sábado, 16 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL 2017



     FELIZ NATAL PARA TODOS!


E, para manter a tradição, aí vai o Conto de Natal deste Ano


Deu no New York Times.

Daqui a 100 anos, a inteligência artificial terá dominado a maioria das atividades humanas. Os carros se conduzirão sozinhos. Os aviões também. Cem por cento das tarefas industriais serão realizadas por robôs. Assim como as decisões empresariais. Diagnósticos médicos serão feitos por máquinas, processos jurídicos preparados por computadores e julgados por magistrados virtuais. Impressoras em 3D eliminarão a maioria das entregas de mercadorias, a educação será ministrada por androides didáticos, idiomas serão traduzidos instantaneamente por fones de ouvido, o Facebook da época saberá tudo sobre nós. Com a programação genética desenvolvida em hospitais totalmente automatizados, seremos jovens até a morte.
E, provavelmente, o nosso melhor amigo será um computador.

Noel olhou para o relógio. Fazia quinze minutos que esse fog estranho o tinha apanhado entre a costa da Irlanda e o Canal da Mancha. No Weather Channel que consultara ontem, nada havia que indicasse isto. A Noite de Natal seria de céu limpo, em todo o mundo.
E agora, os ponteiros de seu Rolex giravam como loucos.
As renas já estavam ficando nervosas, principalmente Rudolf e seu nariz vermelho.
Noel resolveu abrandar e diminuir seu nível de voo, mesmo correndo o risco de cruzar com algum avião também perdido naquela bruma. Tinha ainda muito para fazer, milhares de presentes a entregar e, pelos seus cálculos, deveria estar apenas no início do trajeto, algures sobre as Ilhas Britânicas. Mas, agora, com o relógio enlouquecido e sem nada ver, sentia-se totalmente perdido.

Aos poucos, umas pequenas luzes começaram a aparecer lá embaixo. Foi descendo, lentamente, puxando as rédeas para que as renas fizessem uma aterrissagem tranquila. Quando conseguiu ver melhor, verificou que era um condomínio de casas absolutamente iguais. Ninguém nas ruas.

Pousou com cuidado perto de uma das casas, sobre um relvado imaculadamente bem tratado. Notou logo que as casas não tinham chaminés. E nem janelas. E agora? Iria ter de bater à porta.

Neste instante, a porta abriu-se e um homem aparentando 40 anos saiu e veio caminhando sorridente na sua direção. Estava bem vestido, cabelos cuidadosamente penteados, os óculos discretos numa armação transparente, um olhar franco e amistoso.

«Sim?», foi logo perguntando.
Noel estendeu a mão.
«Boa noite. Deve saber quem eu sou, não?»
O homem olhou-o de alto a baixo, hesitando.
«Desculpe, mas deveria saber?...»
Noel estranhou.
«Bem... O mundo inteiro me conhece. Papai Noel...»
O outro continuou a olhá-lo, sem reação.
Noel encheu os pulmões.
«Ho-ho-ho... Então?»
O homem ficou parado por uns segundos. Parecia que lia alguma coisa nas lentes de seus óculos.
«Ah! sim... Papai Noel... Uma lenda do passado...»
Voltou a encarar Noel.
«Mas aqui diz que você nunca existiu, que era uma figura mitológica criada pelo fabricante de uma bebida intragável chamada Coca-Cola...»
Noel interrompe.
«Quem diz?»
O outro responde.
«Ora, o Facepedia que tenho na tela dos meus óculos. Os seus não têm isso?»
Noel segura as hastes de seus velhos óculos. Depois retruca.
«Pois este seu Facequalquercoisa está mal informado. Tanto é que aqui estou...»
O homem percebe o mal-estar de Noel. Então diz, com simpatia.
«Mil perdões. Mas, onde estou eu com a minha cabeça que não o convido para entrar. Por favor, venha...»

Quando entram na casa, Noel tem um choque. Ela está totalmente vazia. Não há móveis. Nem tapetes, quadros, cortinas. Não há janelas. Nada. Só paredes nuas, numa cor média. O dono da casa faz um gesto quase imperceptível. Imediatamente, mesas, sofás, cadeiras, carpetes e quadros começam a aparecer, como que por mágica. Ele vira-se para Noel.
«Novamente, desculpe-me. Não esperávamos ninguém esta noite...»
Noel está visivelmente desconfortável com a confusão mental que começa a movimentar-se dentro de sua cabeça. Que diabos... Tentando disfarçar, ele pergunta.
«Esperávamos?...»
O outro dá um ligeiro sorriso.
«Ah! sim, claro...»
Faz outro pequeno gesto. E surgem uma mulher e um menino, ambos também impecavelmente vestidos e arrumados. Ele apresenta, com visível orgulho.
«Minha família...»
A cabeça de Noel era agora um vendaval. Com dificuldade, conseguiu falar.
«Queiram ou não queiram, eu me chamo Noel. Papai Noel. E esta é a Noite de Natal do ano do Senhor de 2017. Não é?»
O homem e a mulher se entreolham. Ele aproxima-se de Noel e pousa-lhe a mão no ombro, conduzindo-o a um sofá.
«Sente-se, meu bom velho»

