segunda-feira, 27 de abril de 2015

NO FIM DO MUNDO





Ele chegou à porta. O antigo mordomo abriu-a e olhou para ele com uma expressão cansada. Ele perguntou.

«Como ela está?»

O velho empregado não respondeu. Apenas levantou os braços e deixou-os cair ao longo do corpo magro, balançando a cabeça.  Ele voltou a falar.

«Mas, pelo menos cheguei a tempo...»

«De que?», retorquiu o outro.

«De vê-la ainda com vida...», ele murmurou, mais para si mesmo. E entrou.

Quase não havia luz no longo corredor. O alto pé direito alongava a sombra das velas por paredes onde um papel de motivos démodés descolava aqui e ali e quadros escuros pendiam já sem prumo certo. As tábuas do chão gemiam um ranger de madeira seca e abandonada a cada passo seu. O cheiro era uma mistura de mofo com decadente descaso. Mesmo na pouca claridade, ele viu que havia gente, encostada nas paredes do corredor, figuras mudas no meio do silêncio. Em vigília, pensou.

Passos à frente, deu numa antessala. Mais gente. Falavam em voz baixa. Algumas frases conseguiam escapar e chegavam aos seus ouvidos. “acho que está por um fio...”, “talvez não... ela é muito forte, você sabe... às vezes parece que a perdemos e ela ressurge, gloriosa...”. Perto de uma lareira sem uso, duas mulheres chamaram-lhe a atenção. Uma trazia os cabelos negros num coque severo, feições que pareciam reter uma inabalável certeza. A outra era serenamente bela, de infinitos olhos claros. Aproximou-se e perguntou quem eram. «Fé», disse a primeira, sem pestanejar. «Caridade», falou a segunda, com um leve sorriso no olhar doce. E prosseguiu. «Estamos aqui desde que ela adoeceu. Somos suas irmãs...»

A primeira repreendeu-o. «Soubemos que você pensou em abandoná-la. Que até andou dizendo que ela já não mais existia. Como pôde fazer isso?» Ele olhou para baixo, envergonhado. «Desculpem... Por favor, desculpem... Foi por isso que vim. Tenho de vê-la de novo, beijar sua face, segurar suas mãos, pedir-lhe perdão pela minha descrença...»

Caridade tocou-lhe no ombro e dirigiu o olhar para a porta aberta do quarto em frente à pequena antessala. «Vá...», sussurrou com ternura, «ela o espera, como sempre...»

E assim ela estava, recostada nas grandes almofadas macias, seu rosto quase radiante como numa primavera tardia, seu sorriso de cristal triste ainda desafiando as trevas do quarto abafado. «Finalmente. Você veio...» Sua voz parecia firme.

Ele ajoelhou-se ao lado da cama. E contou sua história.

«Andei por aí. Atravessei mares, montanhas, desertos, florestas. Continentes. Vi a Terra. O que tenho para contar é um rosário de penas. Vi fome, ouvi gritos. Conflitos, em todo lugar. Vi povos escravizados como subumanos, outros morrendo nas ondas do descaso, mais outros degolados em nome de um deus. Vi o preconceito distorcendo vidas, fobias anulando sonhos, ódios raciais destroçando gerações. Vi a arrogância dos governos envenenando o ar e sufocando as nascentes. Vi geleiras morrendo e matas a arder. Vi a política usada como arma de poder, a ganancia secando o fruto do trabalho honesto, a corrupção matando crianças nas filas dos hospitais, queimando a flor do saber nas mãos dos jovens e roubando seu futuro. Estou cansado. Estou farto de ver a vitória dos espertos, o festim diabólico dos assassinos, o riso gordo dos sacripantas, o escárnio dos corruptos. Comecei a duvidar... de ti. Procurei-te em toda a parte, sem te encontrar. Só faltava vir aqui, minha querida Esperança. Ao Fim do Mundo...»


Oswaldo Pereira
Abril 2015








quarta-feira, 22 de abril de 2015

VALAR MORGHULIS





Se você pronunciar estas duas palavras e o rosto do seu interlocutor se transformar num ponto de interrogação, você saberá com certeza que ele nunca ouviu falar da série. Se você as disser a uma outra pessoa e ela arregalar os olhos e balançar a cabeça afirmativamente, concluirá que ela já deve ter assistido a alguns capítulos na TV. Mas, se seu parceiro de conversa semicerrar os olhos em profunda deferência e responder, com um enigmático sorriso nos lábios, “valar dohaeris”, você terá identificado imediatamente um membro da planetária legião de seguidores fervorosos do maior fenômeno televisivo de todos os tempos – Game of Thrones, a milionária produção da Home Box Office (HBO). São milhões.

