segunda-feira, 29 de junho de 2015

FOGUETE




O ex-Ministro Delfim Neto dizia que países não iam à falência, a Igreja excomungava quem se divorciasse, o homossexualismo era punido com prisão nos Estados Unidos, de Gaulle concedia a independência à Argélia por acreditar na causa árabe, o PT lutava pelos direitos trabalhistas e denunciava a corrupção no poder, o Real valia um Dólar, o Brasil era o deus do futebol, Pelé era chamado de “o bom crioulo”, música caipira era brega, a China ia de Mao a pior, a violência no cinema era a do Tom caçando o pobre Jerry. Escreviam-se cartas e conversava-se à mesa. Tudo isto na última esquina do tempo, logo ali atrás.

Só nesta semana, a Grécia está para fechar as portas, o Papa Francisco reconhece os percalços de uma relação, a bandeira gay é hasteada na América, o EI se torna a principal ameaça na França, Dilma e seu desGoverno derretem o ideário da esquerda, a moeda americana vale três das brasileiras, a Seleção foi para a “segundona” do futebol mundial, o verbo denegrir foi colocado no index, os artistas country estão todos milionários, a China esbanja seu capitalismo e os filmes glorificam, com os mais variados efeitos especiais, as cascatas de sangue. A caneta e a fala foram aposentadas pelo movimento frenético do dedo numa tela e por um novo vocabulário. Td mto xôu, né véi? Lol! rsrsrs...

Nem tudo foi para melhor, e nem tudo para pior.  Assim evoluímos desde os tempos da mulher sapiens, e nem sempre graças à mandioca (meu Deus, por que ainda deixam a Dilma falar de improviso?...) O caminho é como dizia um ascensorista, perguntado sobre o seu trabalho. Cheio de altos e baixos...

Nada é linear. Tentativa e erro, e tentativa de novo, são o ritmo da humanidade desde que o primeiro neanderthal esqueceu-se de colocar as folhas secas perto do graveto que friccionava e o fogo não se acendeu. “Hummm...”,  ele disse. E corrigiu o erro. Assim, o título idiota que um censor brasileiro inventou para o filme Giant na década de 1950, “Assim Caminha a Humanidade”, nunca foi tão adequado.

Só que agora a Humanidade parece correr, em vez de andar, e a insustentável leveza do ser de Milan Kundera passou a ser a insustentável permanência do viver. Toneladas de teorias perdem a validade em meses, postulados morrem nos laboratórios, apodrecidos pela obsolescência instantânea em seus tubos de ensaio. O que era deixa de ser em menos tempo que o comum dos mortais leva para apreender o que havia antes do “já era”. Não há mais tempo para olhar a lentidão de um poente de Outono, as esculturas que as nuvens desenham numa tarde preguiçosa, o quebrar de uma onda numa praia morna e deserta, ouvir o silêncio de uma longa madrugada receber a sinfonia de um galo campina, que quando canta muda de cor...

O foguete em que estamos embarcados ruma ao futuro cada vez mais rápido. Mas sempre haverá desvios, curvas apertadas, correções de rota e, quem sabe, uma pausa para apreciarmos um céu cheio de estrelas...


Oswaldo Pereira
Junho 2015









terça-feira, 23 de junho de 2015

WATERLOO 200 ANOS - PARTE II





Embora muita gente costume comparar um embate de tropas a uma partida de xadrez, na realidade um conflito armado está cheio de outros ingredientes, além da simples movimentação de peças num tabuleiro. Há muitos imponderáveis, como o tempo, o entendimento correto de uma ordem, a presteza em cumpri-la, atos heroicos, desesperos covardes e, frequentemente, a incerteza proporcionada pelo que se convencionou chamar de the fog of war, a neblina da guerra, ou seja, o desencontro de informações na densa fumaça dos campos de batalha.