Na meia-hora seguinte, Noel descobre. Algum distúrbio celestial o havia afastado de sua rota. Não muito no espaço, mas muito no tempo. Ele estava na costa inglesa, sim, mas o ano era 2117. Cem anos à frente. O mundo mudara, demais. A Inteligência Artificial dominara a planeta. O casal que o recebera explicara. Tudo era agora virtual. Cidades, países, bens, desejos, sonhos. Ninguém precisava mais de presentes, nem de Natal. E vocês?, perguntara Noel. «Nós?», o homem respondera dando um risinho. «Nós somos uma classe de programas avançados que imita a vida humana. Um software. Fomos desenvolvidos há mais de 50 anos pela IBMSoft, quando o cyberspace atingiu a supremacia na Terra.»

Noel está cabisbaixo. Uma grande tristeza vai apoderando-se dele. O homem percebe.
«Não se amofine. Volte para seu tempo. Eu posso recolocá-lo em sua trajetória original de 100 anos atrás. Vá em paz»

Noel sai da casa. Um futuro sem alma. Será esta a nossa sina?, pensa, enquanto se dirige para o seu trenó. Então, uma cena o surpreende. O menino está brincando com as renas. Beija-as, acaricia-as, diverte-se com o nariz vermelho de Rudolf. Quando Noel prepara-se para subir, o garoto o puxa pela manga do casaco. Seus olhos de criança brilham como estrelas. Sua voz é doce.
«O senhor vai voltar no ano que vem, não vai, Papai Noel?»
Noel sente as lágrimas molharem seus olhos numa maré mansa.
Nem tudo está perdido, pensou.

Oswaldo Pereira
Natal de 2017

Se quiserem ler os Contos de Natal dos anos anteriores, aqui vão os links.

https://obpereira.blogspot.com.br/2016/12/e-natal.html

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A REVOLUÇÃO RUSSA - PARTE III




Duma é uma palavra na língua russa que serve para designar uma assembleia com funções legislativas ou de aconselhamento. Desde o século XVIII, muitos destes órgãos foram criados a nível municipal em várias cidades do império e serviam, principalmente, para emitir editais que, na maioria das vezes, regulavam a vida comunitária dos feudos onde a nobreza exercia seu poder. Eram, no fundo, uma maneira pela qual os senhores feudais permitiam à pequena burguesia extravasar seus desejos e suas ideias. Desde que, evidentemente, não desafiassem os desígnios já traçados por eles.

Em 1906, acuado pelo imenso clamor deflagrado com a derrota do exército na Manchúria, pelo massacre da Praça Dvortsovaya e pelo motim do couraçado Potemkin, o Czar resolveu descer alguns degraus de seu absolutismo e aceitou a criação da primeira Duma Estatal. Na cabeça de Nicolau II, esse parlamento deveria comportar-se como as assembleias municipais que vira funcionar, isto é, um mero embuste, um jogo de cena, enquanto o poder real permanecia firmemente empunhado pelo trono.

Mas, no início do século XX, forças e vozes importantes já haviam ultrapassado as barreiras do medo e da repressão e tinham conseguido penetrar nos corredores dessa nova assembleia. Embora dominada pela aristocracia, a Duma passou a ouvir reivindicações cada vez mais profundas por melhorias das condições de trabalho, da vida no campo e nas casernas.

Embora tudo isso esbarrasse na insensibilidade férrea de Nicolau II, talvez esse sistema pudesse ter perdurado indefinidamente. Só que, em 28 de junho de 1914, dois tiros de um revólver FN modelo 1910, disparados a queima roupa por um bósnio chamado Gavrilo Princip, iriam mudar o mundo. E a Rússia.

O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua mulher, em Sarajevo, pôs em marcha uma engrenagem de interesses e conflitos que havia sido fabricada desde a ascensão dos impérios ocidentais europeus, florescida após a derrota de Napoleão. As casas reais da Alemanha, Inglaterra, Áustria, Turquia, Itália e a República Francesa mantinham um equilíbrio frágil de entendimento, possível apenas enquanto seus quintais coloniais estivessem assegurados. Os Bálcans, embora dentro da esfera do império austro-húngaro, eram um estopim de controvérsias que atraiam a atenção de alemães, russos, turcos e britânicos. Os tiros de Princip acenderam a mecha.

A Grande Guerra apanhou o império russo no seu mais delicado momento. O gigantesco esforço para municiar um exército ineficiente num conflito de proporções nunca antes vistas acabou por destruir a frágil equação econômica russa e lançou o país no abismo do desabastecimento e da fome. No front, reveses e mais reveses agravavam a calamitosa situação das forças russas e, em 1915, Nicolau II tomou uma decisão que iria tornar-se catastrófica. Resolveu, ele próprio, assumir a chefia dos exércitos imperiais. Esta resolução determinou seu afastamento da capital, Petrograd, o novo nome de São Petersburgo. A responsabilidade do Governo ficou nas mãos de sua mulher, a Czarina Alexandra.

