sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O REI QUE CONHECI

 


É difícil escrever sobre um símbolo. Tudo o que eu poderia dizer sobre Pelé, aqui neste acanhado blog, já foi dito, vezes e vezes sem conta. Foi, e será sempre, o brasileiro mais conhecido em todo o mundo e por todas as gentes. Perdi a conta de lugares que visitei, mesmo nas mais recônditas vilas do Camboja, em aldeias portuguesas, vales da Irlanda, estradas da Índia, bares do Canadá, ruas da Rússia, nos quais, toda vez que eu declarava que vinha do Brasil, recebia como resposta: Pelé, dito reverencialmente com um brilho nos olhos e o polegar para cima. Na maioria das ocasiões, era tudo o que sabiam sobre o Brasil. E era suficiente.

A única coisa que posso oferecer como homenagem são as imagens dos momentos em que eu tive a fortuna de presenciar, ao vivo e em pessoa, acontecimentos extraordinários de arte desportiva protagonizados por Pelé. Copiando Gonçalves Dias, eu posso proclamar, alto e bom som e com profundo orgulho: meninos, eu vi.

.em 1958, a seleção brasileira titular tinha na meia esquerda (para os novos, era a posição do camisa 10) Dida, jogador do Flamengo que eu, como fervoroso rubro-negro, achava indiscutível. Nos dois primeiros jogos da Copa da Suécia, ainda foi assim. Mas, no terceiro, contra a poderosa União Soviética, a história de um gênio começou a ser escrita. Pelé, chamado então de a novidade por Geraldo Romualdo da Silva, o maior locutor esportivo da época, entrou no time. E o mundo do futebol encontrou o seu Rei;

.Maracanã, 17 de setembro de 1959. Taça Bernardo O’Higgins. Na goleada de 7 a 0 contra o Chile, Pelé faz três gols. Até aí, normal. Mas, já ao final do jogo, ele pega a bola na intermediária brasileira e sai driblando, um após outro, os atordoados chilenos. Prossegue até a grande área adversária. E depois volta, repetindo a dose. Eu e as 120.000 pessoas no estádio, de pé, aplaudimos por mais de um minuto. Magia pura;

.Maracanã, 5 de março de 1961. Torneio Rio-São Paulo. O Santos enfrenta o Fluminense, a melhor defesa da competição. Final do primeiro tempo. Pelé toma a bola ainda na defesa, avança, dribla seis jogadores tricolores e, na saída do excelente goleiro Castilho, marca o mais belo gol que o estádio, e eu, havíamos já visto. Joelmir Betting, ao tempo cronista do jornal O Esporte dá a ideia e uma placa de bronze eterniza o momento. Gol de Placa vai servir para apelidar todos os gols feitos com arte daí para a frente;

.Maracanã, 18 de julho de 1971. Jogo do Brasil contra a Iugoslávia. Ao fim do primeiro tempo, Pelé se despede da seleção brasileira com uma volta olímpica. A emoção toma conta de todos nós. Afinal, não é todo dia que se assiste ao fim de uma era.

A ocasião, entretanto, que mais vive na minha memória foi meu encontro pessoal com o Rei. Quando a seleção voltou vitoriosa do Chile, em 1962, uma recepção foi organizada no Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro. Por obra e arte de um grande amigo, que, por sua vez, tinha um amigo do amigo do amigo de um funcionário do palácio, consegui penetrar na solenidade. E estava mesmo na porta do salão nobre quando os jogadores chegaram. Não sei que fada benfazeja fez com que a primeira pessoa que Pelé visse ao entrar fosse eu. E me deu um grande abraço.

Há outros relatos que me foram prometidos por um fraterno amigo, que prometo repassar assim que me forem enviados. Pelé é grande demais para uma só crônica.

Oswaldo Pereira
Dezembro 2022

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

DESALENTO

 


Os poucos (mas valorosos) seguidores deste blog sabem que eu procuro não publicar assuntos, especialmente os políticos, que deliberadamente suscitem polêmicas e confrontações. Na grande maioria, os textos que aqui apresento, com a pretensão única de atrair um pouco da sua atenção, versam sobre experiências deste modesto escriba, sejam de viagens, de livros lidos, de filmes assistidos e, especialmente, de observações da vida e do universo que me cerca, filtradas pela perspectiva de muitos anos de uma existência atenta e uma mente curiosa.

