmada?»

«Claro que não concordo, mas o que se está fazendo é uma inversão de valores. É como aquela história de dois garotos preparando-se para uma briga. Um deles tem um porrete nas mãos. O que você faz? Tira o porrete da mão dele, ou dá um porrete também para o outro? O que podia ser uma briguinha de socos e pontapés transforma-se numa coisa muito mais violenta e perigosa... O que o Governo tem de fazer é acabar com a bandidagem e garantir a segurança do cidadão comum.»

«Não me venha com fábulas. A bandidagem, como você chama, não acaba assim, de uma hora para outra. É evidente que o Governo também vai ocupar-se disto, mas leva tempo. Tem de se tentar tudo para assegurar a defesa do povo. Dar-lhe um meio de se defender pode inibir as ações de violência da criminalidade.»

«É, mas em compensação, a violência doméstica pode aumentar. Com o feminicídio nos níveis em que já está, o que impede um marido bêbado de usar seu revólver contra a mulher ou, numa discussão acalorada de uma reunião de condomínio, um cabeça quente ir até seu apartamento e voltar com um pau de fogo na mão? O povo, que você quer ver defendido, não é composto de santos justiceiros e bem-intencionados. É gente, às vezes com os nervos à flor da pele. E, please, não me venha com a alegoria do liquidificador do Lorenzoni...»

«Bem, o que ele quis dizer é que a culpa da violência não é só da arma. Quando o indivíduo é mau, ele irá praticar um ato violento com ou sem arma. Por outro lado, o cidadão de bem, armado, terá a chance de se defender e proteger sua residência.»

«Agora, você me confundiu. Você acha mesmo que o seu cidadão de bem, mesmo com suas eventuais aulas de tiro, vai ter alguma chance contra um bandido que entra na sua casa? O ladrão convive diariamente com a sua arma. É sua ferramenta de trabalho. E você, no recesso de seu lar, não anda todo o tempo com a sua na cintura, feito um cowboy. O bandido já entra com a dele na mão. E se você tiver crianças em casa e, de acordo com a nova legislação, for obrigado a guardar a sua em um cofre? Imagine a cena. Ó seu ladrão, espere um pouquinho enquanto eu acerto a combinação do segredo e...»

«Você, então, é adepta do nunca reagir, política adotada nestes últimos anos... E que nos trouxe à situação de hoje, uma sociedade com medo, à mercê de qualquer borra-botas, às vezes até desarmado, que infunde um terror tão grande que as pessoas entregam tudo sem discutir...»

«Não sei, não sei... Tem de haver uma solução. Só acho que esta não vai funcionar.»

«Vamos ver. As estatísticas vão nos dizer...»

«Desde que nós dois não façamos parte delas...»

Oswaldo Pereira
Janeiro 2019

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

SOCIALISMO?




É claro que o comprador da casa sabia. Os comentários do bairro apontavam graves problemas de estrutura, de canalização, da parte elétrica e do telhado. Falavam também que o dono estava devendo impostos e que os empregados não recebiam salário há meses.

O proprietário, entretanto, negava tudo. Está tudo em ordem, declarava. Se há problemas, eles são de pequena monta e estão em vias de solução, era o que dizia. E o comprador resolveu fechar negócio. Quando dias mais tarde entrou na casa, percebeu que o buraco, além de ser mais embaixo, era maior, muito maior...

Esta pequena estória é o Brasil de hoje. O que o Governo Bolsonaro está descobrindo é um descalabro acima dos piores sonhos, um pesadelo de dimensões bíblicas. E é com muita propriedade que os novos gerentes nacionais afirmam que vão ter muito mais o que desfazer do que na realidade fazer.

Muito além da nossa constatação do dia-a-dia, em que somos massacrados pelas notícias de uma saúde pública na UTI de corredor de hospital, de uma educação que forma, na melhor das hipóteses, analfabetos funcionais, de ruas dominadas pela bandidagem, onde há um toque de recolher imposto pelo medo, há números que pintam um quadro de terror e de abandono. Por exemplo.

