segunda-feira, 20 de abril de 2020

LIÇÕES


É bem provável que, pelos idos de julho, a pandemia esteja se encaminhando para seu lugar na História. Daqui a um século, poderá ser um verbete sobre o qual estudiosos e analistas se debruçarão, buscando interpretá-lo com o sábio distanciamento do tempo. É o mesmo que fazemos hoje com a Gripe Espanhola, que se esvaneceu há exatos 100 anos.

Se o passado serve de parâmetro, a raça humana poderia emergir da atual pandemia com a mesma gana, o mesmo desvario de uma demanda reprimida que deu origem ao niilismo e à loucura dos Anos Vinte. Não acredito que assim seja, pois a hecatombe da Espanhola nem de longe se compara com o COVID-19. Foi mais longa e muito mais letal e sofrida.

Assim, não faço ideia de como sairemos, mas há lições que precisam ficar aprendidas. Ou, pelo menos, que saibamos reconhece-las a partir de certas atitudes comportamentais que, tenho de confessar, deixaram-me tristemente surpreso.

A mais importante delas, para mim, é que se evidenciou com extrema clareza a tendência humana de facilmente perder a racionalidade. Repetindo o chavão gasto, o homem tende a emprenhar-se pelo ouvido. E, constatar isto no primeiro grande teste do terceiro milênio, deixou-me estarrecido. A facilidade com que o medo, para não dizer um incontrolável pânico, apoderou-se de um planeta inteiro, mercê dos tenebrosos alertas de uma camarilha de arautos irresponsáveis, deveria ser, no meu entendimento, o ponto crucial das atenções dos historiadores do futuro.

No Brasil, além do que disse acima, duas outras imagens fortes estão emergindo das águas, à medida que a maré da pandemia começa a baixar. A primeira é a nítida visão de que, no país, existem duas castas. O funcionalismo público e o resto. Não sou tão ignorante (embora alguns tenham disso certeza) que não entenda a indispensável exigência, em qualquer sociedade organizada, da existência do Serviço Público. Sem ele, nenhum organismo político-administrativo poderia sobreviver. Mantido pelos contribuintes, é uma peça fundamental de prestação de serviços à população, em sua defesa, na manutenção da ordem, na saúde, na educação e no exercício legislativo.

Nem me passa pela cabeça generalizar. Há um grande número de servidores atentos, eficientes e cônscios de suas responsabilidades para com o povo que os sustenta. O problema brasileiro vem do tamanho desta estrutura pública. Ao longo de décadas, muitas, o inchaço da máquina estatal no país, usado e abusado para garantir dividendos eleitorais e retroalimentação financeira de nomeadores políticos, veio atingindo níveis tão absurdos que fogem a paralelos com o resto do mundo civilizado. Não preciso explicar os efeitos dessa abjeta prática na vida nacional. Atualmente, a folha de pagamento com o serviço público representa, em média no Governo, Estados e Municípios, mais de 70% das despesas orçamentárias. Se a isto adicionarmos a promulgação de atos legislativos que, ao longo de dezenas de anos, concederam níveis salariais e benefícios remuneratórios incompatíveis com a realidade brasileira e com o moralmente aceitável, temos a consolidação de uma casta coberta de privilégios como garantia no emprego, regime salarial extremamente generoso, aposentadorias plenas e assistência médica gratuita. Coisas que estão além, muito além, do sonho do cidadão comum.

Outra lembrança que terá de permanecer no consciente do povo brasileiro é a inequívoca obscenidade do comportamento da nossa classe política durante a crise do COVID-19. Que já sabíamos, ou pelo menos, desconfiávamos que os nossos senadores, deputados, vereadores, prefeitos e governadores, em sua grande maioria, ditavam sua conduta com os olhos postos na conquista do poder a qualquer preço e no seu rápido enriquecimento pessoal, isso é obvio. Mas o que agora ocorreu foi simplesmente demais. A arrogante  insensibilidade de não abrir mão de privilégios indevidos e absurdos para ajudar no esforço nacional, a inqualificável petulância de ignorar as dificuldades e o temor de milhões de brasileiros, o aproveitamento de uma situação excepcional de insegurança para maquinar projetos pessoais de poder, e a covardia, afinal, de, refestelados dentro de suas redomas regiamente proporcionadas pelos impostos de um povo fragilizado, impor a ele a truculência de regras humilhantes e indignas, não PODEM ser esquecidas.

