quarta-feira, 28 de maio de 2014

PAPO DE BAR - ALBUM DE FIGURINHAS











«Bira?! Ué, não foi almoçar?»












«Nada, amigão. Faltam só 72 figurinhas para completar o meu álbum e eu vim aqui na “Bolsa” para ver se acho no troca-troca»







«Bolsa? É assim que vocês estão chamando este bando de marmanjos brincando de cromos coloridos? Não me diga que estão também jogando as duplicatas no bafo

«Claro que não! Bafo é coisa de crianças. Aqui o negócio é sério, cara»

«Sério?! Não me faças rir... Parecem uns adolescentes... Inacreditável...»

«Deixa de bancar o snob, prá variar. E você deve estar morando em Marte para desconhecer a febre do Álbum da Copa. Sabe quantas pessoas, só no Brasil, estão fazendo a coleção? Mais de oito milhões, amizade. OITO milhões! Tem gente gastando muita grana para completar a coleção rapidamente. E saiba que um álbum completo desses pode valer uma fortuna no futuro. Dizem que o da Copa de 1982 está sendo oferecido por 17.000 reais na Internet»

«Não há dúvida. A brasileirada enlouqueceu... Com tanta coisa acontecendo no país e vocês pensando em figurinhas. Ora, faça-me o favor... »

«Pois fique sabendo que o que está acontecendo neste país, agora e daqui a pouco, é a Copa. Não adianta mais bater o pé, reclamar e ficar berrando “não vai ter Copa”. É claro que vai. Perdeu, playboy. Não tem volta. Se não queriam, deviam ter reclamado antes, negado o voto a quem aí está. É assim que se protesta, meu caro, não colando adesivos no ônibus da Seleção, antagonizando quem quer a festa, mostrando as mazelas nas ruas»

«Pelo contrário.  Agora é que é a hora de reclamar, aproveitar o spotlight dos jogos e escancarar a insatisfação com a bandalheira que impera por aí. Mostrar ao mundo a nossa indignação, o nosso repúdio à maneira com que a classe política vem desmandando com o nosso dinheirinho, a vergonha pelos atrasos nas obras. Tudo feito às pressas e mal. Estádios ainda com tapumes, infraestrutura de transportes e comunicação inacabada, aeroportos de quinta categoria...»

«Que nada. O mundo não está nem minimamente interessado nas nossas desventuras politicas. Os outros países já têm problemas de sobra com que se preocuparem. E quem vier já sabe que temos nosso jeito de ser. A própria dimensão do evento já faz dele um desafio jamais enfrentado pelas outras sedes. Somos um continente, brother. O padrão FIFA pode servir para a Alemanha, a Suiça, a Dinamarca. Aqui tem de ser diferente. Temos mais é que tentar fazer bonito, dentro e fora do campo»

«Não. Não aceito. Sou contra esta palhaçada. Não vou nem ver os jogos na televisão...»

«Vai sim, cara. Na hora do vamovê, em que a bola estiver no centro do gramado, a galera cantando o Hino, o silêncio nas ruas... Não há quem resista. Vais botar a tua camisa amarela como todo brasileiro. É uma catarse de que ninguém escapa...»

«Esse é que é o meu medo. A catarse. Tudo para debaixo do tapete. Se o Brasil ganhar, o perigo da absolvição total dos pecados, a falsa sensação de que tudo está bem de novo, que somos uma nação privilegiada, que Deus é brasileiro, etecetera e tal...»

«Não creio que vá ser assim. Não somos mais tão ingênuos. Tão logo termine a Copa, as eleições estarão à porta. O debate político nos acordará para a realidade, mesmo se ganharmos. Se perdermos, a conscientização começará antes. E aí, sim, é a hora de protestar. Na cabine de voto. Viu o que aconteceu na Europa? Bastou a extrema-direita mandar o recado pelas urnas de que o ovo da serpente pode ainda estar no ninho, e os governantes começaram a pensar melhor seus programas econômico-sociais. O susto fez a turma levantar seus traseiros da poltrona e ir trabalhar»

 «Você sabe que não é assim que a bola rola por aqui. O nível de cidadania lá é outro. A nossa classe política não tem cores tão delineadas, vive mais à base do conchavo e dos interesses de suas bancadas, seja lá o que isto quer dizer. Bem, não adianta discutir. Vá lá trocar suas figurinhas... Até...»

