domingo, 17 de março de 2019

SEMENTES





Em março de 2013, escrevi este texto, possivelmente na esteira de algum ato semelhante ao que ocorreu em Suzano.

“Na minha infância, num mundo pré-televisão - tentem imaginá-lo!- a vida seguia entre escola, “horas” de alguma obrigação enfadonha (hora do banho, hora do almoço, hora da janta), brinquedos inventados, pois os verdadeiros eram escassos e caros, e o momento da aquietação, em que a criançada era recolhida na sala para amansar as energias que ainda queriam sobrar inesgotáveis e se preparar para outra “hora” chata – a de ir para a cama.

E era exatamente aí que certas lições de vida nos chegavam pelas histórias infantis, rótulo que podia abarcar desde sagas medievais até peraltices de alguma criatura mítica, passando por toda uma antologia popular, adaptadas e dramatizadas por quem, sempre com o firme intuito de nos fazer prender a respiração e permanecer imóveis pela primeira vez no dia,  as contava para nós ao seu jeito e com sua inspiração.

Quem isto fazia, a mais das vezes no interior de Minas onde eu morava, eram as empregadas da casa, elas próprias sabedoras de algumas estórias apanhadas no tempo, passadas de muitas gerações e nunca escritas, rolando de boca em boca ao sabor de crendices e imaginações. Era uma enorme colcha de retalhos folclóricos que costurava Irmãos Grimm com mulas-sem-cabeça, Hans Christian Andersen com Os Doze Pares de França, e por aí vai.

Quando aprendi a ler, abriu-se para mim o império das histórias em quadrinhos e seus heróis formidáveis e justiceiros. Vinha tudo dos Estados Unidos onde, para mim, o dia-a-dia devia ser um contínuo desfilar de tremendas batalhas entre os diversos Marvels, Batmans e Superhomens da vez e seus ardilosos desafiantes. Um pouco mais, o parco dinheirinho das mesadas já me permitia ir às matinés (arcaico para sessões de cinema à tarde, destinadas à garotada imberbe), torcer para os mais rápidos gatilhos do Velho Oeste e confirmar que a América já era a mesma terra impossível desde o tempo dos cowboys.

Mais um pouco, e então a adolescência nos apanhou e outras questões vitais nos afastaram definitivamente do reino dos contos infantis.

Bem, escrevi toda esta chorumela nostálgica acima porque, pelo bem-aventurado fato de ter netos, há tempos venho observando o que agora representa, para eles, a experiência cultural que recebi em faixa etária semelhante. Como muito da argamassa de meus princípios foi certamente influenciada pelo que vi e ouvi ainda criança, devo deduzir que o mesmo pode acontecer com eles e que, portanto, o que veem e ouvem hoje poderá definir uma parcela importante de seu caráter.

E fiquei impressionado. Mal impressionado.

Os atuais substitutos das empregadas faladeiras, das bandas desenhadas e das matinés, são os tablets, i-pads, i-pods e outras maravilhas eletrônicas que qualquer pai põe ao alcance de seus filhos para fazer exatamente o que as histórias contadas nas salas de antanho procuravam fazer – aquietá-los.
Tudo bem.
O problema é o conteúdo.
O riquíssimo menu de jogos posto à disposição dos usuários deixa pouco espaço para a imaginação. Começa pelo grafismo hiper-real da ação e continua pela oferta de recursos de computação que permitem encarnar o agente do jogo com avançado grau de realismo.
De novo, nada contra a técnica desses role-playing games, se bem que sua aplicação traz a realidade para muito perto e, talvez na cabeça de alguma criança, confunda as linhas divisórias entre fábula e fato.
A questão é a mensagem de violência que estes jogos trazem embutida em seus enredos, seus objetivos e seu propósito.

