sábado, 8 de março de 2014

ÀS MULHERES




À minha mulher, minhas filhas, minha nora, minhas netas e a todas as mulheres do mundo.


“Estou no fundo da caverna. Sou fêmea, sou parideira. Sou quem vela na noite fria, sou quem amamenta a cria.

Sou concubina do Faraó. Sou Rainha do Nilo. Sou escrava. Sou eu quem azeita as cordas que puxam os blocos de pedra. Sou tudo e sou nada.

Sou o esteio do lar. Sou mulher de Atenas. Também sou hetaira, poetisa, musa. Sou Helena de Tróia. Sou deusa no Monte Olimpo, sou Medusa, sou aquela que vê o Futuro, pitonisa, temida, amaldiçoada.

Sou Messalina, sou Vênus, sou Diana. Sou loba romana. Sou mulher de César. Venho da savana africana, sou vendida no mercado. Sou carne para os vencedores, entregue aos gladiadores.  Sou jogada na arena. Sou Maria, Madalena.

Sou mulher de Átila, sigo os exércitos. Às vezes me pinto e sou guerreira. Atravesso o gelo dos Alpes com um filho nos braços. De quem? Não sei. Somos bárbaros, sou cria da batalha, sou nascida pelas estradas do império que morre.

Sou castelã enclausurada. Sou Joana d’Arc, sou freira. Sou santa, sou feiticeira e ardo na fogueira dos homens. Valho menos que novilhas, me trocam por cabras, ovelhas. Sou menos que nada, sou estorvo.

Sou Mona Lisa, Julieta e Capuleto. Sou Bórgia, sou papisa. Sou amante, meretriz.  Também sou de Aviz, vendo meus homens partirem para além da Taprobana. Sou índia das Américas, vivo na China dos sonhos, meu filho mestiço será.

Sou Maria Antonieta, comam brioches enquanto minha cabeça me diz adeus na guilhotina.  Morro num minueto de tísica, sou La Marseilleise, parto para o Novo Mundo. Sou Carlota Joaquina, Catarina  de Bragança, mas longe está ainda a esperança de ser cidadã.

Napoleão matou meus filhos, meu marido e meu pai. Só vejo cruzes no lugar de arados. Enquanto eles constroem países nas Américas, eu desapareço na rotina num mundo de segunda classe.  A Revolução Industrial ferve nos altos fornos e eu continuo a limpar a fuligem do rosto de meus homens cansados.

Allez op! Aí vem o século da luzes. Paris rebrilha, o avião voa, o telefone fala, o navio afunda. Eu danço o can-can, empunho minha bandeira e quero falar, quero votar, quero SER. A Guerra vira hecatombe e eu vou para os hospitais, para as fábricas. Agora, eles vão ver o meu valor. Será?

Sou viúva, sou órfã, sou mãe a quem amputaram um filho. O pranto seco que não chora mais.  E eles não entendem, não ouvem. Estão vestindo novamente os uniformes, cheios de si. Vai-nos restar a espera. Vão ter que nos valer as preces. Cemitérios frios, nova lápides, invernos vazios.

Sou doméstica de luxo em anos dourados. Eles nos regalam, amorosos e confiantes. Uma nova batedeira, o fogão ultramoderno, a  lava louças que só falta falar. Mas, e EU?. Eu quero falar, eu quero dizer. Algumas de nós, com a coragem dos desatinos, cruzaram a fronteira.   Muitas foram abatidas pelo tiro certeiro do preconceito.

Finalmente, sou hippie, livre, leve e solta. Sou dona do meu ventre. A pílula parte as algemas e eu VOU. Ninguém me segura, sou energia pura. Aventais só por escolha, e quero mais. Quero o mundo, quero ir fundo na aventura de viver. Quero ser senhora do destino, dona do meu nariz. Vou partir. E você, quer vir?”





Oswaldo Pereira
Março 2014









7 comentários:

  1. Obrigada por se lembrar de mim, de nós. Muito interessante o texto.
    La Salette

    ResponderExcluir
  2. Lindíssimo texto poético realista mas cheio de alusões mitológicas. Isso torna-o mais belo.
    Foi dedicado às Mulheres, e isso faz-nos sentir, por vezes, reconhecidas.
    Não propriamente por ser o Dia da Mulher (data que não me diz rigorosamente nada já que não sou feminista). Todos os dias são Dias da Mulher, do Homem e da Criança e assim por diante... Todos os dias podemos, através dos nossos actos, engrandecer a Humanidade
    Paula Calisto (comadre da La Salette) que mo recomendou.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigadíssimo, Paula, pelos seu tão gentil comentário. Espero que continue gostando deste despretensioso blog. Abraços

      Excluir
  3. Magistral o texto sobre as mulheres, eu o subscrevo inteiramente. Aí, espremo a cabeça para dizer mais alguma coisa e o que me vem é que existem dois conceitos de mulher: um corresponde à mulher que de fato é no mundo físico, a que concretamente existe, a mulher objetiva; o outro conceito corresponde à mulher que existe dentro de cada homem, é a mulher subjetiva. Essa última, que pode ser brilhante como uma fada, ou sombria como uma bruxa, habita o âmago das almas masculinas, e é por elas que nos apaixonamos e nos matamos, é também delas que nos vêm inenarráveis momentos de êxtase e de desespero. Jung a chamava de anima . E creio que foi ela que você, Oswaldo, pintou com sua costumeira maestria. Parabéns.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Marcos. Você definiu bem e é essa a nossa saga primordial. Conviver com um ser superior a nós, toscos machos, e tentar entender todo o mistério. O nosso colega Arnaldo Jabor escreveu algo sobre isso em sua coluna de terça feira. Somo todos aprendizes...

      Excluir
  4. Boas palavras! Bom tempo! 2014.Emoção mais livre, boas idéias. Um texto comovente.
    Obrigada.

    ResponderExcluir
  5. Parabéns!
    Prof. Lamartine Bião Oberg
    www.biaobresil.com (França)

    ResponderExcluir