sexta-feira, 25 de outubro de 2013

SEMANA BRANCA


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Sábado.
“Eu te adoro…”

Estas foram as últimas palavras dele, antes que ela sorrisse, oferecesse o cartão de embarque à funcionária que fazia o controle e desaparecesse atrás do vidro opaco. Ainda acabrunhado pela saudade, desceu até o estacionamento, entrou no carro e rumou para casa.

Que agora ficara enorme. Sem ela. 

Ligou a TV. 52 polegadas, LED, como ela tanto insistira.  Olhou sem ver para a tela plana, pendurada na parede como um quadro. Depois de quase uma hora, desistiu. Nada fazia sentido. 

Fome? É… Abriu a geladeira. Lembrou-se do presunto que comprara na véspera. Um sanduíche; dois. Um resto de Coca Zero, já sem gás. Ela nunca fechava direito as garrafas. Ele nunca compreendeu porque, já que ela era tão perfeita em tudo o que fazia.

Comeu. E foi tentar dormir. Sem ela.

Domingo.

De manhã, ela ligou. Só para dizer que havia chegado a Nova Iorque e que ia direto para a entrevista. Sem emoções na voz; como convinha a uma executiva que queria vencer na América. Ele repetiu: “eu te adoro”. Ouviu um clic como resposta.

Por que acabara só para ela? Por que a vontade de dividir a vida juntos continuara só para ele? Por que só ele tinha agora esta necessidade de compartilhar o tempo, bom ou mau, azul ou cinzento, esse tempo que ela agora queria “dar”? 

Vamos dar um tempo”, dissera ela. Depois de oito anos. 

Ele nem percebera os sinais. Talvez eles estivessem ali, no dia a dia, nas refeições cada vez mais silenciosas, nas frases que paravam no meio, no carinho ralo, nos grandes hiatos sem sexo. Tudo o que ela dissera, agora, de uma vez só.

Saiu para a rua. Ciclovia da Lagoa. Gente passando, carregando seus problemas. “Somos ilhas de problemas num mar de indiferença…”. Onde ouvira isto? Pedra da Gávea ao longe. A saudade perto, muito perto.

Leblon à noite; chuva fina. Agosto maldito. 

O shopping era branco, o céu era cinzento, o táxi cheirava a cigarro. E se a vida perdesse o sentido? E qual é o sentido da vida?

Ele sabia qual era o sentido da sua vida. Viver, para ela, com ela, dela. Dia, mês, ano, antes, depois, durante. Sobre, debaixo, ao lado…dela. E agora? 

Fila de cinema. Nota de cinquenta; “tem menor?”. Gente conversando na cadeira ao lado. Ela iria ficar irada – “xiiu!”, diria. Cadê ela?

Segunda-feira.

O frescão estava gelado. Meu Deus, por que mantêm o ar ligado, mesmo com esta chuva lá fora? Será que o frio lhe é interior, só dele? Será que só ele, neste ônibus lotado de gente calada que lê jornal, sente saudade, esta saudade excruciante, mordente, invalidante? Como vai conseguir trabalhar?

O dia escorre entre telas de computador, relatórios, frases desencontradas, perguntas que ele quer esquecer. “Então, ela já telefonou? Chegou bem? Quando volta?...” Felizmente, ninguém notou o olhar vazio, as reticências, os longos “é…”s.  Talvez já estivessem habituados.

De novo a noite. Conseguira sobreviver. A segunda-feira ia-se transformando num ontem. Os ontens, pensou, são coisas seguras. Afinal, deles tudo sabemos – até quantos eles são. E os amanhãs?...

Terça-feira.

De manhã, foi à garagem pegar o carro. Mas o perfume dela ainda estava lá, impregnado no volante, aninhado no porta-luvas. Desistiu; foi de ônibus. 

Na hora do almoço, o celular tocou. Por um segundo, ainda pensou que poderia ser… Depois, atendeu o telemarketing que lhe queria convencer das vantagens de… De que, mesmo? Desligou com raiva. 

Reunião. A tarde toda. Mal ou bem, ele conseguira vestir este outro ser que sabe fingir estar atento às discussões, aos long range plannings, aos data shows. É como uma segunda pele, uma máscara de borracha que esconde o verdadeiro ele que sangra de saudade dela.

Na volta para casa, de relance, um rosto moreno disparou um choque morno – parecia ela, mesmo cabelo, mesma altura, mesmas pernas – mas, não era…

Ficou olhando para a capa do CD, no escurinho da sala. Comera pouco; a cozinha estava uma bagunça. Ela jamais permitiria isso. Madeleine Peyroux. Ela detestava; preferia Billie Holiday, no original. Discutiam sempre sobre isto. Agora, não mais… 

Quarta-feira.

