domingo, 8 de dezembro de 2013

MADIBA



A cela estava vazia. Aliás, todas estavam. Na realidade, todo o complexo prisional havia, de há muito, deixado de ter esta função. Agora, apresentava-se como um ponto turístico, mas era mais, bem mais do que isso. Era um lugar de romaria, quase de culto. De reflexão.

O guia que nos mostrava as dependências do edifício, e nos contava sua história, tinha lá estado prisioneiro e, assim, sua prosa carregava todo o drama que o lugar parecia transpirar de seus muros implacáveis. Ali vivera vários anos de sua idade adulta, condenado por uma sociedade criada pela ambição e alicerçada no preconceito. E partilhara seu tempo, juntamente com sua desventura e sua dor, com o ex-ocupante daquela cela de 2,4m x 2,1m,  paredes , chão e teto de cimento úmido da cor do desespero. 

Estávamos em Robben Island, um pedaço oval de terra, plano e árido, situado na baía de Table, a 7 quilômetros das praias da Cidade do Cabo. Uma laje amaldiçoada de 5 km² que já fora usada como colônia de leprosos e penitenciária desde o século XVII pelos holandeses, além de um perigo para a navegação até os anos 1900. Para aquele inferno e para aquela cela, Nelson Rolihlahla Mandela fora trazido em 13 de junho de 1964. Era o início de seus 27 anos de cadeia.

A visita prosseguiu, sob um sol de África Meridional em primavera seca, pelos campos de trabalhos forçados onde Mandela amargou sua sina cruel, quebrando pedras que não serviriam para nada, cegado lentamente pelo reflexo do fulgor na cal branca, branca como seus algozes, branca como as leis de seu país, que lhe negavam educação, saúde, cidadania.

Foi uma viagem instigante. A África do Sul era um gigantesco mosaico de correntes culturais. Ao sul, vinhas ensolaradas estendiam-se por léguas e léguas, dourando suas uvas ao sol e esperando pelas vindimas nas hábeis mãos de tradição francesa. Ao norte, os boers se aferravam ao solo de suas imensas fazendas e ao som gutural do afrikaaner. Por toda parte, as diversas etnias tribais proclamavam suas cores, sua identidade nascida há séculos num mundo virgem e intocado. Em Pretoria, ingleses ainda sorviam seu inseparável gin & tonic em seus country clubs. Uma Joanesburgo inteira estava divida em duas, meio branca e elitista em Parktown, meio imenso ghetto em Linasia e no centro da cidade. Para ir a Soweto, precisamos de escolta policial. O apartheid já morrera legalmente, mas nas escolas, nos bairros e nos restaurantes as raças voluntariamente, como óleo e água, ainda não se misturavam. 

Um país de doze línguas. O que mais se poderia dizer? Por isso, havia tantas cores em sua nova bandeira, tantas questões que esperavam por resposta, tantas dúvidas sobre o que viria a seguir.

Quando assumira o governo, em 1994, Mandela logo percebera que a chave de toda infraestrurtura estava nas mãos da minoria branca. Bancos, indústrias, serviços públicos dependiam dos conhecimentos de gerência que só essa minoria detinha. A convivência pacífica era a única chance, enquanto o maciço investimento na educação da grande maioria negra não desse frutos. E este foi o seu grande legado. Só ele, com o sofrimento de seu passado, sua credencial de sobrevivente de um dos mais cruéis regimes penais da História, sua fala mansa e seu discurso pragmático, e o profundo conhecimento de sua gente e de sua missão, foi capaz de desmontar a bomba do apocalipse racial que destruiria sua terra. O entendimento perfeito de que o futuro de seu país era uma teia de várias teias, balançando ao vento das savanas, frágil e delicado.

Em 2004, quando lá estivemos, embora seu mandato como Presidente já terminara há mais de seis anos, sua mensagem estava em toda parte. Dava para sentir essa energia, que me tocara como força estranha quando eu entrara naquela pequena cela de 4m² em Robben Island. 

Um homem, um ícone. Uma lenda que se avolumará com o futuro. Pai e fundador de seu país.Tata Madiba.


Oswaldo Pereira
Dezembro 2013







Um comentário:

  1. Foi um exemplo que a humanidade abraçou. O mundo inteiro no Soweto..., pena foi a ausência da Europa, nenhum líder europeu teve direito a falar.
    Também estive há 4 anos naquela cela,em Robbert Island, ouvindo provavelmente o mesmo guia e,depois, no Soweto, em Joanesburgo. Parece que os sentimentos redobram, não é?

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