Momentos houve, entretanto, que acontecimentos importantes do ambiente institucional brasileiro impeliram-me a externar minha opinião, sempre ressaltando que era uma manifestação individual e apoiada tão somente no arcabouço de informações que estavam ao meu alcance. Dado que este blog nasceu em fevereiro de 2013, portanto no terceiro ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff, minhas pontuais crônicas de cunho político cingiram-se ao período compreendido entre aquele ano e o presente. As mais incisivas intervenções procuraram, de um lado, espelhar minha aversão àquela governante que, com sua imensa estupidez e imperdoável arrogância, significou para mim o que de pior esteve no comando deste país, pelo menos com relação aos presidentes que conheci nestes meus 82 anos de idade.

Outra circunstância que me levou a escrever sobre a nossa situação política foi o gigantesco esquema de corrupção engendrado e comandado pelo Partido dos Trabalhadores, tendo como beneficiários e cúmplices a grande maioria de um Congresso venal e um Judiciário desonesto. Foi como um horrorizado cidadão que não pude resistir ao impulso de externar meu nojo e minha repulsa.

Nunca cheguei verdadeiramente a publicar análises mais profundas sobre o Governo Bolsonaro. Com a pandemia tirando o foco dos outros temas e prejudicando uma avaliação correta da atuação de seu mandato, não me entendi capaz de fazê-lo. De qualquer modo, o simples fato de verificar sua férrea vontade de colocar uma trava no obsceno rega-bofe dos governos anteriores já o credenciava favoravelmente. E, no período pós-Covid, com a economia recuperando, o Brasil voltando a crescer em níveis superiores a outros países, com a inflação em baixa, o desemprego em queda e com quase todos os indicadores desenhando uma curva virtuosa, minha simpatia aumentou.

A vitória de Lula me desencantou. Mesmo verificando que Bolsonaro, ao mesmo tempo que comandava um séquito de milhões de brasileiros (como raras vezes tive a oportunidade de testemunhar na história recente), também suscitava uma disseminada rejeição ao seu modo truculento e, em grande medida, a surda revolta de fortes interesses contrariados, cheguei a crer que o povo não iria permitir a volta daqueles que haviam jogado o país num pântano de desmandos e corrupção.

Estava enganado. E perplexo de ver muita gente que conheço conscientemente escolher o candidato do PT.

Os primeiros movimentos do novo Governo vêm-me confirmar os meus maiores temores. A visão de um anunciado descontrole fiscal, o aumento do número de Ministérios, o leilão político de cargos que deveriam ser ocupados por técnicos competentes, o retorno ao poder de nomes que causam arrepios, tristemente conhecidos por sua inépcia ou suas falcatruas, o ressurgimento do peleguismo em suas piores formas dá-me uma profunda sensação de desalento, de desencanto e de luto por um futuro que está morrendo.

E aí, eu me permito perguntar aos que votaram em Lula. É isto mesmo que vocês queriam? É esta a imagem que vocês defendem e em que acreditam como sendo a melhor opção para o bem estar da população brasileira? É este o uso dos impostos que vocês reputam como a mais adequada? É este o país     que vocês querem apresentar para seus filhos? Espero fervorosamente que sim porque, embora tendo o pleno direito de escolher, há um direito que vocês não têm. O de se arrependerem.

Oswaldo Pereira
Dezembro 2022

quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

AVATAR 2

 



James Cameron é, mais do que tudo, um visionário que adora grandes desafios. Em cima disto, o diretor canadense é um inovador perfeccionista, uma combinação de características que o leva a empurrar as fronteiras da cinematografia a caminhos ainda não palmilhados e a limites que só a imaginação é capaz de definir. Foi assim com o seu retumbante sucesso, Titanic, lançado em 1997 e, até hoje, reverenciado como um marco e uma atração que mantém seu fascínio, mesmo que seja vista repetidamente.

Em 2009, Cameron surpreendeu novamente com Avatar, uma saga futurística que narrava a luta de um povo mítico do planeta Pandora contra uma invasão de terráqueos. Resumindo assim, pode parecer uma surrada história em quadrinhos, mas o filme foi muito, muito mais do que isto. Usando e esbanjando o que de melhor havia no momento em termos de computação gráfica, Avatar deslumbrou plateias no mundo inteiro, permeando o roteiro ficcional com lirismo e extraordinárias sequências de uma civilização integrada numa natureza pujante e primordial.