Tudo isso aconteceu em Waterloo. Durante as nove horas de duração da refrega, os fatores acima exerceram sua poderosa influência desagregadora nos planos cuidadosamente delineados por Napoleão e Wellington, ambos extraordinários estrategistas. Raras vezes, a certeza da vitória e a possibilidade de uma derrota mudaram tanto de lado no decorrer de um combate.

Primeiro foi a chuva. Na véspera, um verdadeiro dilúvio abatera sobre o sul da Bélgica, encharcando o solo. Napoleão, que tinha por norma atacar cedo, foi informado de que sua famosa artilharia, com mais de 250 canhões, não conseguiria se deslocar com a rapidez necessária para se posicionar na hora e no local pré-determinados, devido à lama. Só às onze e meia da manhã as condições melhoraram o bastante para que as primeiras salvas fossem disparadas e o ataque tivesse início. Tempo mais que suficiente para Wellington reforçar sua posição nas fazendas que tinha á direita e à esquerda de sua linha de frente, a Hougoumont e a La Hayne Sainte.

Desta forma, o assédio francês a Hougoumont, capítulo inicial dos planos de Bonaparte, cujo objetivo era tomar rapidamente a posição e obrigar os ingleses a deslocar suas forças para lá, enfraquecendo seu centro, não funcionou como devia. Ainda assim, a eficiente Artilharia francesa, agora posicionada corretamente, começava a destroçar sua contraparte inglesa e a infligir pesadas baixas aos regimentos a pé de Wellington. Às duas da tarde, mesmo sem dominar completamente as fazendas, Napoleão ordena que sua esplêndida, e heroína de incontáveis campanhas, Infanterie de Ligne, avance. No lado adversário, já há muita apreensão. Como resposta à jogada estratégica de Bonaparte, o Duque lança sua cavalaria ligeira, os Scots Greys, sobre a Infantaria em movimento. O Imperador francês faz mais uma jogada. Envia dois lendários regimentos, os lanceiros e os cuirassiers, sobre os escoceses. Os Scots Greys são aniquilados. Os ventos do sucesso começam a soprar a favor da França.

Aí, mais um imponderável mostra sua cara. A saúde de Napoleão. Já na ilha de Elba, os primeiros sinais de problemas na próstata tinham surgido, e crises frequentes de hemorroidas, mais suas aflições de estômago, haviam aumentado. Pouco depois das três, ele sofre um espasmo digestivo e quase desmaia. Seus oficiais o levam a um ponto afastado para que ele se recupere. Exatamente neste momento, Wellington, preocupado com a perda de sua cavalaria e temeroso de um confronto em campo aberto com a infantaria francesa, comanda que seus generais recuem as tropas o equivalente a cem passos. No posto de comando francês, o Marechal Ney, que ocupa temporariamente o lugar de Comandante em Chefe, interpreta aquilo como uma debandada. Certo de que os ingleses haviam entregado os pontos, ele parte à frente de uma gigantesca carga de cavalaria, praticamente o efetivo total das suas tropas montadas. Um erro que vai custar caro. Quando o Imperador, já refeito, retorna ao Comando, tem um acesso de fúria. O ato impensado de Ney que, agora sem o apoio da infantaria descobre o ardil de Wellington, cuja retirada era apenas uma armadilha, pode significar uma reversão total da sorte. Encolerizado, Napoleão vê o grosso de sua cavalaria embater como ondas infrutíferas nos quadrados formados pelas melhores tropas inglesas, mantidas como reserva pelo Duque e escondidas atrás da elevação do monte Saint-Jean. 

A CARGA DE CAVALARIA DE NEY

As opções vão diminuindo para os dois lados. E, a quilômetros dali, um outro componente está em vias de se tornar o protagonista final dos destinos de Waterloo. Desde o início, apreensivo com a possibilidade de que o exército prussiano, apesar de batido em Ligny, pudesse se juntar aos ingleses, Napoleão destinara, no dia anterior, a quase um terço de suas forças, sob o comando do Marechal Grouchy, a missão de descobrir onde estava Blücher e segui-lo de perto, impedindo que se aproximasse da batalha.  Só que Grouchy não encontrou Blücher. E, em vez de retornar e reforçar o exército francês, e preso à ordem dada no dia anterior, continuou seguindo para norte. Às cinco da tarde, estava a trinta quilômetros de Waterloo. Os prussianos, por sua vez, haviam ludibriado Grouchy e estavam chegando a Plancenoit, na retaguarda de Napoleão.