Alexandra, além de não contar com a boa vontade do povo, era alemã de nascimento, o que suscitava desconfianças de que sua lealdade pendia para o inimigo. Outro fator perturbador era a estranha fascinação da czarina por Rasputin. Libertino, carismático e autoproclamado mago, Rasputin, com as promessas de curar a hemofilia do herdeiro do trono, o Príncipe Alexei, acabou por dominar Alexandra, tornando-se seu consultor e imiscuindo-se nas questões de Estado. Sob sua influência, a corrupção espalhou-se pelos corredores palacianos e a última tábua de salvação da Coroa, a nobreza, voltou-se contra os Romanov. O mago seria assassinado em dezembro de 1916 pelo príncipe Iussupov.

Durante todo o período anterior à Grande Guerra, embora a Duma continuasse a ser dominada pelos conservadores e por parte da aristocracia, o pêndulo político na Rússia deslizava rapidamente para a esquerda. Lenin finalmente conseguira dominar o Partido Social-Democrata. Além disto, edificara uma teia de conselhos operários (os soviets), cujo objetivo era regular as atividades industriais em todo o território russo, sob o lema de pão para os trabalhadores, terra para os camponeses e pela assinatura de um armistício com os alemães. Seu poder aumentava a cada dia.

Em fevereiro de 1917, cercado por todos os lados, rejeitado pelo povo, comandando os restos de um exército em decomposição e abandonado pela elite aristocrática, Nicolau II abdicou.

(continua)

Oswaldo Pereira

Dezembro 2017

terça-feira, 28 de novembro de 2017

A REVOLUÇÃO RUSSA - PARTE II


No limiar do século XX, o imenso Império russo nada mais era do que uma floresta de galhos desidratados e árvores crestadas, em cujo solo um tapete de folhas secas esperava apenas uma centelha para deflagrar um incêndio de proporções catastróficas. Esta centelha surgiria sob a forma de um homem obstinado, carismático e messiânico. Seu nome era Vladimir Ilyich Ulyanov.

Vladimir era o terceiro filho de um casal extraordinário. Seu pai, Ilya Nikolaievitch, nascera numa família de criados e, não fosse sua diligência e ambição, estaria destinado ao mesmo destino modesto de seu círculo familiar. Mas, graças a uma incansável dedicação aos estudos, conseguiu chegar à Universidade de Kazan e formar-se como Professor. Eventualmente, viria a tornar-se um importante diretor geral de escolas regionais, não só ascendendo à classe média como, ao ter recebido por mérito um título da Ordem de São Vladimir, à pequena nobreza. Sua mãe, Maria Alexandrovna Blank, filha de uma sueca e de um alemão, tinha sido primorosamente educada pelos pais, ambos provenientes de duas afluentes sociedades europeias.

Dos dois, Vladimir herdou uma inteligência acima da média e, com a confortável situação financeira de berço, o direito ao ingresso na melhor educação disponível na época e no lugar onde moravam. O espírito inquieto nascera com ele. E essa permanente indagação pela razão de viver desabrochou numa formidável disposição para o confronto com o mundo que o cercava no momento em que duas tragédias familiares abateram-se sobre ele. A primeira foi a repentina morte do pai, em 1886, quando Vladimir tinha apenas 16 anos. A segunda, a condenação à morte, e posterior execução pelos tribunais czaristas, do seu irmão mais velho, Aleksandre, em seguida à captura de uma célula de conspiradores contra o regime de que era integrante.

Essas duras perdas, principalmente a de “Sasha”, o irmão que idolatrava, serviram, entretanto, para endurecer sua mente e temperá-la no caldo de inquietação revolucionária que escorria por entre várias camadas da sociedade russa. No meio universitário, a corrente elétrica dessa inquietação veio apanhá-lo, assim que entrou para a mesma escola onde seu pai estudara. Paralelamente ao brilho intelectual, sua incontida agitação logo o transformou num líder estudantil e um comandante de vozes que gritavam contra a opressão palaciana. A influência da memória de seu pai e intervenções de sua mãe livraram-no várias vezes da cadeia, mas não conseguiram impedir sua expulsão da Universidade de Kazan. Por essa época, o jovem Ulyanov já lera Das Kapital. A ideia da luta de classes como meio para o progresso social, a ascensão do proletariado e a derrota do capitalismo penetrou fundo nas suas convicções, formando a base que serviria para apoiar seu ativismo político.

Em setembro de 1889, resume a obra de Karl Marx n’ O Manifesto Comunista e começa a exercer sua influência nos diversos movimentos subterrâneos que proliferavam numa Rússia em crescente ebulição. O ano de 1893 o encontra em São Petersburgo, usando seu especial talento organizador para estabelecer células revolucionárias que seriam o embrião dos futuros soviets.  Mas aí, a polícia o apanha e, em 1897, vai para a Sibéria. São 11 meses de prisão, às margens do Rio Lena. Tempo para refinar sua estratégia e se preparar para a grande luta à frente.