Olhou pela janela do quarto. Chovia, ainda. Cama por fazer. 

Mais uma vez, não conseguiu enfrentar o carro perfumado. Estava atrasado, pegou um táxi e foi desmaterializar-se na rotina do escritório. “Sou um autômato”, pensou, ao dar bom-dia à recepcionista.

No fim do dia, a chuva parara. Melhor. Ou pior?  E se vier um daqueles poentes a que costumavam assistir, abraçados, na pedra do Arpoador? T´esconjuro! Deus queira que não.

Era noite do pôquer com os amigos de infância. Ir ou não ir? Com eles, não haveria disfarce possível. Seria ferida exposta, alma escancarada, tomografia da dor. Deu uma desculpa e não foi. 

Quinta-feira.

Solzinho de inverno. Pros lados do mar, nuvens e gaivotas. Por que não viajava? Tinha férias para tirar, dinheiro não era problema. E, agora estava livre. Livre, repetiu em voz alta. Soou estranho, oco, amargo.

O chefe chamou, pela manhã. Eram quase amigos, trabalhavam juntos há anos. Foi direto: “com algum problema? te achando triste”. Desconversou. “meio resfriado…” Ficou esperando o outro perguntar por ela; o que iria dizer? “Ela foi embora; acabou tudo…” Mas a pergunta não veio. O chefe era amigo. “Vá para casa, cara. Descanse. E tire amanhã de folga, também”. Na porta, ainda acrescentou: “Se precisar de ajuda, ligue. Amigo é pressas coisas”. Parecia o samba do Aldir Blanc; de que ela gostava…

Almoçou ali mesmo na cidade. Edifício Avenida Central. Ela tinha levado o lap-top; precisava comprar outro. E as outras coisas que ela levara, e que ele não podia comprar? Meus sonhos, meus planos, os meus vinte anos… agora era o samba do Chico; que ela detestava…

Sexta-feira.

Sol e dia imensos pela frente. A faxineira chegou. “Quando a patroa vem?” Ele quis dizer nunca mais; não conseguiu – disse: “talvez no final do mês…”

Foi ao supermercado. A listinha de compras emagrecida pela ausência dela. Carrinho só meio cheio. Bananas, rúculas, pão integral, queijo branco deixados nas prateleiras, com um pedaço do coração dele. 

Finalmente, enfrentou o carro; o perfume já não estava tão forte. Alívio… e pena. O passado começava a sugar tudo: aromas, sons, sabores.  E a dor, quando iria?

Dirigiu até o Recreio. Procurou a cidade que convivera com os dois por oito anos. Achou outra. Outro Rio, descolorido, desbotado, desidratado. Pintura fria de um Rio ascético, sem mais o riso cúmplice de atravessar a Vieira Souto fora do sinal, as mãos dadas em um show na praia, os olhos nos olhos do jantar com velas no quiosque, o beijo demorado ao sair da Estudantina, o calor de Ipanema, a areia de Copacabana, o espelho d´água da Lagoa, o mistério da Lapa… Onde, este Rio da nossa história?...

Sábado.

Sábado chega. Uma semana. Sente medo. Quantas semanas mais, até que o tempo encubra tudo com sua pátina amortecida, seu anestésico macio, sua amnésia salvadora? Como será deglutir diariamente esta pílula ácida do vazio, sentindo a azia constante da perda queimar o estômago e a alma? 

Então, o telefone toca. A voz dela.

“Oi, amor. Afinal, não deu certo aqui…” Pausa. 
“Oi, está ouvindo?...” 
É claro que ele está. 
“Acho que vou voltar… Você quer recomeçar?” 
Ele percebe que ela está chorando.

Ele olha pela janela. Há gaivotas e céus azuis, luzes, sons de sinfonia; há brisas, canções, crianças, namorados. E o Rio voltara a ser o Rio dele e dela. 




Oswaldo Pereira
Outubro 2013





















quarta-feira, 23 de outubro de 2013

PAPO DE BAR - BIOGRAFIAS












«Gênios. Os três são gênios»















«Antonia, gênio foi Beethoven. Gênios foram Bach, Verdi... Não confunda as coisas, por favor»








«Não estou confundindo nada. E pare de bancar o sofisticado. Chico, Caetano e Gil são gênios absolutos, contemporâneos. Sua obra musical vai durar para sempre. Daqui a duzentos anos, serão tão reverenciados como estas tuas figuras do passado. E, é bom lembrar, nem estes que você citou foram uma unanimidade no seu tempo. Muita gente na Alemanha do século XIX achava Beethoven romântico e bombástico em excesso. Bach só fez sucesso depois de morto. Em vida, era considerado apenas um competente Mestre Capela. E as duas primeiras óperas de Verdi foram um retumbante fracasso. Tão grande que ele até pensou em nunca mais voltar a compor»

«Ok. Não vamos discutir sobre isto. Iríamos ficar até amanhã aqui no ZanziBar. O que quero dizer é que você não pode deixar esta sua admiração pelo talento deles transformar-se em aceitação incondicional de suas ideias. Esta coisa de censura...»