«Tchau, amigão. E não se esqueça de comprar a camisa da Seleção...»


Oswaldo Pereira
Maio 2014

sábado, 24 de maio de 2014

FRASES


WILLIAM WALLACE: "ELES PODEM TIRAR-NOS NOSSAS VIDAS, MAS JAMAIS TIRARÃO NOSSA LIBERDADE"


Frases. A história está cheia delas. Ditas em momentos decisivos, por pessoas decisivas, elas fizeram-na. E, ao lê-las e reverenciá-las, fica-se imaginando que milagre de inspiração, que epifania dadivosa abençoou o orador que as pronunciou, em momentos em que só um mote, um dístico, era necessário para salvar um povo, promover uma conquista, difundir um credo, salvar impérios e construir outros. Há as que demonstram um agudo senso de oportunidade, de profundo conhecimento dos anseios de uma nação inteira, do vocábulo chave que levanta uma tradição amortecida, um orgulho espezinhado, uma esperança acalentada. Existem outras que transformam uma sina adversa numa luta mítica, a falta de propósitos e de futuro num novo renascimento. São frases que pavimentam o caminho de grandes conquistas, que viram o jogo quando a derrota é iminente.

Na Antiguidade Clássica, são muitas. Só a César se creditam várias. Veni, vidi, vici. Alia jacta est. Tu quoque, Brutus. Orgulho e denúncia que perpetuaram a saga de um império que durou mil anos. Trezentos anos antes, nas Termópilas, o espartano Leônidas teria respondido, quando confrontado com a notícia de que os persas possuíam tantos arqueiros que suas flechas cobririam o sol – “melhor, combateremos à sombra”...

Todas as religiões as têm. Jacó, Jesus, Buda, Confúcio, Maomé e muitos outros ícones santos cunharam frases que são repetidas em mantras durante suas cerimônias religiosas, difundindo sua fé. Muitas nações celebram em seus símbolos nacionais frases como um resumo perfeito de sua vocação e sua filosofia como país. E Pluribus Unum (De Muitos Um, dos Estados Unidos). Ordem e Progresso, bem, este você sabe...

Ficando, para não alentar muito este post, só nos anos recentes, podemos identificar alguns grandes frasistas. Quase uma unanimidade mundial, a Winston Churchill, primeiro ministro britânico durante a Segunda Grande Guerra, são creditadas algumas das mais inspiradoras frases do século passado.  Quando todos esperavam a rendição das Ilhas após a contundente derrota da França ante os alemães, ele contrapôs com nada menos que três exortações ao povo inglês nas quais ele prometia pouco mais que Blood, Sweat and Tears (Sangue, suor e lágrimas), determinava que We Shall Fight on the Beaches (Lutaremos nas Praias) e acreditava em This Was Their Finest Hour, na qual descrevia que, centenas de anos após a vitória inglesa contra o nazismo, as pessoas consagrariam aquele momento como o mais sublime da Comunidade Britânica.  No desenrolar da Guerra, depois de três anos em que a Inglaterra só colecionava reveses, a vitória aliada no Norte da África foi uma virada do destino. Uma coisa de ser celebrada, mas longe ainda da vitória final.  E Churchill disse, na ocasião: Now, this is not the end. It is not even the beginning of the end. But, perhaps, it is the end of the beginning. (Agora, isto não é o fim. Não é nem mesmo o começo do fim. Mas é, talvez, o fim do começo). Mágico.