Já por essa altura, Cameron se propunha a transformar Avatar numa franquia, dando seguimento à história por mais dois capítulos. Este número, em 2012, se transformara em cinco episódios, e os roteiristas puseram seus bestuntos para funcionar. A meta era estrear o Avatar 2 já em 2014. Mas aí, o perfeccionismo de Cameron entrou em cena. Para espelhar com a fidelidade pretendida as imagens marinhas que seriam a tônica do filme, as técnicas existentes de performance motion, uma avançada modalidade que utiliza os movimentos de atores reais para compor seus personagens de animação, ainda não atingiam o estado da arte desejado pelo exigente diretor. Só em 2019 isto aconteceu e a produção começou.

O resultado é o impressionante Avatar: The Way of Water, que acaba de estrear aqui nos Estados Unidos. Nesta sequela, Jack Sully, o marine que adotara sua identidade Na’vi, sua mulher e seus filhos têm de fugir de sua tribo, novamente atacada pelos terrenos e refugiar-se numa aldeia de nativos que vivem do mar e que, na verdade, até adquiriram características físicas marinhas. O processo de adaptação da família de Sully ao novo ambiente, o estranhamento e a hostilidade inicial que sofrem por parte dos seus anfitriões e a batalha final contra uma força tarefa comandada pelo coronel Miles Quaritch, que volta à cena agora recombinado num na’vi, desenvolvem-se num fantástico e visualmente estonteante mundo submarino.

Os atores principais, Sam Worthington, Zoe Saldaña e Stephen Lang estão de volta. Sigourney Weaver também reaparece, mas num papel diferente. Kate Winslet junta-se ao cast, sua segunda experiência sob a regência de Cameron. Como os outros, ela foi obrigada a treinar mergulhos livres e, segundo consta, conseguiu estabelecer um recorde de sete minutos debaixo d’água sem respirar.

Avatar: The Way of Water custou acima de US$ 460 milhões, outro recorde. Mas, a julgar pela receita de bilheteria de US$ 570 milhões só nesta primeira quinzena de lançamento, percebe-se que James Cameron acertou de novo e que a franquia se estabelece. É aposta certa para abiscoitar vários prêmios nas cerimônias do ano que vem. E provoca a espera ansiosa pelo terceiro capítulo, previsto para 2024.

Em suma, vale a pena ver.

Oswaldo Pereira
Dezembro 2022

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

NATAL 2022





UM GRANDE NATAL PARA TODOS, COM MUITA PAZ, MUITO AMOR E MUITA SAÚDE. E, para manter a tradição, o conto de Natal deste ano:


«Como assim?»
«Foi o que eu falei. Ele está no whatsapp, aqui no meu celular. Insiste em falar com você...»

A conversa entre ele e a mulher era na cozinha, de manhã. Noel havia se levantado com uma pequena dor de cabeça. Faltavam poucos dias, mas ainda havia alguns atrasos na preparação dos embrulhos, o programa de recebimento de pedidos, agora inundado de e-mails, tweets, instagrams, whatsapps estava congestionado. Que saudade das velhas e boas cartinhas, havia ele dito dias antes. Além disso, a fabricação de brinquedos, que havia sido terceirizada quando a preferência do público abandonara os tradicionais soldadinhos, tambores, carros de corda, bonecas falantes e castelos em miniatura por cada vez mais sofisticados app’s e rpg’s, tivera problemas com um inesperado overload do sistema. Muitos empregados, talvez os melhores que tinha, haviam sido atraídos por irrecusáveis propostas de trabalho da crescente área de entretenimento.

Mas, não era só isto. O fato mais preocupante era que ele estava cansado. A idade começara a pesar. A perspectiva de girar o mundo a bordo de uma desconfortável carruagem descoberta, guiada por tração animal, na noite mais fria do ano, já não era tão atraente como antes.

