quinta-feira, 21 de maio de 2020

A NAVE




A nave vinha de longe, muito longe. Saíra de seu sistema solar, uma confederação de 5 planetas semi gasosos, localizado na Nebulosa de Orion, há mais de 5.000 anos.

Sua tripulação era a mesma, desde o início. Um comandante, 1 imediato, 4 operadores e dois navegadores. Todos feitos de uma matéria próxima do silício, anaeróbicos e retroalimentados por ions retirados do ambiente que circundava a nave, ou seja, partículas de vento estelar, abundantes em qualquer ponto do universo.

Chamá-los de inteligência artificial seria o mesmo que, aqui na Terra, classificar os supercomputadores da NASA como máquinas de calcular. A raça a que eles pertenciam não encontraria entre nós qualquer parâmetro de definição existente ou minimamente sequer aproximada do que estes viajantes efetivamente eram.  “Seres” já seria uma desclassificação. Eram mais, muito mais do que isto.

O objetivo da viagem era exploratório. Como os Descobridores do nosso século XVI, a missão era a de mapear todo o território estelar existente entre o seu sistema e uma galáxia em forma de espiral que os dados coletados durante um incontável tempo de observação haviam indicado ser um celeiro de planetas viáveis. Mas, o real propósito da viagem era outro. Procuravam inteligência.

Uma pequena bola azul, terceiro planeta a partir de uma diminuta estrela, situada quase na borda sul da tal galáxia espiral, havia despertado o interesse da tripulação há mais ou menos 120 anos. Os ultrassofisticados sensores externos da nave haviam captado esparsas emissões de rádio vindas de lá. Logo as análises descartaram qualquer possibilidade de distúrbios aleatórios ou fortuitos. Depois de milênios cruzando regiões estéreis, onde as poucas formas de vida encontradas eram incipientes ou estacionadas em níveis primitivos de evolução, os presentes indícios eram promissores. Naquela bola azul, alguém se desenvolvera o bastante para mandar mensagens ao universo.

No tempo que levaram para se aproximar, foram coletando informações e mais informações sobre o tal planeta, alimentadas por um fluxo cada vez maior de emissões. Ao chegarem perto do cinzento satélite natural que circundava a bola azul, já sabiam quase tudo sobre ela. Depois três bilhões de anos, em que evoluíra de um caldo fumegante a um mundo de atmosfera estável e alimento abundante, várias estirpes de criaturas haviam-se revezado no seu domínio. Até, coisa de uns dois milhões de anos atrás, uma raça aparentemente frágil surgir de um desvio improvável na evolução, munida de uma característica notável e decisiva. Adaptabilidade.

Após o período de um século até chegarem perto, em que puderam dissecar e analisar todo o manancial de dados captado pelos sensores, o conhecimento sobre o pequeno mundo, que agora surgia inteiro e brilhante na janela da nave, era total.  Além de toda uma fauna e uma flora pujantes, ali existiam mais de 7 bilhões de seres inteligentes. Metabolizavam oxigênio, água e alimentos para viver, embora por pouco tempo. Mas, praticavam a reprodução da espécie em ritmo alucinante, o que garantia sua permanência ininterrupta na face do planeta. Haviam-se dividido em países, de línguas e costumes diferentes. Haviam guerreado uns aos outros, haviam-se subjugado mutuamente, haviam lutado contra e se aproveitado de uma natureza que às vezes parecia querer extingui-los. Mas, haviam sobrevivido.

Em tempo terrestre, era o dia 21 de maio de 2020 quando finalmente estacionaram a nave no perímetro externo da densa e protetora atmosfera do planeta que, agora já sabiam, era chamado de Terra em um dos seus mais falados idiomas. Sabiam também que, neste momento, o planeta passava por mais um episódio de ataque viral, um acontecimento quase cíclico na história daqueles seres.

A comunicação entre os tripulantes da nave era imediata. Com seus “cérebros” interligados, a decisão foi tomada em nano segundos. Embora soubessem que aquela raça iria superar facilmente mais esse pequeno contratempo, tão fascinados estavam por encontrarem uma espécie inteligente que, contrariando o protocolo, resolveram dar uma ajudinha.