Ao ser solto, vai para o exílio na Alemanha. Fora de seu país, a agitação dos expatriados chegava ao rubro. Em Munique, funda um jornal, Iskra (centelha, em russo) e escreve seus editoriais usando um pseudônimo, N. Lenin, inspirado no rio que banhava a cidade siberiana onde ficara. O jornal, contrabandeado para a Rússia, torna-se um símbolo de resistência à opressão e catapulta Lenin para o centro do movimento. Quando, em 1903, acontece o congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo em Londres, sua liderança racha a organização partidária. Comandando a ala autodenominada majoritários (bolsheviques em russo), que defende a luta armada como caminho para a revolução, derrota os minoritários (mencheviques), que adotavam uma linha mais branda.

A partir daí, com a tragédia do Domingo Sangrento manchando de sangue a neve da praça Dvortsovaya, não há mais como frear a História. Lenin está pronto. A centelha vai incendiar um país inteiro.

(Continua)

Oswaldo Pereira
Novembro 2017


segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A REVOLUÇÃO RUSSA - PARTE I



Atração obrigatória para quem visita a cidade de São Petersburgo, o Palácio de Peterhof foi construído entre 1714 e 1725, por ordens do Czar Pedro I, o Grande. O apelido pelo qual alguns o chamam, o “Versailles russo”, não lhe faz justiça. O magnífico edifício, a extensa área de jardins que o cerca e suas 120 fontes nada têm a ver com a construção francesa, um intoxicante exemplo da grandiosidade dos Reis-Sol. Peterhof, mesmo no seu rococó, é russo por natureza e, portanto, mais romântico e, se quiserem, mais autêntico, em suas cascatas que congelam no inverno e que, no verão, deslizam entre as mitológicas estátuas douradas que brilham como deuses.

Foi aí que, em 21 de fevereiro de 1903, o Czar Nicolau II realizou uma grandiosa festa, talvez uma das mais suntuosas e ricas de uma corte famosa por seu esbanjamento. Comemorava-se o 290° aniversário da ascensão ao poder dos Romanov, uma dinastia que mantivera sua hegemonia mesmo durante a hecatombe da Revolução Francesa e o vendaval de Napoleão. A festa foi um requintado espetáculo de luxo, reunindo, durante dois movimentados dias, a nata da nobreza czarista. Para os convidados, tudo do bom, do melhor e do mais caro. Mas nem Nicolau II, nem seus deslumbrados convivas, poderiam jamais imaginar que esta seria sua última festa.

Em 1903, o Império Russo reunia todas as condições que o poderiam definir como um imenso barril de pólvora. Espalhado por um território de dimensões quase incompreensíveis, era um oceano de pobreza com pequenas ilhas de opulência, habitadas por famílias nobres que dominavam as terras e a produção de riqueza existentes ao redor de suas propriedades feudais. O resto era quase um inteiro continente de lavoura pobre, gente analfabeta e vida miserável. A industrialização, que já vicejava com força numa Europa saída do Século da Luzes, chegara apenas incipiente à Rússia dos czares. No resto da Europa, a imagem que o império projetava era a de um país atrasado, empobrecido e malgovernado.

Em 1905, essa imagem deteriorou-se ainda mais, com a destruição da frota czarista em Port Arthur e a humilhante derrota do exército russo na Manchúria. O vencedor era uma improvável potência, durante muitos anos considerada pelo Ocidente como incapaz de impor êxitos militares. O Japão. Na realidade, a organização das gigantescas forças armadas russas era um espelho do país. Uma incapaz oficialidade, dominada pela hierarquia da nobreza, comandando uma legião de conscritos mal alimentados, mal treinados e ineficientemente armados.

O desastre militar abalou a alma russa. Dentro do exército, pequenas revoltas contra a incapacidade dos comandantes e as más condições de vida da soldadesca começaram a explodir, aqui e ali. Em julho de 1905, a sublevação dos marinheiros do couraçado Potemkin aumentou o nível de uma onda de protestos que tivera origem, seis meses antes, em São Petersburgo. Naquele domingo sangrento, em frente ao Palácio de Inverno, centenas de manifestantes desarmados, cujo objetivo era entregar ao Governo uma petição para melhoria de condições de trabalho, assinada por 120 mil operários, foram massacrados pela guarda cossaca.

Com explosões de descontentamento surgindo nos grandes centros urbanos, Nicolau II acabou cedendo e abrindo mão de algumas parcelas de seu absolutismo. Mas, teimoso e empedernido como era, ainda imaginava que o povo lhe devia inquestionável devoção. Perguntado, à época, se poderia ainda recuperar a confiança da população, respondeu com sua característica insensibilidade. Pergunte-me é se o povo ainda pode recuperar a minha confiança.

Assim, apesar da criação da Duma, um parlamento com limitado raio de ação, as agitações prosseguiram. O país tentava compensar o tempo perdido através de uma rápida industrialização. Uma nova classe, a dos operários, começava a crescer exponencialmente e, juntamente com as máquinas importadas, importava-se também os ventos de uma nova ordem de ideias, a maioria delas explicitadas décadas antes por Karl Marx.