Se isso não ficar para nós como uma preciosa e inesquecível lição, seremos condenados à maldição de nos perpetuarmos como um povo subjugado por sua própria falta de memória.

Oswaldo Pereira
Abril 2020

10 comentários:

  1. "... mercê dos tenebrosos alertas de uma camarilha de arautos irresponsáveis, ...". Que os alertas foram e são "tenebrosos" me parece fora de dúvida. O número de mortos mundo afora ( 168.906 com cerca de 25% deles nos EEUU ) e as imagens adjacentes são disso testemunho irrefutável, por mais que alguns ( doentes ou interessados ) os desvalorizem. Quanto à "camarilha", sem recusar a sua existência, embora no plural, me pergunto o que estaria acontecendo se ela(s) - intenções à parte - não tivesse(m) soltado e insistido nos "tenebrosos alertas" ...

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    1. Opiniões são opiniões. Como já defendi diversas vezes neste blog, o pânico instalado pelos alertas e as exageradas medidas adotadas trarão muito mais dano do que a doença em si. Cabe na cabeça racional de alguém que se confine centena de milhões de pessoas cujo risco de desenvolvimento grave da epidemia é praticamente nulo? É minimamente admissível que só porque 5% dos municípios brasileiros registraram quantidade maior de contaminação e morte, os outros 95% sejam forçados a destruir empregos e negócios? Não seria mais lógico restringir as severas medidas de quarentena apenas para os grupos de risco?

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  2. Caríssimo Oswaldo:
    Nas duas últimas horas, o vírus matou 888 pessoas em 185 países. É só um número, eu não conhecia nenhuma delas. Mas conheço a autora deste depoimento, mãe de colega dos meus netos e médica no Hospital Cardoso Fontes, ali em Jacarepaguá. É sobre o seu dia 19 de abril:
    “Acredito que as escolas serão as últimas a reabrir. O caos começou. Sou médica há mais de 10 anos e amo o SUS. Já vi coisas q nem em filme se imagina. Ontem fiquei extremamente abalada. Entrei em um CTI com 13 pacientes, perdi 4, total de 17 pacientes e apenas 1 talvez tenha chance de sair. Nunca vi nada igual. Pacientes gravíssimos onde não conseguimos ventila Los. Aí vc pensa é hospital público. Pois é temos disponível ainda todas as medicações de hospital particular top. Medicação de até 2000 a ampola. Gente, nada melhora. Chorei por traz de todo o EPI e pedi a Deus misericórdia. Nunca vivi isso. Creio q vai se arrastar por mais meses. Ainda não estamos no pico.”.
    Ao que parece, pouco se sabe ( e os pais, mães, irmãos, filhos não querem saber ) se esses mortos são parte dos 5% ou dos 95%. Eu também não sei. Suspeito que, no mundo, pouco se sabe. Talvez na Alemanha - onde, parece, de par com outras ações, não hesitaram muito na atempada destruição de "empregos e negócios" - tenham alguma pista...
    Manifestamente temos entendimentos diversos sobre o assunto. Manifestamente, será difícil a renuncia, minha ou sua, ao que pensamos sobre o cerne da questão: VIDAS x EMPREGOS E NEGÓCIOS ...
    Melhores abraços
    Jaime Conde

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    1. Caríssimo Jaime,
      Sempre prezo muito suas intervenções neste meu modesto blog. Gostaria que fossem mais e mais amiudadas. O relato da médica sua conhecida é válido e emocionante. 0,1% de qualquer desgraça transforma-se em 100% se você for pessoalmente atingido. Mas, se olharmos latu sensu, o dilema está lá. Um grande abraço.

