domingo, 2 de agosto de 2015

TREM PARA LISBOA







Amadeu Inácio de Almeida Prado foi um médico português, estudou em Coimbra, fez parte da resistência contra o regime salazarista, publicou um livro introspectivo e deixou inúmeros escritos que revelam sua personalidade intrincada e complexa. Uma mente brilhante. Talvez por isto mesmo, um homem devorado por dúvidas sobre o mistério do mundo e da existência, dos conceitos e paradoxos do bem e do mal, de como os labirintos de sentimentos como lealdade, dever, família e amor podem enredar a alma humana. Corroído por questionamentos, tornados ainda mais poderosos pelo vigor de sua inteligência, Almeida Prado lançou seu olhar inquisidor sobre o inquietante período da vida portuguesa, a incapacitação de Salazar e os estertores do Estado Novo, em que a repressão, talvez pressentindo sua morte, endurecia seus últimos gestos. Uma personalidade extraordinária, que emerge nítida e trágica de suas anotações e do testemunho dos que o conheceram.

Raimund Gregorius é um professor universitário e profundo conhecedor de línguas antigas. A gramática de idiomas tão diversos como o hebraico, o grego, o latim e o persa o fascina. Morador de Berna, leva uma vida que beira o monástico, enclausurado numa rotina desprovida de cor e emoções fortes, cujo tédio afugentou até sua mulher ao fim de um casamento superficial e asséptico.

Dois indivíduos peculiares, movidos por ideais e propósitos diametralmente opostos. Nenhum deles real. Ambos são os personagens de um cativante livro intitulado “Trem Noturno para Lisboa” (Nachtzug nach Lissabon), escrito por Pascal Mercier, pseudônimo literário do filósofo suíço Peter Bieri.

A obra, de 2004, já vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares, recebeu inúmeros prêmios e foi adaptada para o cinema em 2013. A narrativa tem como ponto de partida um encontro fortuito do professor com uma mulher portuguesa numa ponte da capital suíça que o faz, enfeitiçado pelo som da palavra português dita por ela, procurar livros de escritores daquele país numa livraria de Berna. Acaba por encontrar Um Ourives das Palavras, de Almeida Prado. Resolve então, completamente apaixonado pelo mistério daquela língua impenetrável para ele, abandonar seu mundo, sua cátedra, seus medos e sua cidade e pegar um trem noturno para Lisboa.

A narrativa das revelações experimentadas por Gregorius em sua nova vida, principalmente o percurso palmilhado por ele na descoberta de quem foi Prado e da sua meticulosa análise do livro do médico português, faz sobressair o primor da composição utilizada por Mercier na construção dos seus personagens principais. Um livro dentro de um livro. Uma procura para entender outra procura. Uma obra-prima, rigorosamente mantida intacta na ótima tradução para o nosso idioma de Kristina Michahelles.

Acabei de lê-lo no avião. Um avião noturno para Lisboa...



Oswaldo Pereira
Agosto  2015





3 comentários:

  1. Como é frequente, o filme fica distante do livro, do qual - acho - não consegue recriar a dimensão dos personagens literários ....

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  2. Como é frequente, o filme fica distante do livro, do qual - acho - não consegue recriar a dimensão dos personagens literários ....

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    1. Jaime, ainda não vi o filme. E, diga-se de passagem, nem sei se quero. Você tem a mais absoluta razão. É muito raro a versão para o cinema reproduzir o "drama" da palavra escrita, mesmo contando com a ajuda de atores como Jeremy Irons que, segundo soube, encarna o persistente Gregorius na película.

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