Em 1914, o assassinato do arquiduque Ferdinando em Sarajevo lançou a Europa no inferno de uma guerra sem precedentes. A carnificina provocada pela combinação de táticas ultrapassadas de combate e a eficiência letal das novas armas ultrapassou o imaginável. Na Rússia, já combalida pelo caos político e econômico e pela desmoralização de seu exército, o efeito foi devastador.

Vladimir Putin declarou que os governantes que mais detestava eram Michail Gorbachev e Nicolau II porque tinham deixado o poder cair nas ruas. Em 1917, com a fome se alastrando, a corte paralisada, o Governo sitiado, a guerra sendo perdida e forças políticas surgindo do pântano institucional em que o país se encontrava, o poder na Rússia caiu literalmente nas ruas.

(Continua)

Oswaldo Pereira
Novembro 2017


quinta-feira, 9 de novembro de 2017

ORIGEM


Como leitor inveterado que sou, acabo voltando a ler autores que às vezes repudio ou em quem, pelo menos, não encontro grandes pendores literários. Talvez seja o fato de que, embora pobres de estilo, são eles capazes de criar boas estórias. Mesmo sem saber contá-las bem, a trama que engendram chega, por si só, a justificar a compra de seus novos lançamentos.

É o caso de Dan Brown. Seu livro “Inferno”, publicado em 2013, foi mal recebido pela crítica. Era a repetição ad nauseam de uma fórmula gasta, a mesma que havia sido original apenas no seu primeiro, e excelente, livro, “O Código Da Vinci”. Eu mesmo, neste modesto blog, desanquei “Inferno”. Se quiserem, e tiverem tempo disponível e vontade idem, podem reler minha avaliação no link abaixo.

No entanto, e apesar de tudo, acabei lendo sua mais nova produção, o muito anunciado “Origem” (Origin, no título em inglês).

Bem... Lá estão os mesmos ingredientes, outra vez. O indefectível Robert Langdon, o herói criado por Brown, uma espécie de McGyver intelectual, repete sua velha rotina de se envolver em confusões gigantescas e acabar sempre sem a mocinha (desculpem o spoiler...). O nexus da trama é, mais uma vez, a Religião e o embate milenar entre espiritualidade e materialismo agora concentra-se na procura da resposta às duas mais antigas perguntas da Humanidade. De onde viemos? e Para onde vamos?

Novamente, há um superdotado cientista, uma corrida policial, vilões declarados e insuspeitos e uma cidade-cenário. Desta vez, é Barcelona. (O livro passa longe das atuais tribulações catalãs. Deve ter sido escrito muito antes.)

Além disso, a narrativa gasta páginas demais no conflito Darwin vs. Antigo Testamento, enchendo o enredo de uma extensa ramificação de citações e pistas literárias, e suas interpretações. Tudo bem que brincar com símbolos é a marca registrada de Dan Brown e de seu personagem, Langdon, um professor de Simbologia em Harvard. Mas, algo mais rapid fire poderia enxugar um pouco o calhamaço de Origem.

Se você acha que poderá descontar isto tudo, talvez descubra, como eu, algumas boas passagens, principalmente naquilo em que Brown é um craque. Criar bons momentos de suspense e descrever com maestria as imagens de fundo. Em Origem, a superposição de dois roteiros, um centrado na revelação que um renomado cientista com ares de superstar prepara-se para apresentar ao planeta, outro numa sombria sucessão ao trono espanhol, mantém o leitor acordado. Ao fundo, ícones da cidade como a Casa Millà e a Sagrada Família merecem do autor a homenagem de uma descrição impecável.

Mais apelos turísticos para a grande cidade catalã. Só que Barcelona anda às turras com os turistas. E com a Espanha...

Oswaldo Pereira

Novembro 2017

domingo, 5 de novembro de 2017

ADAPTABILIDADE


Foi seco, quente e longo. Mais que tudo, o verão que agora morre no Hemisfério Norte foi devastador. Só de fenômenos beirando as classificações máximas nas tabelas da destruição, foram cinco furacões, três terremotos e três grandes incêndios florestais, dois deles num só país – Portugal. Pode ser tudo uma grande coincidência. E pode não ser.

Não se preocupem. Eu não vou entrar pelas vielas de discussões ambientais. Rios, e bem caudalosos, de tinta já foram despejados neste tema e os extremos de argumentação vão desde a culpabilidade do Homem Predador à crença nos ciclos eternos e inevitáveis da nossa biosfera. Na minha santa ignorância, acho que a origem do presente mau humor da mãe Natureza está no meio deste pêndulo.

O que me incomoda é verificar que, tanto creditando as catástrofes ao descuido da raça humana como as debitando aos desígnios atmosféricos (ou até, nas hostes mais apocalípticas, ao engenho de um deus vingativo), nada está sendo ou pode ser feito. Do lado mão do Homem, falta vontade política. Estudos técnicos, avisos científicos, previsões educadas e filmes de impacto têm tido pouco ou nenhum efeito prático dentro dos gabinetes governamentais dos grandes poluidores. Empregos, investimentos, produção de alimentos e ambições pesam mais na balança do que teorias e projeções, mesmo aquelas com o peso de nomes respeitados. Estes olham para o futuro. A Governança só vê o presente.