Talvez por isto mesmo, no início de novembro, ele havia namorado, por alguns dias, a ideia de passar o negócio para frente. Mamãe Noel, depois de considerar o assunto com sua costumeira ponderação, acabara por concordar que isto poderia ser uma opção viável no futuro. Não tinham filhos nem herdeiros para quem deixar o empreendimento. Vamos esperar passar este próximo Natal, dissera.

Noel, entretanto, com a ideia volteando insistentemente em sua cabeça, acabara por comentar o assunto com alguns vizinhos. Embora pedindo que a guardassem para si, a notícia acabou por transpor o diminuto círculo de amigos da pequena aldeia da Lapônia. 


Noel pegou o celular.
«Elon?...»
«Sim, old boy, tenho uma proposta bilionária. Você não vai recusar. Depois do Tweet, é a coisa que eu mais desejo comprar. O Natal...»

Oswaldo Pereira

Dezembro 2022

Quem quiser ler os contos de natais anteriores, é só clicar em:

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O BAÚ



Quanto mais vivemos, mais lembranças temos. É um axioma. E, dito assim, parece uma obviedade gritante. A vida nos faz acumular passado que, no fundo, nada mais é do que um baú de histórias que o destino, ou alguém regendo em seu lugar, nos fez protagonizar. À medida que nossa trajetória se alonga, estes pedaços de memória vão resvalando para dentro deste baú, acumulando-se juntamente com a poeira do tempo. Alguns vão tão fundo ou são tão distantes no tempo que acabam se apagando, como papéis velhos e amarelecidos que se desfazem no sopro do esquecimento.

A ruína, no entanto, é seletiva e pouco tem a ver com o passar dos anos. O que mantém algumas dessas lembranças vivas e coloridas é a maneira com que elas nos encantaram, feriram ou nos modificaram. De repente, o som de uma canção ouvida na infância e que nos trouxe uma revelação está mais vivo do que a desimportante sinfonia tocada anteontem. Primeiros amores, primeiras dores, primeiras encruzilhadas, primeiras epifanias – são elas as imagens que mais perduram, são delas que nosso enredo seletivo mais lança mão, quando a idade nos abre o baú.

Nós, os velhos, estamos cheios dessas coleções de momentos passados e recordá-los é um dos mais praticados exercícios e um dos prazeres mais cultuados da velhice. E a suprema felicidade vem quando podemos compartilhá-los com aqueles que os experimentaram ao nosso lado.

Acontece que, com o correr do tempo, muitos dos nossos interlocutores vão partindo, levados pelo mistério que é o destino. Vamos ficando sós, sem ter conosco as testemunhas dos episódios do nosso passado. Aquele amigo com quem vimos um gol de Garrincha num Maracanã lotado, que foi conosco numa matinê do Metro Copacabana ver a plateia batendo palmas para Gene Kelly dançando na chuva, aqueles com quem amarramos a primeira bebedeira de cuba-libre ou ainda os que, juntos, após um festa de reveillion de vestidos longos e smokings, fomos ver a alvorada de um novo ano na praia de Ipanema.

Podemos até continuar contando estas mesmas estórias para outros ouvidos, mas a magia do compartilhamento de uma experiência comum não aflora, a linguagem cifrada dos segredos divididos não é mais reconhecida.

Vamos ficando mais sozinhos com o nosso baú, pois cada vez menos há aqueles que sabem a senha de seu cadeado.

Envelhecer também é isto.

Oswaldo Pereira

Dezembro 2022

domingo, 4 de dezembro de 2022

NADA DE NOVO...


 

A Grande Guerra acabara há dez anos. Os lacerantes efeitos da maior carnificina que o mundo vira até então ainda feriam os sentidos e a alma dos povos europeus, cuja juventude havia sido ceifada pela metralha e pelo gás de um conflito de inimaginável virulência.

A Alemanha perdera. O império austro-húngaro desmoronara. Nos escombros de um continente ainda tentando digerir os efeitos da catástrofe, o escritor Erich Maria Remarque, que lutara e fora ferido no front ocidental, escreveu Im Westen Nichts Neues (No Ocidente Nada de Novo). Publicado em 1929, e baseado nas experiências do próprio Remarque no inferno das trincheiras, a obra é um libelo contra as guerras, contra a insensatez de se opor jovens iludidos por ideologias que não foram por eles criadas e que não as entendem, manipulados por generais protegidos por sua hierarquia, pavoneando seus sonhos de glória longe do fragor e do morticínio.