«Censura?! Como pode caber na sua cabeça que Chico, Gil e Caetano, logo eles, possam pensar em promover Censura? Parece que ninguém está percebendo o objetivo da proposta do Procure Saber. O que se quer é resguardar a imagem das pessoas contra calúnias, infâmias, inverdades»

«Não é tão simples assim. Baixarias saem todos os dias na imprensa, ou pelo menos num tipo de imprensa. Que o digam os membros da família real inglesa. Lá existe até um ramo da mídia dedicado exclusivamente às fofocas sobre eles. Por que essa coisa toda só contra os biógrafos?»

«Porque são eles que esquadrinham a vida de seus biografados e, com vistas a tornar o livro atraente, cedem à tentação de colocar pormenores picantes, insinuações maldosas, que revelam detalhes da vida privada que são íntimos, invioláveis. Tudo para que a obra vire um best-seller e eles ganhem mais dinheiro»

«Mas, que vida privada? Só a vida dos famosos desperta o interesse. Os biografados têm de ser pessoas conhecidas, artistas, políticos, desportistas. Ninguém vai querer escrever sobre nós. Só a história de gente que abriu mão do anonimato para buscar fama e fortuna, que decidiu expor sua cara, é que vende livros. Se eu publicasse “A Vida de Antonia”, não vendia um exemplar. Mas se alguém decidir lançar “Os Segredos de Vera Fisher”, aí vai vender milhões..»

«Aí é que está! Que direito tem alguém de bisbilhotar os pormenores de uma artista, mesmo que ela seja a Vera Fisher, e torná-los públicos, sem que ela tenha, pelo menos, o direito ao prévio conhecimento do que foi escrito e o poder de impedir sua publicação, se o escrito a ofender?»

«Todo o direito do mundo! Este é o preço da fama. Este foi o trade-off existencial que todo aquele que optou por ser reconhecido nas ruas, de ver sua foto nas capas das revistas, de ter atendimento preferencial em hotéis, restaurantes, teatros, de conquistar corações e mentes, fez. O tapete vermelho em troca da privacidade. Se todo biografado, ou sua família, tiver a prerrogativa legal de escolher o melhor texto ou de eliminar o que não “ficaria bem”, não teremos mais biografias confiáveis. Tudo se tornará num autolouvor chapa branca, numa elegia antisséptica da excelsa vida do biografado. Ou seja, só teremos autobiografias»

«Não é possível que você concorde que qualquer pessoa possa usar o nome e a fama de uma figura pública para escrever calúnias, com o único propósito de fazer grana»

«Não estou dizendo isto. Se houver calúnias, mentiras, ataques infundados à honra, comentários duvidosos sem respaldo na verdade, o biografado tem os tribunais à sua disposição. O ônus da prova sempre caberá ao escritor. Se não puder sustentar sua história, há várias penalidades. Indenizações pesadas, embargo da obra, desmentidos públicos. O ator Tonico Pereira disse recentemente que é contra biografias “autorizadas”, mas se constatar uma injúria numa biografia sua, resolve na Justiça ou no braço. Certíssimo»

«Que maravilha! Você vive pensando que estamos na Inglaterra. Ou na Dinamarca. Justiça? Tás brincando... Se até o Mensalão já foi para as calendas gregas, quanto tempo você acha que uma ação de indenização por danos morais leva aqui em Pindorama? Autor e biografado morrerão muito antes do processo chegar à conclusão. O dano continuará feito, sem condenações, desculpas, limpeza de imagem. Quanto a resolver no braço, a época dos duelos já acabou há muito tempo. O livro espúrio continuará nas livrarias, de repente vai parar até em currículos escolares, para deleite das novas gerações, sem emendas nem revisão»

«Tudo bem... Mas você acha que essa “autorização legal prévia”, se for aprovada, irá resolver o problema? Hoje vivemos num mundo virtual, sem barreiras nem proteções. Todo mundo pode baixar tudo, mp3, DVDs, e-books. A tal biografia do Roberto Carlos, que afinal deu origem até ao suposto nome da lei, vazou na Internet, mesmo apesar de toda a proibição. Vamos tapar o sol com a peneira...»