As duas pequenas frases que, no idioma fictício conhecido como Alto Valiriano querem dizer, respectivamente, todos os homens devem morrer e todos os homens devem servir, exprimem a gênese filosófica da história, na qual nenhum personagem, por mais carismático que seja, está a salvo de morrer a qualquer momento. Não há ibope que os proteja...  

Alto Valiriano é apenas uma das línguas criadas exclusivamente para a série por linguistas e filólogos. Outra, da qual já existe até um dicionário e uma gramática, é o Dothraki, falado por uma tribo de cavaleiros selvagens que habita as terras do leste, no mundo ficcional imaginado por George R. R. Martin em sua alentada obra A Song of Ice and Fire (Uma Canção de Gelo e Fogo) e levada para a telinha pelos roteiristas-produtores David Benioff e Daniel Brett Weiss. Já comentei sobre a série em meu post “A Ação do Tempo”, escrito em agosto de 2014 e cujo link para quem quiser lê-lo está abaixo.




ALGUNS DOS PERSONAGENS
O "MUNDO" CRIADO POR GEORGE R. R. MARTIN




















No passado dia 12, Game of Thrones estreou sua quinta temporada, num lançamento simultâneo para 193 países (o Mundo tem atualmente 204 nações reconhecidas). Serão mais dez episódios, baseados nos volumes quarto e quinto do livro de Martin. O autor trabalha atualmente no sexto. A saga escrita terá, no total, sete. Assim, ainda há muito para acontecer e muitas temporadas pela frente, garantidas por um sucesso que não para de crescer e que abastece uma indústria de vídeo games, animações, roupas, objetos e centenas de fã-clubes. E até o turismo. As regiões que estão servindo de locação para as filmagens, como Dubrovnik, na Croácia, a ilha de Malta e Sevilha, têm experimentado um significativo aumento de visitantes, desejosos de palmilhar os mesmos caminhos de seus personagens favoritos e imaginar que estão em Westeros ou em alguma das Cidades Livres. Enquanto isso, os retardatários que só agora descobriram a magia da história fazem maratonas para ver as temporadas já exibidas.

Já deu para perceber que sou um entusiasmado seguidor. Além de acompanhar com religiosa fidelidade a produção da TV, estou lendo A Song of Ice and Fire. E posso informar que, apesar da adaptação televisiva ser extraordinária, o livro ainda é melhor. O “bruxo” Martin é realmente um gênio.

O LIVRO

Então, para todos aqueles fluentes em Dothraki: Hajas! Dothras check (literalmente, no idioma dos cavaleiros guerreiros, Seja forte! Cavalgue bem, e que corresponde ao nosso coloquial até logo e um bom dia...)


Oswaldo Pereira
Abril 2015




sábado, 18 de abril de 2015

THE HILLS ARE ALIVE...






Maria Augusta Kutschera era, em sua juventude, uma fervorosa adepta do Socialismo e não acreditava na existência de Deus. Nascida num trem a caminho de Viena, órfã em criança e criada por tios, sonhava ser professora pública. Num certo Domingo de Ramos, entretanto, entrou numa igreja crendo que ia assistir a um concerto de músicas de Bach. O que ouviu foi um discurso do padre local. E isto mudou sua vida. Profundamente impressionada com a revelação da fé católica que ouvira, e que a convertera, ingressou, logo após ter-se graduado no Colégio de Educação Progressiva da capital austríaca, na Abadia Beneditina de Nonnberg, em Salzburgo, como noviça.

MARIA KUTSCHERA EM 1926


Às turras com a disciplina do convento, Maria começou a ter problemas de saúde. Por esta época, um Barão viúvo solicitou à Madre Superiora que lhe enviasse alguém para cuidar de uma de suas crianças, uma menina que padecia da mesma moléstia que matara sua mulher, a escarlatina. A menina chamava-se também Maria e o convento achou que poderia matar vários coelhos com um só golpe – satisfazer o Barão, ajudar a filha doente e verificar se a missão melhoraria a saúde e o humor da postulante rebelde.



A esta altura, qualquer pessoa que não tenha passado os últimos 50 anos incomunicável numa caverna do Afeganistão sabe perfeitamente do que eu estou falando. O Barão era Georg von Trapp, herói da Primeira Guerra Mundial como comandante de submarinos e pai de sete filhos. Maria era a noviça que, ao aceitar o desafio de recuperar a menina doente, conquistou o afeto de toda a prole e o coração de seu pai.