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  3. É amigo poucos pensam sobre o assunto como nos dois vemos na realidade dos fatos.A cegueira é geral e também epidêmica nesse momento.
    Falam que os States fez drive thru para o teste do vírus. Para que? Eu posso testar hoje, mas posso dois dias após ser contaminada. Sim o teste serve para quem entra num hospital para terem uma ideia do quadro naquele momento tão somente.
    Agora soube por uma médica amiga que esse vírus não fornece antivírus pois estão percebendo que o antivírus desaparece da pessoa 10 dias após.Será verdade? E se for o que cabe dizer: Somente um tango argentino como disse o poeta.
    Dia 19 perdi uma grande amiga. Falei com ela no dia 17 e dois dias depois morre. De que? A clinica diz Corona vírus no atestado de óbito mas não fizeram qualquer teste e claro entrará para as estatísticas que me parece que há interesses de alguma artimanha mundial que desconhecemos. Mas como em dois dias esse vírus mata? Tem tanta coisa que não dá para entender e crer, mas entendo o relato de dor médica do hospital Cardoso Fontes.
    Quanto a camarilha dos nossos representantes nem dá o que comentar pois
    fazem parte uma casta de pessoas ignóbeis com raríssimas exceções, desde tempos remotos, mas agora tenho a impressão que aumentaram o numero de canalhas. Eles não querem abrir mão dos altos salários, comissões, benesses fora a roubalheira, mas como sempre o povo terá mais uma vez que pagar a Fatura.
    bjs

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    1. Sei pouco de Economia, mas o suficiente para perceber o seguinte: com um Orçamento já super apertado antes da quarentena, como o Governo vai arranjar dinheiro para pagar as centenas de bilhões que está tendo de destinar aos diversos auxílios para tentar salvar negócios e empregos. Só consigo enxergar 3 hipóteses: ou aumenta impostos, e isto, além de impopular, irá estrangular o crescimento econômico; ou não aumenta e deixará de ter recursos para investir em infraestrutura e, novamente, estagnará o crescimento; ou emite moeda e acordará o monstro inflacionário. Se algum economista de plantão souber melhor, que me esclareça.

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  4. Minha opinião tem som de chuva no molhado. Entretanto vou atrever-me a dá-la.
    Pontos que considero reais:
    1 – Decorrerá muito tempo até que haja uma vacina;
    2 – O vírus, que eu saiba, continuará por aí ainda que haja uma vacina;
    3 – Estão na balança duas questões fundamentais: epidemia x economia. Se não houver uma
    fórmula que as equilibre reduzindo-as ao menor “custo” possível o resultado será terrível;
    4 – Da população, a faixa etária de maior risco (parece comprovado) está acima de 60 anos
    além das que apresentam doenças graves pré-existentes.

    Levando em consideração o exposto acima parece-me que o mais racional seria retomar a atividade econômica preservando o isolamento das pessoas de maior risco. Destas, as que profissionalmente continuam ativas trabalhariam, como grande parte já o faz, remotamente.

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  5. Caro Oswaldo,
    Estatísticas e números que inundam os noticiários ,alguns procedentes outros duvidosos,conforme a seriedade e estrutura da divulgação dos países envolvidos,nos conduzem a tomar medidas cautelares que sem dúvida irão afetar de um jeito ou do outro a economia de todos.
    concordo com o Unknown nos seus pontos apontados o problema e como manter o isolamento das pessoas de maior risco considerando que a maioria não mora sozinha , vivem com parentes mais jovens que estarão durante o dia exercendo suas atividades , me refiro logicamente a filhos e netos . será um paradoxo .
    Abraços
    Emilio

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    1. Isolamento ou Economia, quarentena horizontal ou desemprego. Estas serão as dúvidas que atormentarão a humanidade hoje, amanhã e, certamente, depois que a pandemia afrouxar ou que se descubra uma vacina. A resposta? Não sabemos...

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