Outro da mesma hora foi o presidente americano Franklin D. Roosevelt. Político de abundante carisma, usava e abusava de um discurso pragmático, bem ao alcance do americano comum. Antes do ataque japonês a Pearl Harbor, conviveu com um intenso antagonismo à participação do país na guerra “europeia” e, só usando de ardilosos expedientes, conseguiu abastecer seu amigo Churchill de equipamentos bélicos indispensáveis à defesa das Ilhas Britânicas. Quando navios americanos foram postos a pique em 1942, ele aproveitou o incidente para justificar um maior envolvimento num magistral discurso em que disse:
We have wished to avoid shooting. But the shooting has started. And history has recorded who fired the first shot. In the long run, however, all that will matter is who fired the last shot. (Nós quisemos evitar o tiroteio. Mas, o tiroteio começou. E a história registrou quem disparou o primeiro tiro. No longo prazo, entretanto, o que importará será quem disparou o último tiro). Sem dúvida, uma linguagem western. Mas uma mensagem que todo americano entendeu perfeitamente...

No Brasil?

“Independência ou morte”. Inspirador, sem dúvida. Mas, será que D. Pedro disse mesmo isto? Há as incontestáveis, e o nosso passado guarda muitas. “Sigam-me os que forem brasileiros”, a frase símbolo da liderança do Duque de Caxias não permite controvérsias. “Brasil, o País do Futuro”, título de um livro de Stefan Zweig, transformou-se de esperança em quimera. A última sentença da carta-testamento de Getúlio, “deixo a vida para entrar na história”, salvou todo um ideal político e resgatou a imagem de Vargas. O slogan “Cinquenta anos em cinco”, resumo em três palavras do furacão desenvolvimentista de Juscelino, ganhou uma eleição. Embora copiado dos americanos, o “Brasil ame-o ou deixe-o” ganhou um inteligente complemento do Jô Soares (e o último apaga a luz do aeroporto) e tornou-se uma bandeira nos tempos da ditadura. Até algumas de má lembrança terminaram por servir de mea culpa de muitas de nossas mazelas, como o bordão “brasileiro gosta de levar vantagem em tudo, certo?”.

Hoje temos um deserto de frases. Alguns vão mais além e denunciam um vazio de ideias, um vácuo de criação, uma sociedade vivendo no rarefeito ar do desencanto. Nossos “líderes” preferem o discurso rasteiro. “Nunca antes na História deste país”, repetido ad nauseam por Lula, caiu no ridículo das frases feitas sem respaldo e sem conteúdo real. E o que acaba restando são a fala monótona e incompreensível da Dilma e as expressões chulas de nosso ex-presidente. Uma “babaquice”, sem dúvida...


Oswaldo Pereira
Maio 2014










sábado, 17 de maio de 2014

DESTINOS CERTOS: MACHU PICCHU




Junho, 1450.
O silêncio na madrugada fria é total. Todos esperam. O Imperador, os sacerdotes, a nobreza e o povo. Uma bruma leve se levanta do vale, amaciando os contornos da cidade de pedra, carregando a brisa que brinca suavemente com os adornos rituais dos homens e das mulheres. Ainda não há pássaros, encolhidos em seus ninhos nestes últimos momentos de penumbra.
Pouco a pouco, o céu vai misturando suas cores, o carmim-violeta abate-se para um rosa ligeiro, o índigo profundo esmaece-se num azul cristalino, uma dança de matizes anunciando que a hora está para chegar. A pequena multidão, imóvel em frente ao Templo das Três Janelas, mantem seus olhos fixos na cordilheira do lado leste, especialmente no lugar onde dois picos formam uma abrupta forquilha.
De repente, como o toque de um clarim dourado, o primeiro raio de sol arremessa seu fulgor através da forquilha. A luz incide diretamente no Templo e três quadrados cintilantes desenham sua forma geométrica no chão úmido. Pachacútec, o Imperador, dá um passo à frente, levanta sua lança e saúda o Solstício.