Instantaneamente, o livro virou um best seller. E, em 1930, foi levado para as telas pela Universal Studios, sob a direção de Lewis Milestone. O filme acabou por ser pioneiro em várias categorias: foi o primeiro baseado em uma obra literária a ganhar um Oscar e o primeiro filme de guerra da era sonora do cinema. Hoje, faz parte da lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos.

Em 1979, uma nova versão para a TV, com o mesmo título de All Quiet on the Western Front (aqui no Brasil, Sem Novidades no Front), foi produzida. Embora procurando manter a mensagem antibélica do original, essa refilmagem, que contava com Ernest Borgnine e Richard Thomas nos papéis principais, não trouxe a mesma pegada e a força cênica do filme de 1930.

Agora, a Netflix traz mais uma roupagem do livro de Remarque. Desta vez, com roteiros, atores, direção e produção alemães. Realizado por Edward Berger e com o conhecido Daniel Brühl no elenco, esta nova leitura do clássico concentra-se quase que exclusivamente nos horrores das casamatas e nas atrocidades de uma guerra insana. Utilizando-se do estado da arte da moderna cinematografia, o filme é um exercício intensamente gráfico da carnificina da Grande Guerra. Talvez por se preocupar mais com o aspecto da crueldade e do sofrimento humanos nas suas duas horas e meia de projeção, Im Westen Nichts Neues abandona o lirismo, a perspectiva e a transmissão da mensagem, tanto do livro como da sua primeira versão para o cinema.

E, no quesito Primeira Guerra, há outros exemplos mais substanciosos, como o recente 1917 e, indo mais para trás, o excelente Paths of Glory (Glória Feita de Sangue).

Eu, que li a obra de Remarque e vi as três produções, ainda prefiro a obra prima de 1930, mesmo em preto e branco e com os rudimentares recursos do incipiente cinema falado de então.

Oswaldo Pereira
Dezembro 2022

sábado, 26 de novembro de 2022

A CASA DO DRAGÃO




Como já devo ter escrito algures aqui neste modesto blog, sou fã de carteirinha de George R. R. Martin. Para os menos interessados no tema, Martin é o autor da famosa saga literária A Song of Ice and Fire, obra que deu origem a uma das mais exitosas séries televisivas de todos os tempos – Game of Thrones (A Guerra dos Tronos).

A instigante prosa de Martin, inspirada por uma imaginação e uma criatividade que beiram o extraordinário, fez com que eu, e talvez milhões de outros leitores encantados, atravessassem com permanente interesse os cinco alentados volumes que compõem a coleção. São vários os atributos desse magnífico trabalho de ficção, entre os quais, e não só, o cuidadoso desenho dos personagens, o ritmo rápido e incessante do drama, a pintura dos cenários e o impressionante detalhismo da trama histórica e do mundo imaginário criado pelo escritor.

Para dar uma dimensão do cuidado quase obsessivo de Martin com os pormenores para trazer o mais perto possível da realidade seu ambiente ficcional, ao final de cada um dos livros mais de cinquenta páginas eram dedicadas a elencar todos os componentes dos clãs que povoavam o seu universo, mesmo aqueles que jamais apareceriam em cena; além, é claro, dos elaborados mapas ilustrativos dos continentes imaginados por Martin.

Talvez esta obsessão, somada ao imenso sucesso de Game of Thrones, tenha levado o autor a prosseguir com a trama, desta vez para trás, para os acontecimentos ocorridos centenas de anos antes do aparecimento dos personagens de A Guerra dos Tronos. O resultado foi a obra Fire & Blood (Fogo & Sangue), um “tijolo” de mais de 800 páginas. Como juramentado admirador do “mago” Martin, este modesto escriba aceitou o desafio de lê-lo.

Começando com a tomada de poder pelos Targaryan e a consolidação de sua hegemonia como soberanos dos Sete Reinos, o relato permeia três séculos, até encostar no presente da série anterior. Talvez por isso mesmo, nota-se um certo abatimento do ritmo frenético dos livros iniciais. A prosa é mais narrativa, como convém a um relato eminentemente histórico e quase didático, mas que amortece em certa medida o fulgor candente dos cinco volumes precedentes. Resumindo, é preciso ter a fé inabalável dos iniciados para completar a leitura.

