UM NATAL MUITO, MUITO FELIZ PARA
TODOS
E, para manter a tradição, um
pequeno conto de Natal
NOITE DE NATAL
A chuva gelada molhava tudo. Quando ele acordou, no
meio da noite, sentindo as gotas bater de encontro à madeira da janela, pensou
logo nos bichos que estavam no campo. Um cachorro, seis ovelhas e um pequeno
asno. Seus bens, sua fortuna. A dúvida rodou por minutos em sua cabeça. Vou ou
não vou?... A manta de lã rija dava-lhe algum conforto, uma proteção abençoada
contra o frio cortante daquele inverno enfezado. Ficou pensando nas conversas
dos dias anteriores. Nas horas do final da tarde, em que todos se reuniam para
deixar seus animais nos estábulos comunitários, os outros pastores tinham passado
a comentar sobre a estrela. Era o assunto do momento. A estrela de rabo
comprido, que surgira no começo do inverno. Para os mais velhos, era mau
agouro, um prenúncio de desgraças, um aviso amaldiçoado. Isto haviam aprendido
de seus avós, e esses dos seus, numa cadeia infinita pelas brumas do tempo.
Pastos esturricados pela seca, ou aluviões de chuvas que afogariam a todos como
no dilúvio. Talvez a peste. Ou tudo junto. Para eles, a morte do grande rei
três anos antes significara algo mais do que uma consequência natural da vida.
Era o fim de um ciclo de bem-aventuranças, embora Herodes nunca tivesse feito
nada por eles. Ele morrera, pronto, e isso era o bastante para temer o amanhã.
E agora, essa estrela com crinas... abhadda
kedhabhra!
Teriam
razão?...Pensou ele, enquanto se revirava sobre a palha seca.
O Diabo sabe muito por ser Diabo, mas
sabe muito mais por ser velho..., era o que se dizia. Por que então este
pessimismo corrosivo, este bolor pegajoso do medo. Seria consequência do frio
nos ossos esclerosados, da névoa que embaçava o olhar, do desaparecimento dos
cabelos e da paixão, da proximidade do fim? Só
quando lá chegar saberei... Os mais jovens dividiam-se. Uns davam aos
ombros com indiferença. Uma luz no céu da noite era só isso, uma luz. Distante.
O que importava era ter lentilhas no prato, vinho quente nos alguidares, coxas
complacentes debaixo das mantas. Outros eram os sonhadores. Discutiam até
depois da ceia contos de faraós, portentos da Babilônia, profecias e profetas, magos
e loucos. Não chegavam a qualquer conclusão, mas iam dormir com os olhos
banhados pela claridade da esperança.
Na noite anterior, entretanto, pouco antes de o pão
ficar cozido e a fumaça das favas voltear no ar gelado, o desconhecido
aparecera. Ninguém era bem vindo numa
noite de escassez invernal, alimento pouco, ojeriza de estranhos. Um mutismo de
desconfiança saudou-o. E ele ali ficou, cajado apoiado no chão gelado, um tosco
manto como abrigo precário, sandálias trazendo as histórias de muitas estradas
cruéis. E um terno sorriso nos lábios.
Ele apiedara-se do recém-chegado. Enquanto os
demais, velhos e novos, cuidavam de si e de sua fome, ele levantara-se e lhe
entregara o resto dos grãos que ainda fumegavam em seu prato de barro, mais uma
côdea e um naco de queijo. Depois, voltara para seu lugar junto ao braseiro,
sem esperar pelo agradecimento do outro. Não precisou ouvi-lo. Uma suave brisa
morna pareceu mexer com os seus cabelos.
O desconhecido comeu lentamente, saciando um jejum
ancestral, silencioso e quase invisível. Será
que só eu o vejo? perguntou-se, observando a maneira com que os seus
companheiros o ignoravam. Aos poucos, a
noite ficou mais fria. Um a um os pastores foram para dentro de suas cabanas,
murmurando despedidas quase inaudíveis. Ele e o desconhecido ficaram sós ao
relento. Foi então que este saiu da escuridão e falou.
«Amanhã antes da ceia pegue uma ovelha e siga pelo
caminho que leva a Bethlehem. Vá só. Pouco antes da cidade, vai encontrar uma
gruta. Lá acharás o que procuras...»
Vou
ou não vou?... A dúvida continuou mordendo-o no escuro.