PACHACÚTEC

Junho, 1550.
Tawantinsuyu, o Império Inca, acabou. Seus últimos reis, os irmãos Atahualpa e Huáscar, estão mortos. Os espanhóis dominam Cusco e o Vale Sagrado. Mas não chegaram até aqui. Mesmo assim, não adianta cá ficar. Os sacerdotes se foram, os nobres conquistados, não há mais quem plante, ou colha. O silêncio que emudece o vale não é de reverência. É de morte e de abandono.
O último habitante da cidade de pedra olha para o céu. Nuvens cerradas ocultam a montanha do lado leste. O sol não irá anunciar o Solstício. Mau agouro. Lentamente, ele e sua pequena família vão descendo em direção ao rio Urubamba, serpenteando lá embaixo. Com o coração pesado, nem olham para trás.

Pelos próximos 360 anos, Machu Picchu quedará esquecida, a vegetação lentamente abraçando seus templos, suas paredes, escondendo-a da história e dos homens.


Em 1911, um professor da universidade americana de Yale, chamado Hiram Bingham, chegou ao Peru. Seu objetivo era tentar encontrar a cidade perdida de Vilcabamba, cuja lenda a descrevia como a última cidade importante do império inca. A procura levou-o ao vale do Urubamba e, lá, um camponês chamado Melchior Arteaga acabou por mencionar-lhe a existência de um fantástico lugar, 700 metros acima do rio, abandonado há séculos. O destino havia traçado suas linhas. Bingham (cuja personalidade de intelectual aventureiro serviu de modelo inspirador para a criação do herói Indiana Jones) seguiu a indicação. Depois de um sono centenário, a cidadela de pedra iria renascer para a luz. Profundamente surpreso com o que descobrira, o americano escreveu em seu diário: ‘Would anyone believe what I have found?”(Alguém acreditaria no que eu encontrei?...)
MACHU PICCHU COMO FOI ENCONTRADA POR HIRAM BINGHAM

Munido de dezenas de fotos tiradas das ruínas, ainda cobertas pela ação dos anos de esquecimento, Bingham voltou para os Estados Unidos. Enquanto escrevia sua tese sobre o achado, uma revista já com imenso prestígio internacional comprou-lhe a matéria e, em seu número especial de abril de 1913, dedicou 183 páginas às fotografias e ao relato do explorador. Era a National Geographic Magazine. Machu Picchu tornava-se, instantaneamente, um ícone mundial.

HIRAM BINGHAM 1911

Há várias maneiras de se chegar. A pé, no lombo de burros, pelas antigas trilhas. Mas, o que a maioria faz é vir de ônibus desde Águas Calientes, um trajeto de 25 minutos sempre subindo. Para chegar até Águas Calientes, um pequeno povoado com ares de velho oeste andino, o melhor é pegar um confortável trem panorâmico desde Cusco ou de Ollantaytambo, no meio do Vale Sagrado. Seja, porém, qualquer o meio de locomoção, a chegada ao Santuário causa, até no mais empedernido cético, uma distinta comoção. Mesmo antes de se cruzar a porta de acesso à cidadela, a visão das construções de pedra que brilham ao sol, derramadas pela crista do monte e o concerto de montanhas que as rodeiam, do qual sobressai a imponência de Huayna Picchu (a montanha nova), tiram o significado das palavras. Não há mais o que dizer. Só resta sentir.

PORTA DA RESIDÊNCIA REAL

Machu Picchu quer dizer montanha antiga e até hoje se especula por que, entre 1420 e 1450, os incas resolveram construir aí um fenômeno arquitetônico de pedras perfeitamente encaixadas obedecendo a um planejamento urbanístico que conjugava harmoniosamente as construções sagradas, as habitações da nobreza, as casa populares, os terraços de plantio e um intricado sistema de abastecimento de água. Apesar de esbanjar uma cultura altamente sofisticada para a época, os incas não deixaram escrita e, assim, perdeu-se na poeira dos tempos o real propósito de Machu Picchu. A teoria mais aceita atualmente sustenta que a cidade, que abrigava 500 habitantes, era um refúgio privilegiado dos imperadores e sua corte, idealizado, construído e utilizado por um dos mais conhecidos reis incas – Pachakutic Inka Yupanki, ou Pachacútec. E que aí eram realizadas as cerimônias rituais no dia mais reverenciado da religiosidade nativa. O dia 21 de junho, o solstício de inverno no hemisfério sul.
INTIHUATANA, O "ANCORADOURO DO SOL"