Como não podia deixar de ser, a HBO está levando Fire & Blood para a telinha, e a primeira temporada foi lançada recentemente, em agosto passado. Com o nome de House of The Dragon (A Casa do Dragão), a experiência, como o livro que a inspirou, é uma versão mais abrandada de A Guerra dos Tronos.   A trama centra-se na disputa entre dois filhos do Rei Viserys Targaryan, Rhaenyra e Aegon II, pela posse do Trono de Ferro, ocorrida mais de duzentos anos antes do tempo de Robert Baratheon, Jaime Lannister, Ned Stark e companhia.

Não há a menor dúvida de que se trata de uma produção esmerada, com cenários grandiosos, linda trilha sonora e efeitos especiais empolgantes. Há também interpretações magníficas, especialmente a do ator inglês Paddy Considine no papel de Viserys. O problema é o efeito comparativo, quando se tenta equipara-la a Game of Thrones. A ação é focada apenas em um aspecto do drama, e não multifacetada e enriquecida por diversos acontecimentos paralelos, como na série anterior.

E, para mim, a troca dos intérpretes de alguns dos personagens centrais no meio da temporada, para tentar espelhar o seu envelhecimento, foi desastrosa. Primeiro porque o hiato de tempo não era tão grande que um bom trabalho da equipe de maquilhagem não resolvesse; depois, porque outros atores foram mantidos, com a mesma fisionomia, confundindo o espectador e ferindo a autenticidade visual da produção.

De qualquer maneira, o sucesso foi estrondoso, contabilizando, na semana de lançamento, mais de dez milhões de espectadores. Evidentemente, uma segunda temporada já está em andamento.

Oswaldo Pereira

Novembro 2022

domingo, 20 de novembro de 2022

BOND 60 (38): TOMORROW NEVER DIES (PARTE II)

 


Tomorrow Never Dies foi o primeiro filme de Bond, desde Goldfinger, que não ocupou o topo da lista das bilheterias na semana de seu lançamento. Também, pudera. A concorrência era, nada mais nada menos, que Titanic, estreado ao mesmo tempo. De qualquer maneira, o décimo oitavo capítulo da série abiscoitou, até hoje, US$ 333 milhões.

Lançado na esteira de sucesso no seu predecessor, Goldeneye, a produção confirmou a aceitação de Pierce Brosnan como 007. O canadense Roger Spotswood substituiu Martin Campbell, que declinou o convite de Barbara Broccoli por estar dirigindo The Mask of Zorro, na direção. Não decepcionou, procurando manter a pegada com boas cenas de ação.

Para representar o vilão da história, inspirado, segundo o seu próprio autor Bruce Feirstein, no controverso magnata da comunicação Robert Maxwell, a escolha caiu inicialmente em Anthony Hopkins. Hopkins, entretanto, estava também comprometido com The Mask of Zorro e o convite foi feito ao excelente ator Jonathan Pryce.

Para fazer Paris, a mulher de Elliot Carver e ex-amante de Bond, Teri Hatcher (já famosa como Lois Lane, a namorada do Superman) suplantou Monica Bellucci. Já o papel da agente chinesa Wai Lin coube à malaia Michelle Yeoh. Judi Dench (“M”), Samantha Bond (Moneypenny) e Desmond Llewelyn (“Q”) mantiveram seus postos. Há ainda a aparição, em papéis menores, dos então iniciantes Gerard Butler (o futuro Leonidas em 300) e Hugh Bonneville (do recente Downton Abby).

O lendário John Barry, que já abandonara a série por problemas de saúde, indicou o britânico David Arnold para a compor a trilha sonora. Arnold ficaria por mais cinco Bonds. A canção-título foi composta e gravada por Sheryl Crow. Se quiser ouvi-la, é só clicar neste  LINK  .

A crítica teve altos e baixos e análises diametralmente opostas. Atualmente, a sensação entre os aficionados é de que Tomorrow Never Dies foi um pouco de “mais do mesmo”, carecendo algo que o pudesse distinguir como renovador ou intrigante.