Do lado fenômenos cíclicos, o fatalismo reduz à inércia. Fazer o que, dizem, contra uma inevitabilidade cósmica? E citam os dinossauros...

Sem chance? Não sei. Mas sei que a nossa varonil raça humana tem sempre um truque na manga. E este truque tem-nos feito conseguir coisas admiráveis. A Adaptabilidade. Os dinossauros estiveram aqui por cento e oitenta milhões de anos. Nós só estamos há dois. É um pouco cedo para desacreditar na imensa vontade de sobreviver que nos rege.

Somos capazes de sonhar com a eternidade. Os dinossauros não eram...

Oswaldo Pereira
Novembro 2017


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

BLADE RUNNER 2049


Remakes & Sequels. Bem que a indústria do cinema podia criar esta categoria. Novas versões & 1, 2, 3 poderia ser a tradução livre. Já é um gênero, dada a persistência com que cineastas, produtores e roteiristas têm-se dedicado a revisitar ou estender temas e ideias de sucessos originais. A coisa vem de longe, é verdade. O Ben-Hur de Charlton Heston já foi um remake de um homônimo do cinema mudo. Os Dez Mandamentos, com o mesmo bíblico Heston, da década de 1950, uma refilmagem de outro de trinta anos antes. A lista é longa. Os Três Mosqueteiros já teve mais de cinco repetições, King Kong outras quatro. Clássicos qualificados de definitivos, como Psicose, Os Sete Magníficos, O Destino do Poseidon e O Dia do Chacal acabaram não resistindo ao apetite dos renovadores e surgiram em nova roupagem. É como se alguém se propusesse a novamente esculpir a Pietà ou repintar a Noite Estrelada. Ou seja, quase nunca dá certo.

No terreno das sequências, a coisa melhora um pouco. Há vida para além de Rocky I, II, III etc., ou da alentada família de super-heróis, um constante jorrar de sequelas que faz a festa do pessoal da computação gráfica. Star Wars é um exemplo de como uma ideia pode evoluir, decair e recuperar seu rumo. De Volta Para O Futuro fez três ótimos capítulos e, com talvez apenas um “furo”, a saga dos Aliens está sendo bem contada.

Tudo isso para chegar no Blade Runner 2049.

Logo de saída, preciso esclarecer que o primeiro capítulo, de 1982, figura entre os melhores filmes de ficção científica a que assisti. Quatorze anos depois de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, a realização de Riddley Scott (pouco conhecido então) bateu fundo. Na década de 1980, com os alertas de um futuro acossado pelas agressões ambientais, um mundo distópico, cinzento, poluído e degradado podia ser vislumbrado para dali a 40 anos e a ambientação de um dia-a-dia do século XXI, com sua chuva negra, seus outdoors gigantescos e orientalizados, seus carros voadores e a angústia depressiva flutuando num ar saturado perfeitamente reconhecível como provável.

Mas o meu fascínio veio da mensagem embutida no dilema dos Replicants. Construídos à perfeição, estavam fadados à precariedade de uma vida curta. E isto havia sido o tema central de toda a minha revolta contra o milagre da criação desde a juventude. Por que havíamos sido dotados da miragem da fruição de uma imortalidade terrena, se jamais iríamos ser capazes de tê-la? A forma poética com que, ao final do filme, Roy Batty, o replicante magistralmente interpretado por Rutger Hauer, homenageia a vida enquanto ela se apaga para ele, permanece, para mim, como uma das mais lindas cenas do cinema. (E com a música de Vangelis ecoando ao fundo, é de arrepiar...)

Assim, fui ver BR 2049 com uma pontinha de receio e desconfiança. Riddley Scott deixara a batuta na mão de Dennis Villeneuve. Ryan Gosling era o novo caçador de androides, Hans Zimmer substituíra Vangelis. E se tudo fosse um grande equívoco?

Agora sei que não é. O filme mantem a pegada apocalíptica do primeiro e o tom certo da interpretação de Gosling ganha o dia. Trinta anos à frente, Los Angeles adensa sua atmosfera brutal de cidade terminal e segue como pano de fundo perfeito para a trama. A toda hora, citações e simbolismos premiam o espectador atento com verdadeiras joias escondidas no roteiro. E é especialmente bem apanhada a cena de reaparecimento do velho Rick Deckard, um Harrison Ford bem temperado pelos anos.

Nestas décadas em que o primeiro Blade Runner virou cult, a grande pergunta foi se Deckard era ou não androide. Para não estragar a festa de quem ainda não assistiu ao 2049, apenas informo que esta dúvida fica ainda mais alargada na presente produção. E a fina linha divisória entre replicantes e humanos torna-se ainda mais tênue.

Mesmo sem o lirismo do primeiro filme, o segundo merece elogios. Parece que não anda bem nas bilheterias. Talvez vire, como o outro, cult. Mas é bom o bastante para sugerir que, daqui a mais 30 anos, seja realizado um Blade Runner 2079. Quem viver, verá...