«Bem, ao menos não vão receber direitos autorais. Bem feito...»


Oswaldo Pereira
Outubro 2013




sábado, 19 de outubro de 2013

VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA














Johannes Brahms nasceu em Hamburgo em 1833 e morreu em Viena, no ano de 1897. Do século em que viveu, foi considerado um dos mais importantes nomes do romantismo musical, tendo criado uma extensa obra que inclui sonatas, baladas, intermezzos, inúmeras peças para música de câmara, canções românticas para várias vozes, concertos para vários instrumentos e quatro sinfonias. E riquíssimas composições num gênero do qual foi um dos seus máximos expoentes: as variações.

Partindo de um tema básico de outros mestres, como Schumann, Haendel e Paganini, Brahms elaborava uma série experiências musicais nas quais o fio inspirador central podia ser percebido, mas era às vezes recoberto de floreios, em outros momentos esfumaçado por cortinas de fugas e em mais outros simplesmente desconstruído. Sem nunca se afastar, entretanto, da homenagem que buscava prestar ao gênio criador do mote original.

Suas variações mais famosas foram compostas a partir de um tema atribuído na época a Franz Joseph Haydn, grande músico austríaco que o precedeu de quase um século. A frase melódica que tanto encantou Brahms foi o Coral de Santo Antonio, segundo movimento de uma quase desconhecida partitura cuja autoria ainda hoje está em disputa, com muitos estudiosos creditando-a a Ignatz Pleyel, um discípulo de Haydn.

Iniciando com a repetição dos dois andamentos do Coral, as Variações sobre um Tema de Haydn rearranjam a sua estrutura em dez transformações, num arco-íris musical que vai desde as cores sombrias de um andante poco animato até o fulgor do più vivace, passando pelas tonalidades de um grazioso, de um andante con moto, até explodir na passacaglia final. Em todas, como num jazz virtuoso, se pode sentir a sombra do desenho original.  

Eu não tenho nada de Brahms. Nem sei ler música ou toco qualquer instrumento, e as partituras me parecem com antigos cadernos de caligrafia em cujas linhas paralelas, em vez de letras redondas, se colocam figuras que lembram bonequinhos cabeçudos com longas caudas. Mas fiquei namorando a possibilidade de aplicar a ideia das Variações à palavra escrita. Escolher um tema básico e explodi-lo em vários gêneros literários, procurando recontar a mesma história, recolorida e rearranjada em estilos diferentes.

Para isso, conclui eu, necessário de tornava encontrar um tema forte, conciso, de estrutura fechada em si e, se possível, curto. Com um pouco de reflexão, descobri que estas são as características da piada. Uma boa anedota tem de ser curta, de rápida compreensão, com um enorme poder de síntese, um tema forte e um final surpreendente.  

Selecionei, então, uma piada antiga, mas de sucesso garantido toda vez que tive a coragem de contá-la. É uma gozação regional com os nascidos em Minas Gerais, os proverbiais mineiros sovinas de suas emoções, encastelados em seu mutismo desconfiado e avessos a revelarem seus sentimentos e suas dúvidas. E parti para as variações, adaptando a historieta a outras maneiras de contar.

O TEMA
Dois mineiros vinham voltando para casa, no final de um dia de trabalho no campo. De repente, por cima de suas cabeças, passa um elefante voando. Silêncio. Dali a dois minutos, passa o segundo elefante voando. Os dois apenas entreolham-se. Em silêncio. Aí passa o terceiro elefante voando. Sem aguentar mais, um mineiro vira-se para o outro e comenta, sem emoção:
- É... o ninho deles deve ser aqui perto, né?



AS VARIAÇÕES

ROTEIRO PARA UM FILME “NOIR”
Nova Iorque. Década de trinta. Uma poça de água na calçada reflete o neon de um pub de esquina. Joe e Tony saem do bar e vão andando em silêncio, em meio ao nevoeiro espesso que cobre Manhattan e quase engole o topo do Empire State. Um ligeiro movimento no ar faz Joe olhar para cima e ver, cinzento como a bruma, um elefante voando por entre o canyon dos arranha-céus. Continuam em silêncio. Passa o segundo elefante, deslizando como um clipper da Pan Am. Joe olha para Tony; Tony olha para a rua deserta, como se nada estivesse acontecendo. Passa o terceiro elefante. Joe joga o cigarro fora e diz: “É... não devia ter tomado aquele terceiro dry martini...