Percorrer o santuário é respirar este mistério. Depois de anos de recuperação e limpeza, em seguida à revelação operada por Bingham, hoje a cidade mostra-se em todo seu esplendor. Um guia (existem vários à disposição) é fundamental para desvendar a natureza de cada construção. Assim, com a história sendo contada com competência e cultura, vai-se apreendendo a magia do Templo do Sol, do Templo das Três Janelas, do Templo do Condor, do Templo Principal, o fascínio de subir até onde está intihuatana, a “pedra que ancora o sol”, os espelhos d’água que eram usados para observar os eclipses solares. Para os mais destemidos, há a trilha que sobe a montanha nova. Uma íngreme escadaria escorregadia que se eleva a 320 acima da cidade, com a promessa de uma vista inesquecível.

VISTA DO HOTEL SANCTUARY LODGE

Foram dois dias de intensa magia. Uma dica: se puderem, reservem um quarto no Hotel Sanctuary Lodge. É o único em Machu Picchu e fica a 20 metros da entrada do Santuário. Passar uma noite ali, olhando as estrelas e sentindo a vibração da cidadela ao lado, imersa na escuridão, é uma experiência de se guardar para sempre na memória.



Oswaldo Pereira
Maio 2014



segunda-feira, 12 de maio de 2014

GETÚLIO




O acontecimento fez, durante muito tempo, parte importante da nossa crônica familiar. Eu mesmo não me lembro com muitos detalhes. Tinha pouco menos de três anos e as imagens parecem confusas, desmaiadas pelo tempo. Mas minha mãe sempre preservou o relato íntegro do fato, e o contava sempre que podia. Deve ter sido em 1943. Getúlio Vargas presidia o país, depois de ter, em 1937, rasgado a Constituição e proclamado o Estado Novo, impedindo as eleições previstas para o ano seguinte e assumindo poderes ditatoriais. Seu comando era total, num tempo em que muitos países do continente americano também se rendiam à liderança de seus homens-fortes, enquanto que, na Europa e na Ásia, uma guerra mundial ceifava vidas, cidades e culturas.

Morávamos na rua Paissandu, no bairro do Flamengo, num Rio que tinha pouco mais de um milhão de habitantes e repousava tranquilo ao redor da baía. A orla do Atlântico apenas começava a ser povoada. A rua tinha início na praia que dera nome ao bairro e seguia, reta, até a rua Pinheiro Machado e às portas do Palácio Guanabara. O palácio fora propriedade particular de um português no século XIX, comprada pelo Império para servir de residência à Princesa Isabel. Com o intuito de agradar a filha, D. Pedro II mandara plantar, em toda a extensão da Paissandu, palmeiras imperiais, transformando-a num magnífico corredor arborizado e cartão postal de uma cidade que sorria para o futuro.

Embora o Palácio do Catete fosse sede do Governo, Getúlio escolhera o Palácio Guanabara para sua residência oficial. E adquirira o hábito de, pelo menos uma vez por semana, e à tarde, fazer o footing pela Paissandu (para os novos, footing é um anglicismo em voga na época para descrever um agradável passeio a pé por sítios aprazíveis). Gozando ainda de uma sólida popularidade, o Presidente descia a rua in style, acompanhado de alguns assessores, saboreando seu indefectível charuto e acenando para a pequena multidão que se formava nas calçadas. No dia do tal acontecimento, minha mãe decidira levar-me junto para o ritual de ver Getúlio passar. Devo ter achado que o momento era mesmo solene pois, de acordo com a crônica materna, assim que o grupo aproximou-se de onde estávamos, perfilei-me e esbocei uma continência militar do melhor estilo. O Presidente sorriu, aproximou-se de mim e “condecorou-me” com um aviãozinho em miniatura ornado com duas fitinhas verde-amarelas.  Um mimo que ficou guardado por muitos anos nas gavetas da família.