No espaço de doze meses, entre 1926, quando Maria ingressou no serviço da família, e 1927, ano de seu casamento com von Trapp, o romance desenrolou-se, mais por iniciativa do Barão, imediatamente apaixonado pela nova empregada, do que dela, conquistada inicialmente apenas pela afeição das crianças, ainda magoadas pela perda da mãe.

Os von Trapp já eram uma família musical, mesmo antes que Maria chegasse a Salzburgo. Entretanto, como forma de sobrevivência a partir da depressão mundial começada em 1929, na qual o Barão perdeu quase toda sua fortuna, só no início dos anos 1930 eles deram início a uma carreira profissional como grupo vocal de músicas tradicionais austríacas. Eram muito bons e o sucesso foi grande. Em 1938, quando aconteceu o Anschluss, a anexação da Áustria à Alemanha hitlerista, a Família de Cantores von Trapp estava no topo das paradas.

Georg von Trapp era, no entanto, um medular antinazista. E logo percebeu o perigo que ele e a família corriam na progressiva dominação de seu país pelos alemães. A primeira complicação surgiu quando foram convidados, e declinaram, a cantar numa comemoração pelo aniversário de Adolf Hitler.  A segunda, e definitiva, veio quando ele decidiu recusar um posto na Marinha do Terceiro Reich. Sabendo que era um caminho sem volta, conseguiram, à última hora, partir para uma turnê musical nos Estados Unidos. Não foi uma empolgante travessia dos Alpes ao som de Climb Every Mountain, mas teve sua dose de drama, pois foram vários os percalços até que conseguissem um visto de permanência na América.

A fama que os precedia abriu-lhes as portas no Novo Mundo. Com os ganhos obtidos num meio artístico em expansão após o término da guerra, compraram uma propriedade em Vermont, no seio de uma natureza que em tudo lembrava a Áustria nativa, e construíram uma pousada e uma escola de música. O bastante para garantir uma vida estável e tranquila, mesmo após a morte do Barão em 1947.

A FAMÍLIA VON TRAPP NOS ESTADOS UNIDOS: MARIA E GEORG CERCADOS PELOS SETE FILHOS DELE

Dois anos depois, um fato novo iria catapultar a saga privada dos von Trapp para as estrelas. Instada por vários amigos, Maria, que agora assumia plenamente as funções de matriarca (além dos sete filhos originais, Georg tivera mais três com ela), decidiu escrever suas memórias num livro, The Story of the Trapp Family Singers (A História dos Cantores da Família Trapp).


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Este mês, comemoram-se os cinquenta anos da estreia de The Sound of Music (aqui no Brasil, traduzido com duvidoso gosto como “A Noviça Rebelde”...). Era a versão cinematográfica do megassucesso da Broadway, que entre 1959 e 1963 enchera os teatros por 1.443 apresentações. Antes, duas produções do cinema alemão haviam sido baseadas no livro de Maria von Trapp. Apesar de sofrer severo ataque da crítica, que o desancou como sendo enjoativamente açucarado (estamos falando de uma época em que as produções musicais já se pautavam por West Side Story e a cena pop americana era dominada pela Invasão Inglesa e pelos Beach Boys), e da própria família Trapp, que não via no filme, e nem na peça, um justo reconhecimento de sua carreira como cantores profissionais, The Sound of Music arrebatou as plateias de todo o mundo e os favores da Academia. Foram dez indicações, cinco Oscars e, até hoje, a segunda maior bilheteria da história (só perde para Gone With the Wind – E o Vento Levou).

A FAMÍLIA VON TRAPP DO CINEMA


Hoje é quase um cult para as famílias que, no aconchego de suas salas, se deliciam com as peripécias de Fräulein Maria e cantam a mágica trilha sonora dos geniais Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II. E aplaudem toda vez que Maria e as crianças terminam a sequência musical de Do Re Mi, nas escadas dos jardins de Mirabell.

Para complementar.

Maria Franziska von Trapp, a única sobrevivente dos sete filhos e justamente aquela para quem o Barão solicitou cuidados ao convento e desencadeou toda a história, morreu em 2014, aos 99 anos. Hoje, só Johaness, filho caçula da noviça com o Barão, está vivo e administra a propriedade familiar, atualmente um resort que fabrica até sua própria cerveja, The Shades of Salzburg. Os atores que protagonizaram o casal e os filhos no filme estão todos vivos.