LIVRO INFANTIL
Era uma vez dois amigos, Joãozinho e Toninho. Um dia, vinham eles da escola quando um elefantinho passou voando por eles. Era um elefante todo azul, com asas cor de rosa. Distraídos com seus pensamentos e imaginando as traquinagens que iriam aprontar quando chegassem a casa, nem deram pela coisa. Minutos depois, passa o segundo elefantinho, rodopiando no ar e tentando chamar a atenção dos dois. Nada. Joãozinho discutia com Toninho sobre qual seria a melhor maneira de pregar uma peça na Lucinha, uma menina antipática que morava nas vizinhanças. O terceiro elefante passa e, dada a indiferença dos dois meninos, resolve pousar na frente deles.
- Ei, diz o elefantinho, por que vocês não se assustaram conosco? Somos os únicos três elefantes voadores em todo o mundo!
Joãozinho olha para ele e dá uma boa gargalhada.
- Ora, amigo elefantinho, nos livros infantis todo mundo voa. Isto não tem a menor novidade.
E seguem pela estrada. O elefantinho fica pensando:
-É... não se fazem mais crianças como antigamente...


POESIA

Estrada
Duas sombras alongadas pelo sol poente
Duas sombras mudas
Cai a tarde, na brisa fina
O ar se agita, outra sombra passa
Voando
O silêncio congela a tarde
O voo se repete, soturno e pesado
O silêncio gela o sol que desce
O céu mais uma vez ferido pela aparição
De um leviatã alado
Uma sombra não se cala. E fala:
- É...  


CONTO DE FICÇÃO CIENTÍFICA

A nave Balalayka IV está pousada na parte leste dos Vallis Marineris, em Marte, há várias horas. Dentro, os majores Antonin Antonov e Ian Ianipov preparam-se febrilmente para o momento crucial da missão: uma caminhada de três horas em solo marciano. Antonov e Ianipov foram escolhidos entre milhares de candidatos e passaram dez anos sendo treinados para isto. São conhecidos por sua obstinação e por seu controle emocional.
Finalmente, os dois emergem da nave e iniciam seu passeio pelas areias do planeta vermelho.  Subitamente, algo passa voando por cima deles. O elmo espacial não permite a Antonov ver direito, mas ele juraria que se tratava de algo parecido com um elefante. A cena se repete, um minuto depois.  Agora sim, ele vê claramente: é um elefante, daqueles siberianos. Ianipov permanece silencioso. Então, um terceiro elefante alado desliza na atmosfera rarefeita. Antonov ouve a voz metálica de Ianipov comunicar à base:
“Alô Moscou…alô Moscou…dependendo de investigação adicional, arrisco-me a afirmar que há alguns indícios de vida em Marte…”


LITERATURA DE CORDEL

Nos campos de Minas Gerais
Dois camponeses andavam
Vinham de seu trabalho
E pelo mato avançavam
De repente e de surpresa
Uma figura obesa
Cruza os céus que admiravam

“Um elefante de asas!
Que coisa sem cabimento”
Pensa um dos capiaus
Fechado em seu pensamento
“É coisa do Satanás
Do coisa-ruim, ferrabrás”
Pensa o outro, atento

De novo a coisa acontece
Mas, mineiros de verdade
Resolvem deixar prá depois
Comentar a novidade
Dizer alguma chalaça
Pois falar a toa e de graça
É faltar seriedade

E vem a terceira vez
Do elefante traquinas
Um dos matutos então
Quebra os mutismos sovinas
Mas, para não dar bandeira
Fala em tom de brincadeira:
“É...acho qu´eis são daqui de Minas”


E a coisa pode ir por aí afora. Para quem queira continuar este exercício de variações sobre um tema, sugiro roteiro para westerns, musicais, contos das Mil e Uma Noites, filmes policiais. A lista não tem fim. É só botar a imaginação para trabalhar...


Oswaldo Pereira
Outubro 2013


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

EDUCAÇÃO






Eu poderia dar-me o luxo de ser saudosista. Às vezes até sou. Mas, não gosto muito de ficar olhando só pelo retrovisor. Pensar no que o Brasil foi, ou pior, no que poderia ter sido, não adianta. Afinal, este é um país que não gosta de aprender do passado, desconfia da sua História, sente-se ligeiramente envergonhado de seu pedigree. Cansei de ouvir baboseiras como “Ah! se tivéssemos sido colonizados por este ou aquele povo”. Certa vez, num ônibus de turismo que fazia um tour pelo local da batalha dos Guararapes, ouvi do guia, que não parava de elogiar Mauricio de Nassau, uma pergunta retórica. “Já pensaram o que seria o Brasil se tivéssemos sido colonizados pelos holandeses?”, jogou ele no ar triunfalmente, sem na verdade esperar uma resposta. Mas, eu estava inspirado. Levantei o braço e gritei : “Eu sei, eu sei...” Achando que eu iria corroborar com seu ufanismo flamengo, declarando que certamente Recife seria Amsterdam, o guia alegremente deu-me a palavra. “Seríamos o Suriname!”, eu falei, para o silencio magoado dele e dos demais...