Getúlio acabou deposto dois anos depois. O vento democrático que varreu o mundo após a derrota do Eixo não poupou o ditador. Foi para o exílio em sua estância no Rio Grande do Sul, mas sua chama não se havia apagado. Político sagaz e inteligente, esperou que o Governo de Eurico Dutra servisse como tampão, enquanto se contabilizava sua influência poderosa na vida nacional. Nas eleições livres de 1950, seu nome foi sufragado pela maioria, empolgada pela onda irresistível do queremismo, movimento inspirado na frase-slogan “queremos Getúlio” e que apregoava o fervor pela volta do velho caudilho.

O segundo mandato do político gaúcho foi um desastre. Num ambiente de liberdade democrática, a arena política era um free for all de interesses. O Brasil virou território livre de forças internas e externas que se contrapunham ao programa social-trabalhista do Governo. Logo, vozes eloquentes começaram a atacar o aparelhamento socializante da máquina estatal e a denunciar o empreguismo palaciano. Uma dessas vozes mais contundentes era a do jornalista e candidato a deputado Carlos Lacerda, dono do jornal A TRIBUNA DA IMPRENSA e um dos maiores oradores de seu tempo. Nas páginas do seu periódico e pela TV, Lacerda desancava Getúlio e seu Ministério com a ferocidade peculiar de sua índole combativa, atacando frontalmente, e sem medir palavras, a entourage do poder e principalmente a figura do Presidente. Até que, em agosto de 1954, uma ação engendrada dentro dos muros do Palácio resolveu silenciar o jornalista. No dia 5, ocorreu o atentado. E teve início um dos períodos mais dramáticos de nossa História. Um período de apenas 19 dias, que culminou com o suicídio de Vargas no dia 24 e mexeu profundamente com a vida nacional.









É exatamente o drama desenrolado com máxima intensidade nesses poucos dias o assunto do filme “Getúlio”, uma produção que merece todos os elogios possíveis. A começar pelo roteiro, uma impecável e fidedigna reconstituição daqueles sombrios dias, magistralmente encadeados e oferecidos ao público, preservando toda a força de seu pathos por um super competente trabalho de edição e pelo fato de noventa por cento da ação terem sido gravados dentro do Catete, no mesmo lugar onde ocorreram os acontecimentos reais. O mérito maior, porém, vem das poderosas interpretações dos atores. Drica Moraes como Alzirinha Vargas, e Alexandre Borges como Lacerda comandam um elenco perfeito nas suas caracterizações dos personagens que fizeram a história naqueles dias. Mas espetacular mesmo é o trabalho de Tony Ramos no papel-título. Dizem que o ator viveu dias dentro do Palácio para poder incorporar a figura do Presidente. Deu certo. Dos mínimos gestos aos detalhes mais expressivos da persona de Getúlio, tudo está lá. Uma magnífica representação, que nada fica a dever à premiada atuação de Daniel Day-Lewis em Lincoln.

Para quem, como eu, viveu a época, é uma fantástica volta ao passado. Para os que não haviam nascido, serve como necessária lição de história pátria de exatos sessenta anos atrás, um tempo em que os homens públicos ainda se matavam para salvar sua honra.  



Oswaldo Pereira
Maio 2014


quarta-feira, 7 de maio de 2014

TURISMO A SÉRIO




O aeroporto é grande, espaçoso e eficiente. As indicações são claras, os banheiros limpos e o atendimento gentil. Há várias lojas vendendo de tudo, mas privilegiando a oferta de produtos com forte sabor do folclore da sua terra e sua cultura. Os corredores são amplos e confortáveis. O ambiente tranquilo.

Não estou falando dos grandes aeroportos da Ásia, nem dos imensos airports americanos e nem os das badaladas capitais europeias. Estou falando de um país quase hermano, sul-americano como nós, membro desta nossa família de nações morenas descolonizadas há quase dois séculos, e que não irá sediar uma Copa do Mundo em dias. Aliás, nem vai jogá-la. Estou falando do Peru.

