terça-feira, 30 de junho de 2020

E SE?




E se o confinamento, o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social demorarem mais do que o imaginado? E se a famigerada segunda onda se abater sobre o mundo? E se a vacina levar mais tempo para se provar eficaz?

A vida neste planeta azul está sempre em constante evolução. Há zilhões de anos, ela saiu de uma pequena lagoa murmurante entre pedras ainda escaldantes e escorregou para a superfície. Aos poucos, seu rastejar transformou-se num caminhar sustentado, pés ante pés, asas sobre asas, varando uma natureza saturada de oxigênio e plena de alimento, tudo o que o metabolismo incipiente de uma variedade inimaginável de espécies precisava para prosperar.

Até chegar ao homo sapiens a palavra chave foi a transformação. Coluna ereta, polegar opositor, sexualidade à flor da pele, foram transmutações determinantes, desenvolvidas em resposta às exigências de um ambiente hostil, mas desafiador, e alimentadas por uma predestinação férrea à sobrevivência e à procriação.

Assim, e para sempre, a raça humana tem como destino e saga a sua capacidade de adaptação. E de se modificar para sobreviver. De moldar seu corpo e sua mente como reação aos caprichos da natureza e aos percalços do ambiente.

A presente pandemia teve como consequência uma mudança brusca no comportamento social em todos os países. Hábitos, cuidados, regras de relacionamento, protocolos e rotinas para contatos e etiquetas de aproximação física foram, em maior ou menor grau, impostos por governos e autoridades desde que o vírus começou a espalhar-se. É esperável, e até agora os sinais não desmentem, que esta pandemia vai acabar. Mas, e se não fosse assim?

Depois de anos usando máscaras, teríamos de desenvolver outros sinais de comunicação social. Com a boca e toda a parte inferior do rosto encobertos, a janela das nossas emoções seriam apenas os olhos. Franzidos, abertos, esbugalhados, semicerrados, dirigidos para cima ou para baixo, oblíquos, enviesados, delineados ou simples, com lagrimas ou sem elas, cada trejeito ocular significaria uma mensagem, de amor até o ódio, e de todas as suas gradações.

Nariz, boca, bochechas e queixos iriam sumir do contato visual. Toda a humanidade em meia burka. Então, batons e os demais cosméticos faciais perderiam o sentido. Barbas escanhoadas ou bem desenhadas, também. Dentes alinhados ou tortos, idem. Prá que? Ninguém iria mesmo ver...

O cotovelo se consagraria como o ponto de contato físico por excelência. Com tempo, é provável que sensores naturais se instalassem na sua ponta, capazes de registrar temperaturas, dureza, maciez e, colateralmente, animosidade ou simpatia. Com abraços, afagos e beijinhos terminantemente proibidos por lei, o cotovelo seria o rei da etiqueta. Logo, regras de como cumprir o ato social de os encostar serviriam de parâmetros para aferir a elegância e a boa educação das pessoas.

O mundo teria os limites das paredes de sua casa. Ensino, trabalho, convivência com amigos e parentes, namoros e paixões seriam ministrados, administrados e filtrados pelos apetrechos eletrônicos. TV’s, laptpops e celulares seriam os braços abertos (ou fechados) de união e de convívio. Carinhos e palavrões, confissões de amor ou de desprezo, reuniões corporativas ou familiares, deveres de casa e beijos de avós, brindes festivos ou condolências tristes, tudo viria por telas, pequenas ou grandes, e ouvido por auscultadores e auriculares.

Mas, é claro, isto é só um pesadelo ficcional. Penso eu...

Oswaldo Pereira
Junho 2020


8 comentários:

  1. Costuma-se dizer q a ficção é mais verdadeira do que a verdade, como se o exercício da mente, tomasse o lugar do real expondo o que se trava na mente do autor e ele refaz e erige uma realidade "outra", digamos q "sem censura". E é isso que encanta o leitor, Ousarmos ser no âmbito de um limite estendido ad infinitum. A meu ver, essa é uma das mais belas funções da mente:captar a beleza. Isso é arte. Alguém disse: Abrace a Arte, porque a Vida não basta.

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    1. Belíssimo comentário! De quem deve conhecer fundo a alma de um escritor.

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  2. O titulo do seu texto me fez lembrar o poema "If" de
    Rudyard Kipling. Foi bom reler.

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    1. Nos meus tempos de criança, era o poema mais sugerido pelos pais a seus filhos. Estava tudo lá.

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  3. Como sempre excelente artigo, talvez o melhor de todos os que venho acompanhando.
    Você termina dizendo tratar-se de um pesadelo ficcional. Não sei, pois a Arte no seu caso a Escrita, imita a vida e possa ser não um pesadelo, mas uma antevisão de um futuro muito triste e sombrio para quem conheceu um mundo diferente. Para os que nascerem após a pandemia esse mundo que eu falo ser sombrio será o normal.Bjs Zezé

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    1. Pois é, querida Zezé. O medo talvez seja a pior consequência desta pandemia. E a culpa nesse cartório recai em muita medida sobre todas as "autoridades" que, inconsequentemente ou com intenções, o disseminaram. Bjs.

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  4. Olá Oswaldo
    Um enfoque apropriado para se se prolongar "sine die". as precauções recomendadas pelas instituições de saúde.
    A tecnologia já esta contribuindo na comunicação e nas atividades que requeriam a presença das pessoas.
    O que a gente realmente sente é a falta do o aconchego de nossos entes queridos e dos amigos aos poucos vamos nos adaptando as reuniões de família pelas telas dos nossos celulares e assim aprendendo novas maneiras de comunicação JáMas estamos usando mais e mais sinais com as mãos e gestos , só falta aprender a comunicação libra dos surdos e mudos. Mas cientistas vão encontrar a vacina adequada e ou a própria natureza do homem vai criar uma auto defesa.Foi assim que os nossos antepassados foram se adaptando.
    Em quanto isso nos resta curtir nosso tempo com o que gostamos de fazer descobrir o que podemos fazer confinados nas paredes da nossa casa , e logicamente ler a palavra escrita. não deixe de escrever meu amigo.
    Emilio Gonzalo

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    1. Obrigado, caríssimo Emilio. Não pretendo parar de chatear os amigos e os abnegados leitores deste blog. Se bem que há momentos em que a inspiração desaparece num árido deserto de ideias e o celeiro de assuntos se esgota. Mas, o incentivo de amigos como você acaba por abrir caminhos e renovar vontades. Mais uma vez, obrigado.

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