O MARECHAL PRUSSIANO BLÜCHER
Neste ponto, a batalha chegara a um impasse. Do lado inglês, embora tivesse desbaratado a cavalaria de Ney, Wellington não tinha mais poderio suficiente para avançar e sobrepujar os franceses. E Napoleão estava atirando sua última carta na mesa. A Garde Imperiale, os melhores soldados da época, que iniciava agora seu formidável ataque.  Novamente, a balança pendia para Bonaparte. Foi a vez de Wellington exclamar. "Night or the Prussians must come!" (A noite, ou os prussianos, precisa chegar!). E eles chegaram. Quase às sete da tarde, as primeiras fileiras começaram a surgir ao sul. Por um fugidio instante, o Imperador e seus oficiais, confundindo o preto do uniforme prussiano com o azul marinho dos franceses, imaginaram que seria Grouchy. Não era. Napoleão perdera.

O FINAL. A GUARDA IMPERIAL MORRE, MAS NÃO SE RENDE


NAPOLEÃO SE ENTREGA
Nestes últimos duzentos anos, a batalha de Waterloo foi estudada, reestudada, reconstruída e recontada centenas de milhares de vezes. Todos estes famosos imponderáveis já foram identificados como determinantes para o seu resultado. A chuva, o ato impensado de Ney, a falta de visão de Grouchy, a manobra de Blücher. Há uma versão, inclusive, que culpa as hemorroidas de Napoleão. Sem poder ficar muito tempo montado por causa deste incômodo, ele não pudera manter seu hábito de todas as suas batalhas precedentes. Estar sempre em movimento durante a luta e, do alto de seu cavalo branco, vislumbrar rapidamente o posicionamento e as intenções de seus adversários. Seu posto de comando estático em Waterloo foi mais tarde comparado a um submarino sem periscópio. 

Hemorroidas. Quem diria...


Oswaldo Pereira
Junho 2015.




sábado, 20 de junho de 2015

WATERLOO 200 ANOS - PARTE I





"Who is the long nosed bugger that beats the French?
It's Atty! It's Atty!"
(“Quem é o sacana narigudo que bate nos franceses?
É o Atty! É o Atty!”)

Este grito de guerra era entoado em altos brados pelos soldados britânicos no começo do século XIX, principalmente após terem empurrado as tropas francesas para fora da Península Ibérica. E “Atty” era o carinhoso diminutivo que dedicavam ao seu comandante, Sir Arthur Wellesley, o Duque de Wellington.

O DUQUE DE WELLINGTON


Nos primeiros dias do mês de junho de 1815, Wellington encontrava-se em Bruxelas, no comando de um exército de 78.000 homens, parte do poderio militar do grupo de reinos que compunham a Coalizão e reunia o Reino Unido, a Rússia, a Áustria e a Prússia. O objetivo desse grupo era um só. Destruir Napoleão.




L’Empereur voltara! Depois de dado como vencido e liquidado, após o desastre da campanha russa, da abdicação e da prisão na ilha de Elba, o “ogro”, como era chamado por seus inimigos, voltara. Conseguira escapar de seu confinamento e, com apenas mil soldados leais, aportara no sul da França. Das praias da Côte D’Azur, iniciara a marcha para Paris, arrebatando corações e mentes e, mais importante, a adesão dos regimentos enviados para detê-lo. Em março daquele ano, entra nas Tuileries nos braços do povo e recupera o poder.