Um último detalhe: segundo Feirstein, o criador da história que serviu de base ao roteiro, seu título foi inspirado pela música dos Beatles, “Tomorrow Never Knows”, do álbum Revolver. Além disso, o nome original era Tomorrow Never Lies (O Amanhã Nunca Mente) mas, num erro de datilografia, Lies virou Dies. Como os produtores optaram pela versão errada, o nome ficou.

(continua)

Oswaldo Pereira
Novembro 2022

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

OITO BILHÕES

 


A data de referência é o dia 15. Mas, tenha sido hoje ou ontem, seja amanhã ou na semana passada, nossa querida Terra chegou à marca de 8 bilhões de habitantes. Oito seguido de nove zeros. Para se ter uma ideia do tamanhão deste número, se você começasse a contar agora, com a voz pausada e sem parar um segundo, só terminaria em novembro de 2075.

Quando eu nasci, em 1940, o mundo contabilizava 2 bilhões de pessoas; ou seja, no espaço de uma vida (a minha), o número de moradores deste planetinha multiplicou-se por quatro. Hoje temos mais seis bilhões de pares de pulmões e seis bilhões de bocas metabolizando ar, água e comida do que no ano do meu nascimento. E olhe que tivemos, neste hiato de tempo, nada mais nada menos do que uma guerra mundial e algumas catástrofes ecológicas e sanitárias. Nada que pudesse impedir a festa do crescimento demográfico.

E essa nossa eficiência em povoar o mundo revela-se numa espetacular progressão geométrica, especialmente de 220 anos para cá. Levamos duzentos mil anos para chegar ao primeiro bilhão, no ano de 1800. E, excetuando-se o interregno da Peste Negra, havíamos crescido sem parar.

Mas nada em comparação ao ritmo que se observou no século vinte, especialmente no período entre 1950 e 1970, impulsionado pelo histórico baby boom (terminada a Segunda Guerra Mundial, milhões de jovens soldados retornaram a casa pensando numa só coisa...). Durante aqueles vinte anos, o aumento populacional anual foi de 2,3%.

Este percentual é hoje de 1,1%. O ritmo abateu-se. As estatísticas mostram que, atualmente, há 140 milhões de nascimentos e 60 milhões de mortes por ano; as previsões indicam que, com a diminuição progressiva de partos, em algum tempo perto de 2100 haverá um empate. Daí para a frente, só declínio.

Razões? É difícil precisar. Não é por falta de recursos naturais, pois a nossa dadivosa mãe Terra, embora maltratada, parecer ter ainda capacidade de nos alimentar por muito tempo. Nos dias de hoje, os problemas de fome e necessidades devem-se mais a uma distribuição desigual do que à escassez. Pode ser mais um ciclo, dos muitos que regem a Natureza.

Só sei que, de duzentos mil anos para cá, conseguimos espalhar-nos pelos mares e continentes, e assegurar nosso lugar no topo da cadeia alimentar. Quanto tempo durará este reinado?

Oswaldo Pereira
Novembro 2022

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

BOLA NAS COSTAS

 


No futebol, o pesadelo de todo jogador de defesa é ser enganado numa jogada em que o atacante adversário recebe um passe perfeito atrás de si. No linguajar futebolístico, é a popular bola nas costas.

Para que meus leitores de além-mar entendam, aqui em Pindorama é de praxe usar imagens do esporte bretão para ilustrar paisagens políticas. As famosas quatro linhas, o ufanismo da camisa amarela, o Brasil de chuteiras, tudo isto comprova o quanto o espírito do futebol permeia o imaginário pátrio e os modelos de comparação.   

Nesta linha, algo me inspira a dizer que o lance desportivo descrito acima cai como uma luva para desenhar o cenário que, embora propositalmente ignorado por uma mídia acovardada ou desonestamente partidária, cobre o país de norte a sul: as gigantescas manifestações de repúdio ao resultado das eleições, que já perduram por 15 dias.

Sem entrar no mérito de sua possibilidade ou não de sucesso, e, para já, defendendo o direito constitucional que o cidadão brasileiro tem de poder, pacificamente, expressar sua opinião e externar seu desagrado, gostaria de opinar sobre o local que as multidões escolheram para fazer sentir sua voz. Enquanto as bandeiras e os pedidos de socorro se agitam e ecoam em frente as casernas, a cena principal, na qual se prepara a aprovação de um pacote irresponsável e desastroso para a Economia brasileira, acontece no palco do Congresso.