Oswaldo Pereira
Outubro 2017


quarta-feira, 18 de outubro de 2017

CHAMAS


Portugal arde. Califórnia também.

Não sei o que se passa nos Estados Unidos, mas por aqui esta nova tragédia faz despertar uma incontida ânsia de descobrir os culpados. As cenas do pinhal milenar de Leiria queimando como as fornalhas do inferno, os vídeos de carros apanhados numa armadilha de fogo, os relatos ao vivo de perdas irreparáveis tocam fundo. A magia do celular-câmera transforma todos nós em repórteres em primeira mão e a realidade escancara sua boca sem retoques ou photo-shops.  A pancada é direta no estômago. E provoca o regurgitar de dezenas de perguntas. Como pode isto acontecer? Por que isto aconteceu? A quem cabia não deixar isto acontecer? Quem falhou? E, da Natureza até aos serviços de proteção civil, passando pelo Governo, Câmaras Municipais, Bombeiros, Autarquias e Segurança Pública, uma longa lista de culpados se forma nos noticiários, nas opiniões dos experts de plantão e nas onipresentes redes sociais.

Estranhamente, fala-se pouco nos incendiários. E é mesmo de estranhar-se pois, mesmo se reconhecendo a situação propícia criada por um dos verões mais longos, quentes e secos do século, quinhentas ocorrências de focos de incêndio ocorridas num só dia (domingo passado, 15 de outubro), não pode ser obra só da mãe natureza. Ninguém parece atentar muito para a branda legislação que pune com penas reduzidas e apenas monitoramento individual os criminosos que, por descuido ou por vontade, disparam as chamas que matam e destroem incontáveis sonhos e vidas. O atear de um fogo precisa ser encarado como um ato de vilania e periculosidade comparável a um atentado terrorista. Seu dano pode ultrapassar a contabilidade hedionda de bombas, tiros ou atropelamentos praticados pelo terror urbano. Só neste ano, em Portugal, perderam-se milhares de habitações, centenas de propriedades rurais e de negócios. E uma centena de vidas.

Agravamento da legislação penal, reordenação da ocupação florestal, apetrechamento adequado dos meios de combate ao fogo, melhoria dos procedimentos de emergência são providências que o Estado Português vai precisar introduzir com profunda seriedade e eficiência. E rapidez. O verão acabou e as primeiras chuvas outonais vêm amansar a fúria do fogo.

Mas, o verão de 2018 está à espreita, logo ali, daqui a oito meses...

Oswaldo Pereira
Outubro 2017


quinta-feira, 5 de outubro de 2017

INSANIDADE


Como entender algo assim?

Que escaninhos tortuosos da mente humana regem atos como esse?

O que leva um homem aparentemente normal, sem problemas financeiros ou de saúde, a tornar-se num monstro assassino, de uma hora para outra?

Que gatilho emocional o fez disparar a morte sobre uma multidão de desconhecidos?

Que fantasia alucinada pariu ele em seus neurônios? Em nome de que ou de quem? O que alimentou sua fúria? Vingança? Desespero? Onipotência?

Só tenho perguntas. E a esperança de que algum psicólogo de plantão me explique.

Steve Paddock não é o primeiro. Nem será o último. Já tivemos outros massacres, nos Estados Unidos, na Noruega, até no Brasil. Na maioria deles, acabou-se por encontrar um motivo, uma distorção de caráter, um despeito afogado, um recalque mal curado, uma alucinação religiosa. Ervas daninhas escamoteadas, às vezes durante anos, por um comportamento social exemplar, prontas a explodir como uma caldera fumegante de ódio.

Queria só entender.

Só não vou perceber é como a legislação de um país permite a um cidadão possuir 42 armas de fogo, sem ser colecionador ou comerciante do ramo. Tem muita gente dizendo que uma coisa não tem a ver com a outra. Pode ser. Gostaria de acreditar, mas acho complicado.

Enquanto isso, o triste recorde de 58 mortos (até agora) e 547 feridos sangra nos noticiários.

E mais uma pergunta flutua num céu de chumbo. Até quando?

Oswaldo Pereira
Outubro 2017


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

UMA NOVA ERA?...


Mais um fim de mundo que falhou. Como na piada já viralizada no Face, eu fui a todos. 2000, 2002, 2012, 2015... Para o da viragem do milênio, escrevi até um conto, “Conversa no Theatro”, que, como todos os outros contos meus, sofre as penas do desterro, exilado dentro do meu e-book “Livro de Contos”, aqui mesmo nas colunas laterais do meu blog. Se se sentirem penalizados pelo seu ostracismo, permitam-se uma olhada. É só clicar na capa do dito livro e percorrê-lo...

Mas, voltando ao apocalipse prometido para o passado dia 23, a aguardada conjunção de sete corpos celestes (Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e a estrela Regulus, da Constelação de Leão) iria desencadear uma série de perturbações celestiais. Falava-se até no aparecimento de Nabiru, um planeta rogue do nosso Sistema Solar, e de uma possível colisão sua com a nossa Terra.