Uma das últimas canções do filme é Something Good. Algo de muito bom para vermos e ouvirmos mais uma vez...



Oswaldo Pereira
Abril 2015









segunda-feira, 13 de abril de 2015

MINHA TERRA








Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá...

Ah! Sabiá
Se você soubesse

Talvez até nem cantasse
Guardasse o canto, soltasse o pranto
Ou um grito
Sobre esta terra arrasada
Sobre este planalto maldito
Sobre as cúpulas brancas de um palácio
Que brotou do nada
Que brotou da mão calejada
De um povo
Em cujas veias uma teimosa esperança
Bombeia um coração que sonha,
Mas já cansa

Um palácio que o futuro
Parecia trazer de mão beijada
A Alvorada
A miragem de um porvir
Tão belo,
Verdeamarelo
Nascido para ser uma Catedral
Um lugar santo

Hoje o porvir agoniza, num canto
Ferido, torcido, estuprado
Pisado por pés enlameados de um barro sujo
Estrangulado por mãos que fedem a dinheiro podre
Irremediavelmente traído por hienas
Por propinas,
Pelo toma lá dá cá dos conchavos

Ah! Sabiá, não cantes
Antes, chora um lamento
Um réquiem de tristes rimas
Pelas sinas e desditas
Deste doce Pindorama
Que teve nas mãos o amanhã
A chama, a luz
Infinitas, ao alcance de acenos

Mas que o deixou escapar
Na sanha dos vendilhões que trocaram o seu futuro
Por moedas, vantagens, pensões
Iates no cais,
Paraísos fiscais
Privilégios obscenos

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá
As aves que aqui gorjeiam... 

Deixa prá lá...




Oswaldo Pereira
Abril 2015



sábado, 11 de abril de 2015

LONGEVIDADE



SHOU: O SÍMBOLO CHINÊS DA LONGEVIDADE.


Duas americanas e uma italiana. De todos os 7,3 bilhões de habitantes deste nosso atribulado planeta, essas três mulheres são os únicos seres vivos nascidos no século XIX.

O que isto quer dizer?

Bem, em primeiro lugar, que elas têm mais de 115 anos. Isto é o óbvio incontestável. O resto são especulações.  Do tipo, será que isto prova que o sexo feminino está mais apetrechado a sobreviver? Ou que os habitantes do primeiro mundo têm mais saúde? Ou ainda que no Hemisfério Norte as condições climáticas são mais favoráveis à longevidade?

Tudo isto pode ser válido, mas se não adicionarmos uma potente informação genética, os fatores acima podem ser insuficientes. E a sorte, que inclui não estar no lugar errado na hora errada e escolher inconscientemente o caminho certo numa encruzilhada fortuita. Para os místicos, ter sempre ao lado um anjo da guarda ágil e inteligente também ajuda...

Que a boa genética é fundamental, ninguém duvida. Que uma vida ativa e prazerosa aumenta as probabilidades é uma opinião unânime. E que bons hábitos sociais e alimentares também contribuem... bem, vamos ver...  

Jeralean Talley, nascida no estado americano da Georgia em 23 de maio de 1899, credita seus anos de vida ao fato de manter sua mente alerta jogando em máquinas caça-níqueis num cassino próximo e de participar de pescarias junto com a sua família.

Susannah Mushatt Jones, do Alabama (06/06/1899), nunca fumou ou bebeu, mas sua dieta inclui com frequência churrasco de galinha e muito bacon.

Emma Morano, natural de Civiasco, no norte da Itália, nascida em 28 de novembro do mesmo ano, jamais ingeriu drogas, mas seu cardápio diário estabelece três ovos, uma dose de brandy e chocolate.

Será, então, que a receita básica da vida longa ajuda só em parte? Será que, apesar de tudo, a dádiva da existência repousa mais num lançar de dados de um deus aleatório do que na obediência a preceitos lógicos? Ou tudo isto junto?...

Ninguém sabe ao certo e jamais saberá enquanto cá estiver. Afinal, este é o grande mistério, que faz da vida uma eterna pergunta e uma permanente emoção.


Oswaldo Pereira
Abril 2015

terça-feira, 7 de abril de 2015

TERROR






Os números são parecidos. Cento e quarenta e sete assassinados numa universidade no Quênia. Cento e quarenta e nove assassinados num vôo da Germanwings. Em ambas as tragédias, dois desvios de conduta, um coletivo e um individual, um politico-religioso e um maníaco-depressivo, foram determinantes.  E a parecença acaba aí.

