quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O BAÚ



Quanto mais vivemos, mais lembranças temos. É um axioma. E, dito assim, parece uma obviedade gritante. A vida nos faz acumular passado que, no fundo, nada mais é do que um baú de histórias que o destino, ou alguém regendo em seu lugar, nos fez protagonizar. À medida que nossa trajetória se alonga, estes pedaços de memória vão resvalando para dentro deste baú, acumulando-se juntamente com a poeira do tempo. Alguns vão tão fundo ou são tão distantes no tempo que acabam se apagando, como papéis velhos e amarelecidos que se desfazem no sopro do esquecimento.

A ruína, no entanto, é seletiva e pouco tem a ver com o passar dos anos. O que mantém algumas dessas lembranças vivas e coloridas é a maneira com que elas nos encantaram, feriram ou nos modificaram. De repente, o som de uma canção ouvida na infância e que nos trouxe uma revelação está mais vivo do que a desimportante sinfonia tocada anteontem. Primeiros amores, primeiras dores, primeiras encruzilhadas, primeiras epifanias – são elas as imagens que mais perduram, são delas que nosso enredo seletivo mais lança mão, quando a idade nos abre o baú.

Nós, os velhos, estamos cheios dessas coleções de momentos passados e recordá-los é um dos mais praticados exercícios e um dos prazeres mais cultuados da velhice. E a suprema felicidade vem quando podemos compartilhá-los com aqueles que os experimentaram ao nosso lado.

Acontece que, com o correr do tempo, muitos dos nossos interlocutores vão partindo, levados pelo mistério que é o destino. Vamos ficando sós, sem ter conosco as testemunhas dos episódios do nosso passado. Aquele amigo com quem vimos um gol de Garrincha num Maracanã lotado, que foi conosco numa matinê do Metro Copacabana ver a plateia batendo palmas para Gene Kelly dançando na chuva, aqueles com quem amarramos a primeira bebedeira de cuba-libre ou ainda os que, juntos, após um festa de reveillion de vestidos longos e smokings, fomos ver a alvorada de um novo ano na praia de Ipanema.

Podemos até continuar contando estas mesmas estórias para outros ouvidos, mas a magia do compartilhamento de uma experiência comum não aflora, a linguagem cifrada dos segredos divididos não é mais reconhecida.

Vamos ficando mais sozinhos com o nosso baú, pois cada vez menos há aqueles que sabem a senha de seu cadeado.

Envelhecer também é isto.

Oswaldo Pereira

Dezembro 2022

8 comentários:



  1. A posse das memórias acumuladas é privilégio da idade. A llnguagem dos jovens não é a mesma do que a nossa. A ideia jesuítica do Criador está mais para a ciência quântica do que pelas limitações do mundo Newtoniano do qual a Ireja se serviu para arrebanhar fiéis tementes mais ao diabo do que a Deus. A experiência dura um sopro de vida. A humanidade permanece ignorante porque não aprende com a experiência. A unicidade da cultura de uma geração acumulada, é acrescida ou derescida em cada geração e é una original e indivisível enquanto a gente passa pela esteira do tempo que nos leva, dando a impressão às vezes, estarmos parados vendo o mundo passar enaqunto a esteira rola. A sabedoria está em saber que adiante teremos que dela saltar, já que companheiros já estão saltando. É a única certeza que lamentamos.

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    1. Excelente, meu caro Lustosa. E como é bom poder saborear teu texto com o gosto de experiências partilhadas.

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  2. Afinal o que nos salva, ou não, é a palavra: dita, escrita, mas principalmente compartilhada. "Nesses dias", diante da escuta, diante do outro, diante da diferença e até mesmo da indiferença , o pensamento pode e deve pedir a palavra antes q se percam ideias e desejos arquivados".

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    1. Muito bem posto. Talvez pensando nisto, eu me propus a manter este modesto e obscuro "Palavra Escrita", quanto mais não seja pelo prazer de compartilhar histórias e estórias com amigos como você...

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  3. A sabedoria está em saber que adiante teremos que dela saltar, já que companheiros já estão saltando. É a única certeza que lamentamos.

    O que mais me dói, é perceber que além da perda de tantas pessoas queridas, é a perda da referência de objetos, coisas, hábitos, regras, costumes, linguagem e de lugares que vão sendo modificados pelas mudanças a partir do crescimento e do progresso(???)
    Costumo dizer deixem meu passado em paz, pois as poucas vezes que retornei a um lugar antigo nada ou pouca coisa existia do que vi ou do que vivi.
    Abraços, Zezé

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    1. As coisas mudam. E a sensação de não encontrá-las mais como eram, como você muito bem apontou, é cruel. Por isso mesmo, eu as guardo em meu "baú". Lá ninguém as toca...

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  4. Me ocorre que os dia e as noites não desaparecerão. Eventualmente é bom contempla-los.

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