Não dá mais para ficar culpando a colonização portuguesa pela nossa situação, qualquer que seja ela. Daqui a oito anos comemoraremos dois séculos de independência. Mesmo que a influência do descobridor fosse totalmente desastrosa, já houve tempo mais que suficiente para termos revertido o possível dano. E, se pensarmos bem, Portugal não agiu diferentemente dos outros poderes europeus de sua época. E basta olhar o mundo colonizado de então, das Américas à África, ao Médio e ao Extremo Orientes e à Oceania. Quem daí conseguiu entrar no clubinho do Primeiro Mundo depois de conquistar sua identidade como país? A resposta vem logo: os Estados Unidos e o Canadá! Então viva os ingleses e os franceses... Um momento. A ocupação do Norte da América não foi fruto da exploração do governo inglês. No primeiro século da descoberta, o interesse da Inglaterra estava muito mais no lucrativo expediente de atacar os navios espanhóis que vinham da América do Sul cheios de prata. Grandes extensões de terra sem muita promessa de encontrar ouro ou pedras preciosas não estavam no seu cardápio. Quem acabou indo para lá foram os membros de uma dissidência religiosa. E foram para ficar, não para usufruir. O gelo do Canadá também só atraiu alguns valentes exploradores e comerciantes de peles. Alguém vai mencionar a Austrália. Pode até ser, mas isto não se deve certamente ao Império Britânico, que a usou como estabelecimento penal por mais de um século.

Do México para baixo, do Mediterrâneo Sul até o Cabo da Boa Esperança, dos desertos da Arábia ao Sudoeste Asiático e ao Pacífico Meridional, ninguém até hoje entrou na confraria das nações mais ricas, com melhor IDH.  Nem sheiks com petrodólares, nem os diamantes da África do Sul, nem a fortuna dos marajás. Estamos todos por ali, com as nossas mazelas endêmicas, grandes hiatos entre uma ínfima minoria milionária e o resto da populaça miserável, serviços públicos execráveis, infra-estruturas cambaleantes. Recentemente, a maioria se converteu a um regime democrático. Mas, Democracia requer Civismo, e Civismo requer Educação. Sem eles, o exercício do voto é apenas uma festa vazia, uma pose falsa para a mídia e para o mundo. Alguns professam que o caminho é mesmo esse, persistir, repetir, até depurarmos o processo e melhorarmos o padrão. Mas eu me inclino para o que uma vez disse o grande filósofo Millor Fernandes: É errando que se aprende...a errar.

Assim, enquanto não houver um compromisso continuado em considerar a Educação como prioridade absoluta, não há longo prazo de tentativas que nos leve para um patamar superior. Que necessariamente, nem precisa ser exatamente igual ao da Europa Ocidental, da América do Norte ou do Japão. Cada povo tem seu DNA próprio, sua idiossincrasia particular, seu jeito de ser feliz.  Somos um continente, como a Rússia, a China, a Índia. Jamais podemos pretender que o bem estar chegue da mesma forma e na mesma medida para todos os habitantes, como na Bélgica, por exemplo. Ou na Holanda. O que o guia pernambucano tentava visualizar é impossível. Recife jamais poderia ser Amsterdam. Mas poderá ser uma cidade sem crianças nas ruas, sem bairros deteriorados, com boa infra-estrutura sanitária e de transporte e um sistema eficiente de Saúde Pública. Como, de resto, assim também poderão ser todas as cidades deste país. Basta sair do círculo vicioso em que estamos enredados. Não é a Democracia que nos resgatará deste redemoinho perverso. É a Educação.

Oswaldo Pereira
Outubro 2013


terça-feira, 8 de outubro de 2013

MONTGOMERY WOOD




Sempre gostei de filme de caubói.  Talvez por ter sido criado numa pequena cidade do interior mineiro, a minha inesquecível Paraguaçu, onde o cenário rural era o mesmo pano de fundo que aparecia nas telas das fitas de mocinho e bandido, como eram conhecidos então os westerns. Andávamos a cavalo, víamos os vaqueiros das fazendas tanger os rebanhos de gado, conversávamos à noite ao pé da fogueira, havia pastos sem fim. Além disso,  naquela época pré-televisão, o cinema reinava absoluto. A fonte de inspiração da molecada, da qual eu fazia parte, era o que o Cine Iris nos mostrava e que vinha em preto e branco daquela terra mítica chamada Hollywood. Como éramos descartados das películas “proibidas para menores”, sobravam os filmes de ação. E ação era o que acontecia, ou deveria ter acontecido, no Velho Oeste, terra maniqueísta onde não havia meio termo entre os bons e os maus. Assim, vendo paladinos como Hopalong Cassidy, Tom Mix, Gene Autry e Johnny Mac Brown, sempre nobres e valentes, rápidos no gatilho, fomos crescendo imitando os heróis com nosso revólveres feitos de madeira,  entortando umas frases em inglês tosco (em que kamonibói era o termo mágico que rendia os inimigos e os levava para a prisão) e absorvendo alguma noções de bem e mal, de certo ou errado.