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Após um interregno que, nos relógios da Terra, corresponderia a 78 horas, o imediato retornou à nave. Três dias antes, por determinação do comandante, ele recebera a missão de descer à bola azul. Observá-la de longe já não satisfazia a curiosidade que sentiam. Precisavam saber mais.

Depois de livrar-se da metamorfose que usara para movimentar-se pelo planeta, uma composição genética que o transformara na réplica perfeita de um terráqueo, o imediato transferiu seu relatório para os outros tripulantes. Tudo em frações de segundo. E na linguagem sem palavras que utilizavam. Mas, talvez por capricho, o imediato guardou em algum escaninho de sua memória uma versão do que reportara numa das muitas línguas absorvidas em sua peregrinação exploratória pela Terra. Se um dia pudéssemos lê-la, seu texto seria este:

Complexo. O povo da Terra é complexo. Paradoxal seria outro adjetivo aplicável. Evoluem rapidamente, mas de maneira atabalhoada. Alguns exemplos:
.amam a natureza que os cerca. Até entendem que, graças a ela, puderam sobreviver. Por outro lado, a agridem.
.apesar disso, há abundância. Só que não a distribuem como seria lógico. Há poucos com muito e muitos com pouco.
.conseguiram visualizar Deus. Mas o mitificaram numa variedade enorme de nomes e seitas diferentes.
.embora todas estas seitas preguem a paz, o amor e o perdão, guerras terríveis e atrocidades inimagináveis são praticadas em nome delas.
.conseguem ser solidários e agressivos ao mesmo tempo. Assim como se emocionam com uma criança morta num conflito, fomentam as condições para a existência deste mesmo conflito.
.conhecem e idolatram um sentimento chamado “amizade”, mas o abandonam e repudiam por questões triviais.
.são altruístas e egoístas, sensatos e loucos, generosos e cruéis, construtores e destruidores, mansos e irados, pacíficos e guerreiros, gênios e tolos. Tudo ao mesmo tempo.
O ataque viral que experimentam não é o primeiro nem será o último. Mas não porá em risco a sua existência. Seria preciso muito mais do que isto para eliminá-los, se é que isto é possível. Sua resiliência os manterá vivos. Não necessitam nossa ajuda. Acho que deveríamos voltar no futuro para observá-los novamente. Sugiro daqui a mais 5.000 anos.

Oswaldo Pereira
Maio 2020

12 comentários:

  1. "partículas de vento estelar abundantes em qualquer parte do Universo."
    Isso sim, trata-se de um sonho poético!

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  2. Voltem!!!! We need help!!!
    Genial, amigo!!!

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    1. Thanks, caro Homerix. Acho que nem os habitantes a Nebulosa de Orion conseguiriam nos tirar deste imbroglio...

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  3. Mas que a nave parece um ferro de passar Eletrolux do Futuro, ah isso parece!!

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  4. ESTÓRIA , POESIA , IMAGINAÇÃO .VIAJEI DURANTE A LEITURA.PARABÉNS!

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  5. Muito bom! Esperava um final não tão pacífico. Isso porque ja vi filmes demais onde a humanidade se une contra um mal comum. Em geral são os ETs que nos querem dominar ou exterminar. Neste caso eles tem bom senso e nos deixam a propria sorte. Não sei se foi a melhor opção.

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    1. Depois do que o imediato viu, a decisão era ir embora ou exterminar tudo. Se vc fosse o Comandante da Nave, o que decidiria?

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  6. Ola oswaldo
    Desta vez voce viajou pela galaxia ate encontrar nosso mundo habitado por seres cheios de qualidades e defeitos que se adaptaram atravez dos tempos.
    O que fazer com eles?
    O jeito e deixar que continuem se resolvendo a medida que o planeta se esgota pela vontade deles mesmo.
    5000 anos para saber se continuamos?
    Seremos os mesmos?
    So questionamentos.
    Abracos
    Emilio gonzalo.

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    1. Caro Almirante,
      Acho que daqui a 5.000 anos ainda seremos os mesmos. Se não mudamos muito desde o tempo dos faraós, não há como acreditar no contrário...

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