NAPOLEÃO VOLTA DE ELBA
Imediatamente, o Congresso de Viena o declara fora-da-lei e prepara suas forças, que eventualmente poderiam armar mais de 800.000 combatentes, para invadir a França. Napoleão ainda tenta contemporizar. Sabe que tem pouco tempo e que sua Grande Armée foi dizimada na Rússia. Mesmo assim, consegue rearmar um exército de quase 250.000 homens, embora a maioria ainda não esteja treinada suficientemente para enfrentar campanhas mais duras. Não é o bastante e ele sabe. Com seu insuperável faro para encontrar soluções estratégicas, resolve selecionar 75.000 de seus melhores e mais experimentados soldados e atacar Wellington, antes que a Coalizão tivesse tempo de mobilizar o resto do seu efetivo. Uma vitória poderia significar mais prazo para reorganizar seu poderio e consolidar seu império. O único problema seria assegurar-se de que um exército prussiano de 40.000 homens, sob o comando do Marechal Gebhard Blücher, não se juntasse aos ingleses, o que tornaria insuperável a superioridade numérica da Coalizão. Em 10 de junho, Napoleão foi informado que os prussianos haviam-se distanciado de Wellington.

Naquela época, o grosso dos exércitos, a Infantaria, deslocava-se a pé. E as tropas de Bonaparte eram as mais velozes do mundo. Ele impusera a regra dos 180 passos por minuto, quase o dobro da cadência então praticada pelos militares das outras nações. Assim, quando Wellington, comparecendo a uma festa em sua homenagem na capital belga, é avisado de que o inimigo está em marcha, os franceses já haviam cruzado a fronteira em Charleroi. Tirando vantagem da rapidez de seu avanço, Napoleão resolve primeiro enfrentar Blücher e, na batalha de Ligny, consegue fazer com que os prussianos afastem-se ainda mais dos ingleses. Agora, a ordem é “rumo a Bruxelas”.

Com a festa interrompida, Wellington e seus generais fazem seus planos. Decidem então ir para o sul e esperar pelos franceses. O local que escolhem é um suave declive do monte Saint-Jean, cortado por uma estrada e espraiando-se por uma ravina. É uma zona eminentemente rural, com duas grandes fazendas e duas pequenas cidades. Uma, a sudeste, chamada Plancenoit. Outra, ao norte, chamada Waterloo.



(continua)...


Oswaldo Pereira
Junho 2015






domingo, 14 de junho de 2015

SONHOS DE UM CARIOCA







Mas então vem um dia de sonho.

E eu me reconcilio com a minha cidade.

Perdoem-me os que não são daqui. Perdoem-me os que também elegem suas cidades como versões do paraíso, maravilhas do engenho humano, centros de poder e história, capitais ou simples aldeias, berços rurais ou filhas de castelos medievais, beijadas por rios, lagoas ou oceanos, cantadas em prosa e em verso, letras de hinos, donas orgulhosas de sua identidade. Ou importantes só porque seus filhos a amam.

Mas o Rio... Bem, meus amigos. O Rio...

O Rio tem este sol encaixado no Trópico de Capricórnio, que no solstício de Inverno nasce atrás do Corcovado e no de Verão nas costas do Pão de Açúcar e depois cruza modorrento um céu sem nuvens, ou de nuvens  bissextas, brincando com os biguás que voam de lagoa em lagoa em busca de seus peixes prateados, e depois se aninha nos braços do Dois Irmãos, fazendo a festa dos seus adoradores na pedra do Arpoador e dos surfistas tardios que ainda penteiam os ondas de Ipanema.

O Rio tem este Carnaval atávico, a batucada que corre nas artérias ao ritmo de um coração apaixonado, o sincopado de um pandeiro mexendo os quadris de uma mulata e os pés ligeiros do sambista, os tamborins, às centenas, matraqueando em uníssono como um trem alucinado, o surdo-de-marcação comandando com sua voz cavernosa o passo da escola, os destaques, os carros alegóricos, o trabalho de uma comunidade inteira produzindo sonhos e esperanças. Carnaval que é religião e desabafo, catarse e loucura, felicidade eterna em quatro dias.