Já sei que vou escutar duas afirmativas. “Você está velho!...” Absoluta verdade. E “no seu tempo, a maioria das historinhas, os super-heróis e os filmes de faroeste também só mostravam violência...”
Bem, em termos.
João e Maria foram aprisionados pela avó, a madrasta mandou matar Branca de Neve e depois tentou envenená-la, havia gigantes maus e dragões furiosos. Mas, seu irrealismo e seu cenário distante colocava os personagens e seu drama num plano distinto do nosso quotidiano.
Os grandes campeões dos quadrinhos defendiam a sociedade do Mal, sob qualquer forma e, em vez de matar seus adversários, acabavam entregando-os à justiça, onde invariavelmente eram julgados com rigor (ó inveja!...)
E os nossos mocinhos do Oeste só puxavam pelo colt depois de terem apanhado como bois ladrões e em situação de insofismável legítima defesa. Mesmo assim, o tiro fatal era rápido e antisséptico. Sangue, nem pensar.

Espero que seja só um achaque nostálgico. Entretanto, me aflige observar um aumento gradativo de agressividade entre os jovens. Os fatores devem ser vários, mas algo me sussurra que jogos nos quais a ação violenta é um objetivo em si têm um pouco de culpa no cartório. 

Com a palavra, o futuro.”

Como estamos em 2019, já entramos seis anos nesse futuro. Talvez, já que muitos doutores em comportamento humano vieram a público reafirmar suas ideias de que os gráficos jogos nada têm a ver com a violência irracional que tem explodido com frequência cruel entre os jovens, eu possa estar errado.

É também claro para mim que a falta de uma família estruturada por trás de uma personalidade em formação é fator mais que determinante. Tenho netos na adolescência que passam mais tempo do que seria recomendável imersos no mundo digital dos games. Nem por isso estão dispostos a cometer qualquer desatino. Seus lares cheios de amor, atenção e carinho os defendem e os educam para não cogitar cometê-los.

O que eu quis, e quero, dizer, é que a semente da violência incubada no grafismo dos jogos, se caída no solo daninho de uma mente jovem desprovida do amor e dos cuidados permanentes de pais atentos, poderá germinar e parir um monstro.

Oswaldo Pereira
Março 2019

10 comentários:

  1. E ÍSSO MESMO, O AMBIENTE FAMILIAR TEM TODA A IMPORTANCIA NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA. O EXEMPLO DE FAMILIA É O CAMINHO

    ResponderExcluir
  2. Perfeito, Oswaldo. Assim como o dinheiro, que só faz mal quando cai em mãos erradas. Bj

    ResponderExcluir
  3. ^Com a palavra, o futuro^. Assino embaixo e não tenho vergonha de estar velho. O que é importante é encontrar como educar essa moçada, desenterrando velhos valores como família, compaixão, conhecer que o próximo é você próprio. Se fosse um garoto hoje, não sairia dos jogos violentos. A violência vinha da II grande guerra e sempre me imaginei em jogos mentais, metralhando alemães em campos de batalha. Isso tudo alimentado pelo Super Homem, Batman, Zorro e tudo quanto de "violência" havia nos cinemas. Mas sabíamos distinguir pessoas de objetos. Pessoas não, seres vivos. Me lembro uma vez quando de estilingue abati um pardal no fio do poste. Quando caiu no chão e fui ver o que fiz, tive a plena consciência de estar tirando a vida de uma criatura por ato meu, que não tem o dom da criação. Muito bom e oportuno o teu recall.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Esta era a grande diferença no nosso tempo. Ficção era ficção. Estilingues eram armas toscas mas, mesmo assim, mostravam a realidade das aves abatidas. Também me senti culpado várias vezes...

      Excluir
    2. Jose Antonio S. Bordeira19 de março de 2019 às 09:08

      Caro Oswaldo. Descrição primorosa do nosso passado. Revivi o meu. Mas o futuro... Parece que , de fato, está ai: sexta-feira (15/3) um ataque em Christchurch, Nova Zelândia, com o requinte cruel de transmissã0 do "feito" ao vivo - 50 mortos. Ontem (18/3), mais outra barbárie. Desta vez em Utrecht, Holanda - 3 mortos. Violências em série. Como você sublinha no texto, segue a declaração do pai do suspeito de Utrecht:"Não existe diálogo, não tenho contato com meu filho há 11 anos..." Estadão de 19/3. Zeca

      Excluir
    3. É isto. Pais ausentes. Este é o algoz do futuro de muita criança. Obrigado pelo comentário. Apareça sempre.

      Excluir