Outra escola de estudiosos dos humores do orbe assegurava, entretanto, que o raro alinhamento não determinaria o Armagedom, e sim o início de uma era universal de entendimento e paz. O propalado “fim da escuridão”.

Bem, até a hora em que escrevo estas pachorrentas linhas, o mundo não acabou. O céu azul e as gaivotas que vislumbro da minha janela confirmam esta certeza. Assim, uma parte das profecias deu chabu. E o outro vaticínio? Será que entramos numa Era de Aquarius do Bem?

Conferindo. No mesmo sábado 23, o Ministro das Relações Exteriores da Coreia do Norte discursou no plenário da ONU. Disse poucas e boas contra os Estados Unidos, enquanto que distúrbios geológicos davam a entender que um grande teste nuclear tivera lugar no norte da península coreana. Especialistas indicam que, possivelmente, Kim Jong-un já conseguiu seu brinquedinho atômico.

Um dia depois, Angela Merkel confirmou sua vitória nas urnas, mas a Alemanha acordou na segunda com a incômoda notícia do crescimento histórico da extrema direita, o que transforma os próximos anos de Merkel no poder num pedregoso caminho de alianças instáveis. Para a Comunidade Europeia, a braços com o Brexit, com um Catalunha-exit em gestação, um Macron caindo pelas tabelas da popularidade, países construindo muros anti-refugiados enquanto Grécia e Itália se abarrotam deles, uma Alemanha com entraves políticos é tudo o que não se precisa.

Neste mesmo fim de semana, Trump conseguiu a insuperável façanha de se indispor com TODOS os jogadores da NFL e da NBA. Disparando twitters a torto e a direito, além de brigar com Stephen Curry, uma das maiores estrelas do basquete americano, sugeriu aos donos dos clubes das duas ligas que despedissem os jogadores que não se levantaram durante a execução do Stars and Stripes Forever. Como a maioria dos atletas são negros, e todos os donos de clube são brancos, a imprensa anti-Trump já levou a coisa para o lado racial.

Na Venezuela, Maduro ainda não apodreceu graças ao apoio de uma parte da população e, claro, das Forças Armadas. Mas é evidente que a corda se estica cada vez mais. Questão de tempo. Tempo também é o que corre para Michel Temer, sem cacife político e credibilidade para fazer passar as reformas de que o Brasil precisa para sair do atoleiro estrutural em que se encontra. Com o Governo falido, a classe política corrompida e o povo dividido, a saída para um futuro menos tumultuado parece cada vez mais distante. Ou não, se é que me entendem...

Com este quadro, a nova Era nascida da conjunção estelar parece ratear logo no início. Vai ser preciso alinhar mais planetas...

Oswaldo Pereira
Setembro 2017



quinta-feira, 14 de setembro de 2017

DESTINOS CERTOS: O RIO DOURO


Ele nasce na Espanha, a dois mil metros de altura, num desvão inclinado, em um dos picos da Sierra de Urbión. Frágil de início, vai ganhando corpo e velocidade, engrossando seu caudal, à medida que serpenteia pela meseta castelhana e pelas províncias de Castela e Leão. Quando atravessa a fronteira e passa a ser português, já é quase um deus fluvial, amplo, forte, majestoso. Muda seu nome.

Em Espanha, chama-se Duero. A palavra vem dos celtas, dur, que significa água. Em Portugal, o Douro suscita outras explicações. Alguns defendem que a denominação vem de dûr, um rio sinuoso, com desníveis e corredeiras traiçoeiras, perigoso e duro de navegar. Outros, que as pedras que resvalavam pelas suas margens eram pepitas de ouro. Rio de Ouro, portanto, uma versão romântica para seu nome.

Com o tempo, o rio foi sendo domesticado. Desde o século XVIII, o Douro recebeu intervenções que o dotaram de barragens e eclusas, regularizando seu curso e abrindo caminho para sua exploração como via comercial de escoamento de seu mais precioso tesouro – o vinho.  

Com as cidades do Porto e de Vila Nova de Gaia como terminal, a produção vinícola da região experimentou um extraordinário crescimento a partir do início dos anos 1800. Gravuras de época são pródigas em representar barcos carregados de tonéis a descer o rio. Dentro deles, o divino néctar das uvas douradas que cresciam em suas margens. Principalmente, com uma versão deliciosa desse líquido, obtida pela fermentação interrompida e pela adição de aguardente, que ganhou os cálices de todo o mundo com o nome de vinho do Porto.

Hoje, uma outra indústria vem aproveitar-se deste rio agora domado, com suas plácidas águas, seus pedaços de História surgindo a cada curva, as montanhas que ladeiam o curso d’água, cobertas, até onde a vista pode alcançar, de vinhas verdes, debruçadas nos socalcos como ondas esmeraldas. O Turismo, que enche o Douro de barcos panorâmicos e de gente ávida por provar o sabor superlativo de seu vinho. No ano passado, foram 800 mil visitantes. Este ano promete mais.



É a magia do Douro Vinhateiro, uma das mais belas regiões deste pequeno paraíso que é Portugal.

Oswaldo Pereira

Setembro 2017