Na mortandade africana, há ódios milenares envolvidos, perseguições culturais germinadas por séculos, manipulação de vontades por vozes de credos que pregam a intolerância como caminho, a violência como instrumento e a exterminação dos infiéis como fim. Tudo em nome de um deus, tudo na esperança de uma recompensa no além. Tudo em nome de uma crença.

Na hecatombe germânica, o motivo foi outro tipo de crença, outro tipo de deus. Na dissimulada mente torturada de Andreas Lubitz, a “recompensa” foi o ato em si, a fábula trágica que sua psique escreveu para si mesma, os trinta minutos em que ele foi sua própria fé, seu próprio deus, no comando absoluto e total do curso da aeronave e da vida de seus companheiros de vôo.

Instrumentos diferentes, ambos com a mesma letalidade, o uso da morte como escolha, como objetivo, como solução. Terrorismo e revolta íntima como ferramentas de uma mesma crueldade, de um desamor tão intenso ao próximo que reduz o respeito à vida humana a um simples e desprezível detalhe. Os invasores da faculdade em Garissa conheciam a escola, alguns a tinham frequentado e convivido com muitos dos alunos que exterminaram. O copiloto alemão deve ter visto muitos dos passageiros que embarcaram, olhado para seus rostos, talvez até sorrido para alguns deles.

Uma força maior que estrangula a compaixão. Como extingui-la? Como explicá-la?


Oswaldo Pereira

Abril 2015

quinta-feira, 2 de abril de 2015

ETERNIDADE





O conceito era difícil de ser apreendido. Para o aluno de Catecismo que eu era nos meus sete anos, o significado da palavra ETERNIDADE não encontrava ressonância em nada do que eu conhecia. O mundo, suas coisas e suas gentes eram finitas, tinham prazo de vencimento. Frutas estragavam-se, plantas feneciam, brinquedos quebravam, pessoas, mesmo as mais queridas, morriam.   

Até a imensa casa onde morávamos, em Botafogo, poderia um dia sucumbir ao boom imobiliário do Rio de Janeiro e transformar-se num espigão de concreto, como alguns que já se erguiam triunfantes no bairro. Tudo o que eu via, sentia, provava e absorvia tinha fim.

Certo dia, sentindo a impossibilidade didática de encaixar a palavra na minha relutante cabeça, a professora de Religião usou uma linda parábola.

Imagine, disse ela, que o mundo todo, com seus continentes, mares, cidades, montanhas, campos, desertos, rios, todos os habitantes e seus bens, se transformasse de repente em mármore. Tudo, transformado numa gigantesca bola de mármore. E que, de cinco mil em cinco mil anos, viesse um pássaro e batesse com a ponta de seu bico em qualquer parte desta bola, causando um infinitésimo desgaste no mármore. Imagine, então, quanto tempo levaria para que esta enorme bola se desgastasse totalmente... Bem, isto é quase nada, comparado com a ETERNIDADE.

E aí, o conceito entrou. Aos sete anos, dava agora para eu sentir a imensidão daquela coisa que nos era prometida na outra vida, a vida ETERNA. Nesta vida, a terrena, entretanto, não havia problemas. Tudo tinha mesmo começo, meio e fim, da barata que assustava minha mãe até o universo e suas estrelas.

Até recentemente.

Aceita durante quase um século como a mais provável explicação do surgimento de tudo o que aí está, a teoria do Big Bang vem sofrendo sistemático ataque de um respeitado grupo de cientistas. O bichinho das clássicas perguntas de onde viemos? e para onde vamos?  não cessa de inquietar o meio acadêmico, como se da solução desta charada dependesse a felicidade de toda a Terra. E esses luminares vêm agora com uma alternativa no mínimo inquietante. A de que o universo não teve começo. Em outras palavras, ele SEMPRE EXISTIU. E, consequentemente, como corolário, SEMPRE EXISTIRÁ.

E aí estou eu outra vez às voltas com o velho conceito da ETERNIDADE, que comprei aos sete anos como um apanágio da vida após a morte, no território etéreo do além. Como encaixá-lo neste lado de cá, feudo das baratas e das estrelas? Como entendê-lo matéria, reciclando-se num moto contínuo que nunca teve início, sem ponto de partida, sem impulso primitivo?

É preciso ter neurônios novinhos em folha para encarar mais esta. Nas aulas de Catecismo eu ainda os tinha. Hoje...


Oswaldo Pereira
Abril 2015