O Rio tem Fla-Flu, tem Vasco e Botafogo. Tem Maracanã.  Tem visões míticas de Garrincha entortando seus marcadores, Zico levantando uma nação rubronegra  numa explosão de descomunais bandeiras na tarde de um domingo, Castilho catando com a ponta dos dedos a bola impossível, Ademir Menezes partindo como uma flecha e destruindo as defesas adversárias. Tem o silêncio de 1950, o recorde absoluto de quase 200.000 pessoas num Brasil e Paraguai, e muitas mais cantando “New York, New York” com Frank Sinatra e “Yesterday” com Paul McCartney.

O Rio tem o Paço Imperial, onde um rei português foi aclamado, transformando a vila colonial em capital de um Império, onde seu filho disse que ficava, e depois ficaria mesmo como Imperador. Tem as páginas da história do Brasil escritas em suas ruas e vielas, na praça onde a república foi proclamada, no obelisco em que os revolucionários de 1930 amarraram seus cavalos, no palácio onde Getúlio se matou, na praia onde os 18 do Forte marcharam para o confronto. Tem a lembrança viva do apartamento da rua Nascimento Silva onde nasceu a bossa-nova, do morro da Mangueira e de Cartola, das ruas da Tijuca e a turma de Zeca Pagodinho, do Maracanãzinho dos festivais e da Tropicália, do primeiro Rock’n’Rio nas profundezas de Jacarepaguá.

E o Rio tem esta tarde preguiçosa, banhada de luz. Será que amanhã vai chover? Bem.. o que importa? Chuva ou sol, mormaço ou neblina, vento ou brisa... Você será sempre o meu Rio, minha cidade e meu sonho.


Oswaldo Pereira
Junho 2015


    



quarta-feira, 10 de junho de 2015

DIA DE PORTUGAL







Em maio de 1550, consta do rol de alistamentos para uma viagem à Índia o seguinte:

“Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa, na mouraria, escudeiro, 25 anos, barbirruivo, trouxe por fiador seu pai. Vai na nau de S. Pedro dos Burgaleses, entre os homens de armas.”

Só que o jovem não chegou a embarcar. No dia da procissão de Corpus Christi, altercou-se com Gonçalo Borges, empregado do Paço, ferindo-o com a espada. Foi para a cadeia. Só três anos depois, perdoado com indulto real, embarcou enfim para o Oriente. Anos antes, por frustrações amorosas, alistara-se como soldado e fora para a África, onde participou de várias campanhas e acabou perdendo um olho na batalha de Gibraltar.

Brigão, turbulento, boêmio, mulherengo, aventureiro. Este era Camões. Bebia a vida aos grandes goles. E a descrevia em seus poemas, com a centelha do insuperável gênio que era, criando uma linguagem tão perfeita em sua obra que acabou, a partir daí, por servir de norma à nova língua portuguesa. Foi o acordo ortográfico da época...

Em 1553, em plena navegação para o Índico, Camões escreve sua maior obra. As ondas, a magia do Levante, o vento nas velas, a coragem dos marinheiros, as gentes estranhas de um mundo estranho, os cheiros das especiarias, tudo devia espicaçar a sua verve galopante. Já está com Os Lusíadas pronto quando, ao chegar à Cochinchina (hoje mais conhecida como Viet Nam) o seu navio soçobra no rio Mekong. Camões, nadando só com um braço, enquanto a outra mão mantém o poema acima da linha d’água, é um dos poucos sobreviventes. Não havia backups naquela época e nuvens eram apenas as que rolam no céu...

