domingo, 29 de setembro de 2013

SABER DANÇAR



Todo mundo tinha de saber dançar.

É claro que estou falando de um tempo em que dançar ainda não queria dizer perder, ser derrotado, malograr-se. Dançar, nesses tempos que a Rede Globo resolveu rotular de Anos Dourados era, para soar mais sofisticado, de rigueur, um must.

Era ainda tempo dos bondes (para a galera nova: ante diluviano meio de transporte que andava sobre trilhos, ligado uma rede elétrica e que, por ser barato, ganhava a preferência dos estudantes e de suas parcas mesadas). Na parte interna, ao alto, havia um lugar para propaganda (os reclames), cartazes bem arranjadinhos que apregoavam coisas como o Rhum Creosotado, a Emulsão de Scott, o Regulador Xavier. Mas havia um que mexia com as entranhas de imberbes tímidos como eu. Ao lado de um desenho sugestivo de um par elegantemente vestido e enlaçado  entre cifras musicais, vinha a frase-desafio, o repto-bofetada: Quantas oportunidades você perdeu por não saber dançar? (e aí, dançar era o oposto de perder...)
 
ISTO ERA UM BONDE, MOÇADA
Não saber dançar era o ostracismo humilhante nas reuniões festivas, o anátema cruel que relegava o pobre adolescente aos desvãos das varandas desertas ou à triste sina de ficar junto de pais e avós, ouvindo toda sorte de comentários zombeteiros. “Fulaninho é muito acanhado...”, diziam, com o desprezo dedicado a um leproso.

E, atenção, jovens de hoje. Dançar não era o bamboleio individual que, desde o advento da separação de corpos no ritual da dança, cada um improvisa em frente ao seu par. Não há regras; basta se chacoalhar com o meneio mais próximo possível da batida da percussão e pronto. Naquela época, não. Os corpos se juntavam, e tinham de mover-se na mesma direção, no mesmo ritmo, com a mesma coreografia. As damas tinham de ser levadas com precisão e ritmo, os obrigatórios volteios executados com leveza e técnica, sob pena de acontecerem encontrões ou (oh! vexame dos vexames) pisarmos no pé das nossas partners. Não havia espaço para embromações. Sabia-se ou não.

E, mesmo sabendo, mesmo depois de, a duras penas, tendo como professora uma prima mais velha, às vezes a própria mãe, ter aprendido os rudimentos de uma valsa (ah! os rodopios, cada hora para um lado), de um samba (cheio de truques, ainda mais se fosse samba puladinho, um estágio mais avançado, tipo faixa preta em judô), de um baião (moleza, um prá lá um prá cá) ou do misterioso bolero (aquele, o da paradinha maliciosa), havia a mais decisiva prova de coragem da época, o teste que separava os meninos dos homens – tirar alguém para dançar.

Os salões de baile tinham, no começo da festa e aos olhos dos pretendentes a dançarinos, o aspecto de um campo de batalha do tempo da Idade Média. As moças de um lado, os rapazes de outro. No meio, o vazio, a terra de ninguém. Sabiamente, os organizadores da festa sempre combinavam com pares mais experimentados, casais de noivos, cônjuges, para abrirem o baile. Não havia hipótese para qualquer de nós fazê-lo. Havia o medo pânico de sermos recusados (a famosa tábua) ou de não acertarmos com o ritmo (isto é samba ou rumba?) e sermos expostos ao ridículo de uma performance execrável aos olhos do mundo.  Só depois do salão cheio, seguros do anonimato da ação e encorajados por uma dose de cuba libre, partíamos para a suprema aventura.

Do lado feminino, os temores eram outros. O de ver-se a braços com um par desajeitado, grosseiro ou com mau hálito. De ter de aturá-lo até o intervalo entre as músicas. Ou, destino pior – o de não ser convidada, de passar a noite sentada, o terrível e cruel “chá de cadeira”.


Anos Dourados, sei...


Mas, com o tempo, a confiança chegava. Convencidos de sua destreza, dançar transformava-se pouco a pouco para os jovens num fantástico passatempo, no despontar da adrenalina de grandes romances,  antessala de paixões solapadas, até embalo para futuros casamentos.  Quem viveu, viu. E ouviu. Vitrolas hifi tocando elepês do Ray Conniff. Orquestras completas animando os bailes de formatura dos longos e dos smokings...

Outro mundo, outro século. Outro milênio...




Oswaldo Pereira
Setembro 2013



5 comentários:

  1. Aqui "tábua" era "tampa" e os desajeitados eram os "pés de chumbo"! ;-) Abr.

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  2. Bons tempos, vida repleta de sentimento e de espera do dia seguinte quando haveria o baile e o "com quem dançarei", e aquele rapaz que era desejado por todas as moças, quem escolheria.?
    Tudo passa e esse tempo passou muito rápido.

    Muito bom o "Saber dançar" , mostra a importância que tinha.
    Abraço,
    Cleusa.

    ..

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  3. Recordar é viver... E se eu gostava de dançar! Mas sentia-me constrangida, sem jeito, quando tinha de "dar uma tampa"e, então, contornava a embaraçosa situação, desviando o olhar para o chão, para o lado, conversando,...e não é que resultava?!
    É interessante como o tudo o que descreve é tão português,só o vocabulário difere num ou outro termo, mas muito raramente.

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  4. Muito bom. Eu sou da epoca dos corpos separados. Mas acho que dancar de verdade esta voltando a moda, principalmente entre pessoas separadas ou divorciadas em busca de novos contatos. Quem a moda nao volta e as minhas filhas terao que aprender a dancar propriamente.
    Bruno

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