Turismo levado a sério, foi o único título que achei para descrever a sensação que tive ao chegar a Lima. Tudo funcionava como um relógio, sem o menor sobressalto. Uma impressão que se foi confirmando à medida que a programação contratada para visita ao país se desenrolava, evidenciando o cuidado, o profissionalismo e, bem nítido, o orgulho com que guias, motoristas, empregados de hotel e de restaurantes exerciam suas atividades na medida certa, sem bajulações excessivas nem descasos deseducados. A palavra de ordem é receber bem o turista e transformar a indústria do turismo numa prioridade de um País que, a até alguns anos, se viu presa de um cruel confronto com o Sendero Luminoso.



Agora, a sensação é de alívio. A paz reina desde o lago Titicaca até às florestas do Norte, permitindo a retomada de um desenvolvimento organizado e de um concentrado investimento em educação. Nem nos lugares mais pobres de Lima se vêem crianças pedindo nas ruas, evadidas das escolas. Eu as sempre vi, uniformizadas e em bandos organizados por instituições de ensino, nos museus, nos sítios históricos, nos parques. Cenas que adocicam o semblante brumoso e impenetrável da capital. Não chove em Lima. O sopro frio da corrente de Humboldt transforma as gotas d’água em neblina e melancolia e uma cidade que quase repousa na linha do Equador escapa das temperaturas ardentes, mantendo um ameno frescor moderado. Com mais de 9 milhões de habitantes, é uma mega cidade e, claro, tem seu lado pobre derramado por uma enorme periferia. Mas, à medida que se avança para o Pacífico, e longe se vai deixando o ocre e o barro das construções populares, a cenografia muda e desabrocha nos bairros cosmopolitas de Barrancos e San Isidro e no elegante Miraflores.


BALCÕES DE LIMA

















E é aí em Miraflores que outra agradável experiência espera o visitante. A nova cozinha peruana, uma verdadeira cocina de fusión, que soube misturar com expertise as raízes andinas, o celeiro infindável do mar e os mistérios da floresta com as influências das vertentes imigratórias, desde o colonizador espanhol até os requintes da mesa asiática. 

MERCADO DE SAN ISIDRO
MERCADO DE SAN ISIDRO



























CEVICHE

O resultado primordial desta mágica foi o ceviche, atualmente um das comidas mais premiadas do mundo e prato de rigueur em qualquer refeição limenha. Recomendo vivamente comê-lo, assim como outras delícias, no Alfresco, conceituadíssimo restaurante no Malecón Balta, uma comprida rua que vai do Parque Kennedy até a praia. Evidentemente que nada disso é possível sem a companhia de um Pisco Sour, drink tão emblemático do Peru como a caipirinha é do Brasil. O pisco é, na realidade, uma aguardente de uva e, portanto, existe em vários graus de qualidade, dependendo do tipo da uva e do ano da colheita. No restaurante Rosa Náutica, também em Miraflores, recebi uma aula prática de como preparar esta maravilha. Aí vai a (minha) receita:

3 partes de pisco (preferencialmente Mosto Verde)
1 parte de suco de limão
1 parte de jarabe de goma (preparado com 2kg de açúcar em 1 litro de água)
1 clara de ovo
Algumas gotas de bitter angostura

Modo de fazer: colocar os ingrediente (menos a angostura) numa coqueteleira, com cubos de gelo, esperar 8 segundos. Depois, chacoalhar por 12 segundos e coar para um copo pré-gelado. Colocar as gotas de angostura no centro da superfície. Salud!

Rudyard Kipling, o famoso escritor inglês, tarado pelo drink, assim descreveu-o poeticamente:
compounded of the shavings of cherub's wings, the glory of a tropical dawn, the red clouds of sunset and the fragments of lost epics by dead masters" (composto por finos pedaços de asas de querubins, a glória de um amanhecer tropical, as nuvens vermelhas do poente e os fragmentos de épicas histórias de mestres desaparecidos). Devia ter bebido vários…
PISCO SOUR

Enfim, entre aventuras gastronômicas, um povo amável e a benção dos incas, Lima vale a pena. Quanto mais não seja para que nós brasileiros observemos como se leva turismo a sério...


Oswaldo Pereira
Maio 2014