segunda-feira, 5 de setembro de 2016

RESET


A distância ameniza. Deste outro lado do Atlântico, as notícias começam a ficar rarefeitas, difusas, levadas pela bruma do oceano. Por mais global que esta aldeia planetária se tenha tornado, um voo de 10 horas afasta um pouco a realidade. Dilma, Lula, Temer, Cunha e outras sombras esfumam-se neste pôr do sol sobre o Tejo, as gravatas e os cabelos alourados de senadores e senadoras submergem neste marulhar tranquilo de uma praia lusitana. É como o rufar longínquo do trovão de uma tempestade que não vai cair por aqui.

As artes do escapismo, eu sei. Uma defesa ao melhor estilo do proverbial avestruz. Enfiar a cabeça neste areal português, fingir que Cabral ainda não partiu. Imaginar que Pindorama ficou à margem das descobertas, que índios e papagaios povoam imperturbados as frondosas florestas em sua idílica comunhão com uma natureza sensual e sempre em festa.  

O poente é lento, nesta tarde lusa. Hora de sonhar. Cabral não foi. Os varões assinalados não passaram pela Taprobana e tampouco cruzaram o mar. O Brasil lá ficou, deitado em seu berço esplêndido, ao som e à luz de seu próprio mundo, esperando um futuro que não chegou.

Já imaginaram? O país ainda no seu marco zero, virgem, indeflorado, seu HD ainda vazio. Começar de novo, com todos os créditos em aberto, apertar o reset. O que faríamos? Seríamos capazes, com as cicatrizes dos nossos erros, os remorsos de nossos pecados, a poeira dos nossos tombos, de reconstruí-lo sem superfaturamentos? De levá-lo por uma estrada sem recapeamentos? De colocá-lo numa escola sem roubar-lhe a merenda? De mostrar-lhe a manhã nascendo no horizonte sem destruir seus sonhos?

O poente acaba. O sol mergulhou. O sonho ainda flutua por instantes. Mas acaba por se esvanecer na escuridão. Não há replays. Infelizmente...

Oswaldo Pereira
Setembro 2016



4 comentários:

  1. Grande sensibilidade para retratar o ocaso em Portugal. Nos dois sentidos de tua crônica. Esta terra onde mal se cultiva a última flor do Lácio tem o mais completo HD do planeta, o Rio, posou nas Olimpíadas com uma beleza de arrancar lágrimas se vista com a música de Tom Jobim a Nazareth. Quaisquer delas. O HD é ótimo, já o software... Falar em Cabral, já se pensou que ao descobrir o Brasil em abril, ele ainda não tinha uma noção muito clara das estações do planeta? Mesmo porque era heresia concebê-lo redondo? Desde que chegou o clima só ficou primaveril neste paraíso, enquanto a Europa, na primavera coincidentemente a Primavera européia fugindo das hibernais temperaturas e por este mês de setembro de 1500 os portugueses deviam estar eufóricos porque daí em diante só aguardavam que viesse o detestável frio europeu. Vai daí que já era tarde para fugir desta canícula tropical que nos faz fugir para as montanhas ou para um inverno tropical do hemisfério norte.

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    1. Sai do Brasil com 30 graus de inverno e cheguei cá com a mesma temperatura, de verão. Como um português quinhentista poderia entender isso? Por esse motivo, muitos quiseram ficar no Brasil. D. João VI que o diga...

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  2. Seu texto dessa vez está muito poético.Adorei tudo nele colocado,até saindo das críticas e dos motivos aos quais todos nós estamos cansados de saber.Bjs lusitanos Zezé

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    1. Obrigado, Zezé. Mas, como dizia o sábio Millor Fernandes: poesia numa hora destas?...

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