À medida, entretanto, que eu crescia e outros gêneros cinematográficos iam atraindo minha atenção, a própria categoria dos bang-bangs foi caindo em desuso, limitando-se cada vez mais a produções tipo B, com atores inexpressivos e orçamento baixo. Mas, quando cheguei a Milão em 1965, uma revolução me esperava.



Um dos primeiros impactos na minha adaptação à vida na Itália foi a de constatar que não havia filmes em som original e legendados. Todos eram dublados. Assim, não estranhei quando fui assistir ao recém-lançado western americano que tinha como título (traduzido, claro, para o italiano) Un Dollaro Bucato (Um Dólar Furado). E o filme  era impecável. Cenário, décor, roteiro, interpretações. Saí do cinema em estado de graça por ter constatado que os Estados Unidos haviam resgatado o gênero. Mesmo o fato de os diálogos soarem em italiano, eu relevava. Quem sabe um dia eu conseguiria vê-lo novamente com o som original.  Mal sabia eu (e, diga-se de passagem, a maioria dos meus conhecidos ) que Un Dollaro Bucato não fora feito em Hollywood e nem perto dali.  

Convencidos de que, se apresentada ao público como uma produção italiana, filmada na Espanha e com atores europeus, estaria destinada ao fracasso, Giorgio Ferroni, o Diretor, e Giorgio Stegani, o Produtor, resolveram lançá-la como legitimamente americana, traduzindo os créditos para o inglês e dando nomes yankees aos atores.  Foi o berço dos western spaghetti, em si um gênero que iria se transformar num dos maiores fenômenos da indústria e consagrar cineastas como Sergio Leone, compositores como Enio Morricone, dar emprego a artistas iniciantes, como Clint Eastwood  e  tirar do ostracismo outros de carreira morna como Lee Van Fleet e Eli Wallach.

E revelar um dos atores ícones deste tipo de filmes, chamado Giuliano Gemma. Iniciando como dublê e fazendo pontas em produções baratas, acabou chamando a atenção de Ferroni para o papel central de Un Dollaro Bucato. Só que teve de mudar o nome para Montgomery Wood.

O que não atrapalhou em nada. Mesmo depois que a farsa foi descoberta, com os western spaghetti ganhando luz própria, e ele assumindo seu nome verdadeiro, foram dezenas de filmes e uma extensa carreira na televisão italiana. Em 2012, fez uma ponta no Para Roma com Amor do Woody Allen.

Um desastre de automóvel interrompeu sua trajetória na semana passada, aos 75 anos, mas sua imagem como o mocinho “Angel Face” Ringo ficará para sempre na história do cinema.


Oswaldo Pereira
Outubro 2013



sexta-feira, 4 de outubro de 2013

CIDADES QUE DÃO MÚSICA II





LISBOA


Lisboa velha cidade, cheia de encanto e beleza
Sempre formosa ao sorrir e ao vestir sempre airosa...”
Lisboa Antiga. José Galhardo, Amadeu do Vale e Raul Portela. 1937


Ibi oppidum Olisipone Ulixi conditur: ibi Tagus flumen  
Aí Ulisses fundou Olissipo: aí, às margens do Tejo
Assim escreveu Gaius Julius Solinus, em sua obra Mirabilis Mundi, no século III, sobre a origem da cidade. Baseava-se em autores que o haviam precedido, como o geógrafo Estrabão, por sua vez alicerçado na Odisseia de Homero. Olissipone viraria Ulishbone para os visigodos e al-Lixbuna para os mouros. Há outros que creditam o nome aos fenícios, que a chamavam Alis Ubbo, que significava porto seguro. Pouco importa. Lenda, mito ou verdade, todos os historiadores concordam que, já em 1200 a.C., uma comunidade com cerca de 2.000 pessoas existia na foz do rio, em frente ao mar profundo, em plena Idade do Ferro ibérica. O que faz de Lisboa a segunda cidade continuamente habitada mais antiga da Europa, superada somente por Atenas. Venceu invasões, guerras, pestes, incêndios, tsunamis e terremotos. Foi romana, celta e mourisca. Foi sede de reino e de império. E é hoje um livro de História aberto ao sol, um mosaico de suas vivências seculares e um ícone multi colorido da alma lusitana.