Um estranho. E se fosse um assaltante, pronto a emboscá-lo... Mas a voz era
poderosa como um clarim angelical tocando um chamamento irresistível, o olhar
que varava o ar de inverno eram dois faróis de luz terna. Não, o desconhecido
não era um malfeitor, ele sabia. E resolveu ir.
A noite seguinte estava ainda mais gelada. Apenas o
pequeno animal que levava por sobre os ombros lhe dava certo conforto, o abraço
quente da lã em torno do pescoço, o respirar suave do ventre da pequena ovelha
acariciando-lhe a nuca. O escuro do caminho era amortecido pelo brilho da
estrela de caudas, sempre à frente lá no céu.
Antes que ele pudesse perceber os contornos do
casario da cidade, uma pequena luz começou a aparecer, longe ainda, na beira da
estrada, onde uma elevação rochosa crescia como uma grande onda de pedra negra.
À medida que se aproximava, foi percebendo os contornos. Era a gruta. Só podia
ser ela.
Havia algumas pessoas quando chegou. Pastores como
ele. Havia mais. Andarilhos, carpinteiros, pescadores, talvez atraídos pela
claridade que emanava do lugar. E três homens vestidos como ele nunca vira alguém,
nem os sacerdotes de Jerusalém. Todos em profundo silêncio, admirando a cena.
Uma mãe de sorriso exausto, um marido em desvelo. E a criança.
Não era uma criança qualquer, ele notou. Seu corpo
parecia brilhar na exígua manjedoura, tanto quanto a estrela comprida, que
agora parecia um sol alongado por cima do morro que cobria a gruta. Subitamente,
ele sentiu os olhos do recém-nascido traspassarem os seus. Num segundo, foi
como se tudo, gruta, morro, estrada e céu desaparecessem e um turbilhão de
imagens soprasse como um vendaval. E ele viu uma cruz no alto de uma colina,
soldados romanos destruindo o Templo, Maomé concebendo o Islã, os cruzados em
seus cavalos, mamelucos e otomanos. O vórtice de visões continuou girando em
torno dele, as tribos árabes mesclando-se em nações, as guerras ceifando campos
e vidas, o nascimento de Israel, os canhões e os ódios, os tanques e o
confronto, os mísseis e a morte.
E, de repente, ele estava no futuro. Não havia mais
estrela nem gruta. Um muro cortava a terra, um jipe passou levantando poeira,
um estrondo longínquo assustou uma gralha, uma fumaça preta, um grito, um
cacarejar de uma metralhadora. Lágrimas correram em seu rosto. Por ele. Pela
humanidade. Pela criança que vira na gruta.
Então, um reflexo colorido. Ele virou e viu. Uma
menina vinha caminhando na sua direção, sorrindo. Chegou perto dele e
entregou-lhe uma flor. E murmurou: Feliz
Natal... Ele agradeceu comovido e perguntou o seu nome.
Esperança,
ela
disse.
Oswaldo
Pereira
Dezembro
2014
PS.: Quem quiser ler o Conto de Natal do ano passado, é só clicar no link abaixo.
http://obpereira.blogspot.com.br/2013/12/e-natal.html
Ora pois! Aí está o milagre ou o mistério da narrativa lírica, que emociona, comove e nos revela ainda (!) a parte viva de um todo.
ResponderExcluirÉ isso Oswaldo
ResponderExcluirO que o espírito do Natal nos pode trazer é realmente esperança.
Esperança de que a raça humana volte a ser humana.
Não cabem mais em meu entender tanta miséria, tanta covardia, tanta violência.
E tudo isto num mundo ainda cheio de maravilhas e de pessoas maravilhosas.
Que você e sua família tenham sempre essa esperança de paz, de harmonia, de amor.
Grande abraço
Zé Correa
Queridíssimo, reforço aqui todas os meus melhores desejos e energias pra vocês!
ResponderExcluirBeijão carinhoso e abraço apertado.
Feliz Natal, Oswaldo, para você e todos os seus. E continue escrevendo com essa qualidade no ano que vem!
ResponderExcluirAbraço forte,
Marcos.
...que o seu conto, em 2015, nos transmita uma realidade menos amarga.
ResponderExcluirAbraço com votos de FELIZ NATAL, com saúde e alegria.
Zé e Dulce
Escrevi e cliquei postar e nada. Tentarei escrever o que havia feito.
ResponderExcluirBelo conto, iluminando o futuro e cheio de esperança mostrou o caminho para o amanhã.
Feliz Natal para você e toda a família.
Abraço, Cleusa.