Muitas peripécias ainda iriam povoar o caminho do poeta. Só em 1570 ele regressa a Portugal. Por esta altura, sua fama de grande vate já se espalhara pelo país e ele, em récita especial, recita Os Lusíadas para o Rei D. Sebastião e para a Corte. A obra é impressa e publicada em 1572, às expensas da Coroa, que ainda outorga uma pensão anual de 15.000 réis ao seu autor. O valor não é muito e é pago irregularmente, e Camões acaba por viver dificuldades financeiras. Depois de um fulgurante lançamento, sua obra cai pouco a pouco no esquecimento. Acabrunhado pela situação e profundamente entristecido após a derrota dos portugueses em Alcácer-Quibir e o desaparecimento do Rei, adoece e morre em 10 de junho de 1580.

E esta foi a data escolhida para celebrar o Dia de Portugal, a mais importante do seu calendário cívico. Uma homenagem ao seu povo, sua história e ao homem que teve a arte e o engenho de trazer para a palavra escrita, domada, rimada e viva, a genialidade lusa em um de seus melhores momentos.


Oswaldo Pereira

Junho 2015

quinta-feira, 4 de junho de 2015

HIPOCRISIA








Um adolescente com uma faca na mão transformou-se no grande motivo de medo nas ruas do Rio. Em pouco mais de um mês, cerca de vinte ocorrências, com vários feridos e uma morte, espantaram-nos a todos, em especial por reunirem dois fatores socialmente explosivos: menoridade e violência.

Tenho lido e ouvido muito sobre o assunto, cuja frequência nas páginas dos jornais e nos noticiários da TV eleva o grau de inquietação nos habitantes de uma cidade que tem pela frente um evento de enorme magnitude esportiva e turística. Muita gente apertou ainda mais seus hábitos de deslocamento a pé ou de bicicleta em áreas de lazer e convívio, que antes pareciam preservados, abrindo mão de preciosos componentes de sua qualidade de vida.

A maioria dos cronistas que se pronunciaram, em entrevistas e em suas colunas, aponta como causas o problema social de uma adolescência carente e abandonada e a falta de policiamento.

É. Pode ser. Mas, eu acho que há outras razões. Pelo menos, três.

A primeira é uma razão de fundo, ou seja, um processo que envolve várias gerações e foi crescendo sob o beneplácito de um Estado inoperante e corrupto, cujo desinteresse criminoso permitiu o vicejar de imensos guetos em cujas vielas perderam-se as noções de família e dignidade. Só muito recentemente vem-se procurando o seu resgate, um trabalho que as décadas de descaso tornam sobre humano e demorado.

O segundo componente, ainda mais danoso, é a leniência da nossa legislação. Enquanto a discussão da maioridade penal se arrasta no pântano do Congresso, menores com idade legal para votar e casar permanecem imunes à punição e ao encarceramento. Quando o Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, e até seu Governador, declaram abertamente que a ação da Polícia em apanhar os menores criminosos é desfeita no dia seguinte por um juiz obediente à lei que protege tais inocentes, dá para perceber que algo vai muito, muito mal.

Mas o terceiro motivo é, para mim, o mais grave. Todos estes pequenos bandidos atacam para roubar. Os alvos mais comuns têm sido as bicicletas e os telefones celulares. Por que? Simplesmente porque há um ilimitado mercado para eles. O adolescente que empunha a faca não está minimamente interessado no bem que arranca de sua vítima. O seu objetivo é vendê-lo ao receptador que o contratou e lhe pagará a ninharia que sustentará seu vício de cheirar cola. Por sua vez, o receptador está apenas atendendo a encomendas de uma rede de vendedores ambulantes que, no dia seguinte, estarão satisfazendo a uma legião de compradores no centro da cidade ou em camelódromos espalhados pelas ruas do Rio.

E aí, sim, está a origem de tudo. O esperto cidadão, talvez até aquele que no conforto de sua sala de estar, ao assistir às cenas dos assaltos, execra a Polícia, a sociedade, Deus e o mundo, sem se dar conta, em sua profunda hipocrisia, que são a sua isperteza e o seu sorriso ganancioso ao comprar um Galaxy 5 por duzentos reais numa banca da Avenida Rio Branco os pavios que acendem  este rastilho de crime e violência que nos horroriza.


Oswaldo Pereira
Junho 2015