ARCO DA RUA AUGUSTA


“Ai Mouraria, da velha rua da Palma
Onde eu um dia deixei presa a minha alma...”
Ai Mouraria. Frederico Valério. 1945
ESQUINA DA RUA DO CAPELÃO

O bairro nasceu da proverbial generosidade lusa. Após conquistar a cidade aos muçulmanos, em 1147, D. Afonso Henriques reuniu os prisioneiros e, em vez de passá-los pelo fio da espada, assentou-os nas vertentes do Castelo e deixou-os viver. Não podia imaginar, claro, que este gesto fidalgo iria propiciar o advento de duas artes. Uma, a evolução ibérica da arquitetura mudéjar, uma reinterpretação islâmica do românico e do gótico. Seus característicos arabescos acabaram por desaguar nos floreios em pedra calcária do estilo manuelino, no apogeu das Descobertas. Outra, uma expressão musical que iria definir o coração de um povo. Lentamente destilando nas ruas da Mouraria, com infusões dos cantares dos muezins, juntando a tristeza d´alma dos marinheiros que partiam e a melancolia dos poentes nas águas do Tejo, o Fado surgiu como entidade artística em meados do século XIX. Mas, foi na rua do Capelão, pela voz e pela guitarra de uma esguia cortesã chamada Maria Severa Onofriana que, na década de 1910, ele ganhou a ribalta.  Para ouvi-lo, há dezenas de lugares em Lisboa. É na Mouraria, porém, que sua magia mais encanta.


“Se chove, cheira a terra prometida
Procissão tem o cheiro a rosmaninho
Nas tascas das vielas mais escondidas
Cheira a iscas com elas e a vinho...”
Cheira Bem, Cheira a Lisboa. César de Oliveira e Carlos Dias. 1969














Ver Lisboa é lindo. Cheirar Lisboa é muito mais. Se é Primavera, cheiram as flores que inundam os jardins do Parque Eduardo VII, à sombra da estátua do Marquês; se Verão é, as sardinhas assadas nas vielas do Bairro Alto. No Outono, a Baixa se enche de vendedores ambulantes de castanhas dourando em fogareiros que espalham sua fumaça e seu inconfundível perfume. Quando chega o Inverno, vem o cheiro do mar trazido pelo vento norte. Odor de rosas, de cravos, de manjericão e alecrim. Essências que exalam de uma cidade sempre pronta a inebriar todos os sentidos. Especialmente, o olfato.


“Cidade a ponto de luz bordada
Toalha a beira mar estendida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida...”
Lisboa Menina e Moça. Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, Fernando Tordo e Paulo de Carvalho. 1976

Elas estão por toda parte. Nas lojas da Rua do Ouro, nas esplanadas do Terreiro do Paço, no Metro e nos elétricos, nas escadarias de Alfama, nas pastelarias do Rossio, no shopping das Amoreiras ou do Vasco da Gama, nos restaurantes das Docas, nos night-clubs, nos bares e nas igrejas. São as alfacinhas, as elegantes e charmosas mulheres de Lisboa. De tez morena ou clara, olhos castanhos ou não, seguem seus caminhos com altivez, entre suspiros das legiões masculinas que sonham com a ventura de um olhar travesso...


“Lisboa tens cá namorados
Que dizem coitados com a alma na voz
Lisboa não sejas francesa
Tu és Portuguesa, tu és só prá nós...”
Lisboa Não Sejas Francesa. José Galhardo e Raul Ferrão. 1952



Era quase uma epidemia. Na segunda metade do Século XIX, a maioria das capitais europeias queria ser Paris. A Cidade Luz era o modelo. Teatros, livrarias, praças, boulevards e salons procuravam imitar o chic da sua paisagem urbana, assim como dos vestidos aos pince-nez, das revistas teatrais à composição gráfica dos jornais, dos petit-fours aos penteados, era de bom-tom se comportar, falar e amar como um vrai parisiense. Lisboa teve a mesma febre. Mas, aos poucos caiu em si. E reencontrou seu próprio charme, redescobriu suas tradições e, felizmente para todos nós, voltou a ser a cidade que sempre foi, com seu inacreditável céu, abraçada pelo Tejo, solar e eterna.




Oswaldo Pereira
Outubro 2013

PS.: Para quem não leu, ou quiser ler de novo, veja o link da primeira crônica sobre Cidades que Dão Música (São Francisco).

http://obpereira.blogspot.com.br/2012/05/cidades-que-dao-musica-1.html