28% da população nacional vive abaixo da chamada linha da pobreza, isto é, têm um rendimento mensal menor que um salário mínimo (US$270). Nas regiões Norte e Nordeste, este percentual chega a 45% e 43%, respectivamente. No país todo, são 56 milhões de pessoas. Destas, um terço está na miséria profunda, sobrevivendo (?) com menos de US$10 por mês. É o nível da fome.

Após 16 anos de governo socialista, a desigualdade atinge patamares intoleráveis. 1% detém 25% da renda nacional. Os 5% mais ricos ganham mais do os outros 95% somados. 0,1% concentra 48% da riqueza pátria. Dos 26 estados, 22 estão quebrados. Há mais de 60 milhões de brasileiros inadimplentes, e o desemprego ronda os 12%.

Há dias, Cacá Diegues, o cineasta, escreveu um artigo onde discordava do momento do discurso de posse de Jair Bolsonaro, em que ele proclamava o fim do socialismo no Brasil. Cacá argumentava que aquilo que tivemos nos últimos 16 anos não foi socialismo.  Concordo. O que tivemos foi outra coisa.

Foi o descaso com a coisa pública, os petrolões e os mensalões utilizados para manter o poder a qualquer preço, os infindáveis propinodutos desviando os recursos das escolas, dos hospitais, dos transportes, da segurança e enchendo bolsos, malas e contas bancárias espúrias. Foi uma crônica obscena que, desde Brasília até o mais recôndito município, canta a vitória da corrupção, este monstro cevado na impunidade assegurada por grande parte de um judiciário atento, não ao mérito, mas aos intrincados meandros de uma legislação benevolente.

Assim está a casa. Vamos ter de rezar pelo comprador...

Oswaldo Pereira
Janeiro 2019


domingo, 6 de janeiro de 2019

JANUS





Fiquei aguardando a poeira de 2018 baixar. Mesmo assim, reconheço que ainda é próximo demais para avaliar um ano, mormente um ano tão complexo como o que terminou há dias. Como as grandes vidas, só o distanciamento do tempo dá a correta medida de sua análise, de sua compreensão e de seu julgamento. Mas, não custa arriscar...

Há dias, li algo sobre o deus Janus, a divindade romana que acabou por batizar o nosso mês de janeiro. Janus tinha duas faces, que olhavam para direções diametralmente opostas. Para o passado e para o futuro. Assim, ninguém melhor para caracterizar o momento em que deixamos para trás um caminho percorrido e encaramos a estrada à frente.

Pois eu acho que 2018 teve um pouco de Janus.

Donald Trump chega à metade de seu mandato. Nos primeiros dois anos, teve um Congresso republicano apoiando-o. Não tem mais. A maioria democrata vai dar um novo ritmo ao seu Governo, cortando suas asas de pavão. Ou se enquadra, ou viverá um pesadelo que durará vinte e quatro meses.

Francisco chegou ao limite de sua irritação com a pedofilia de batinas e partiu para o confronto com o clero que a protegia. Vai bater de frente com anjos negros e demônios de púrpura, mas a história recente da Igreja Católica vai virar uma página.

As duas Coreias, de costas uma para a outra desde 1950, resolveram virar-se e dar as mãos. É claro que falta muito para uma convivência franca, mas é um começo. China, Rússia e Estados Unidos dão tratos à bola para tentar entender o novo mapa da península.

A Comunidade Europeia esgotou sua paciência com o Reino Unido. Não tem mais vem cá meu bem. É o Brexit de acordo com as leis que o regem. E os ingleses perderam o sangue frio e a fleugma que tanto os caracterizavam. E vão perder muito mais.

E aqui em Pindorama, precisa dizer alguma coisa? O improvável virou mito, a mídia das campanhas migrou para o WhatsApp, o brasileiro resolveu regurgitar todos os sapos que engolira em 16 anos. Deu no que deu. E vai dar mais. Imensamente mais.

Então, ao contrário de alguns anos, como 1968, sobre os quais corre a lenda de que ainda não terminaram, 2018 acabou. MESMO.

Salve 2019.

Oswaldo Pereira
Janeiro 2019