É para lá que se deve dirigir a nossa vigilância. E à sua porta (e antes que algum açodado leitor me acuse de trumpista e de incitar um seis de janeiro em Brasília), pacífica e ordeiramente, como, de resto, tem acontecido Brasil afora, exercer sua pressão sobre os nossos ínclitos representantes. Foi para isso que o povo os lá colocou e é neles que deve refluir o poder que dele emana.  Aos seus ouvidos e ante seus olhos é que a multidão deve oferecer o espetáculo, este sim, da Democracia em pleno movimento.

Acho que este seria o posicionamento adequado, para não levarmos uma bola nas costas...

Oswaldo Pereira
Novembro 2022

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

E É SÓ O COMEÇO...

 


Irresponsabilidade fiscal, aumento do número de Ministérios, retorno de nomes que já provaram sua incompetência no trato da coisa pública...

E isto é só o começo. Como dizem que nada é tão ruim que não possa piorar, o inconsequente e popularesco discurso de Lula desta quinta-feira, cujo efeito negativo no mercado de capitais foi imediato, dá o tom do que pode vir por aí.

Só quem ainda não chegou na quarta série do primário ou vive numa redoma impenetrável ignora (ou finge ignorar) as consequências do descontrole das contas públicas. Para estes, e para todos nós, eu aconselho que se preparem. Gastar mais do que se ganha, tanto no microcosmo de uma contabilidade familiar como na economia nacional, tem como corolário o aumento do nível de endividamento. Parece simples. E é. No caso dos Governos, a cobertura do furo ou vem do aumento da arrecadação (vulgo aumento de impostos) ou da emissão de moeda (no popular, inflação).

Então, apertem os cintos. Com esse discurso, que até fez levantar os poucos cabelos do Alkmin, Lula pode assustar os grandes investidores internacionais que, durante os últimos quatro anos, descobriram o Brasil como uma opção e um destino interessante e confiável. Capital não tem pátria e é veloz em suas movimentações. Uma fuga para outros portos mais seguros vai enfraquecer o real, diminuir a arrecadação e destruir empregos.

Se acham que estou exagerando, tudo bem. Mas, certas leis econômicas são imutáveis e, se puxarem um pouquinho pela memória, concluirão que já vimos este filme num passado não muito distante, durante o desgoverno e as pedaladas de Dilma. Discursos emocionados não mudam certas verdades. O que Lula está propondo é uma pedalada gigante, cujo valor pode chegar a R$200 bilhões.

Ao final de sua conferência, Lula fez alusões jocosas à reação da Bolsa e do câmbio e até perguntou, em tom de galhofa: Por que o mercado não havia ficado nervoso durante os quatro anos de Bolsonaro?

Será que é preciso explicar?

Oswaldo Pereira
Novembro 2022

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

BOND 60 (37): TOMORROW NEVER DIES

 


Décimo oitavo filme da série, Tomorrow Never Dies baseou-se no roteiro escrito pelo canadense Bruce Feirstein, famoso por seus livros de humor, como Real Men Don’t Eat Quiche e Nice Guys Sleep Alone.  Foi o último Bond a ser distribuído pela United Artists e foi filmado na França, na Tailandia, no México, na Alemanha, além de no Reino Unido.

A história gira em torno de um magnata da comunicação chamado Elliot Carver, dono da CMGN, obcecado pelo poder e que usa sua planetária rede de notícias para obter mais e mais supremacia no mundo da informação, através de chantagens e esquemas de corrupção.

A pré-sequência mostra um bazar de armas contrabandeadas, situado em algum lugar próximo às fronteiras russas, sendo monitorado pelas câmaras do MI6.  As imagens revelam a presença ali de Henry Gupta, um terrorista e gênio do mal da informática, adquirindo um decodificador GPS, habilitado a alterar rotas de navios. Bond também está ali, investigando o bazar. Da sede do MI6, o Almirante Roebuck, da Real Marinha Britânica, mesmo contra as orientações de M, a chefe da agência, manda bombardear o local. No último momento, Bond sinaliza que há mísseis nucleares no perímetro, armados num avião L-39 Albatroz. Como já não há mais tempo para impedir o bombardeio, Bond apossa-se do jato e consegue escapar do local.

Henry Gupta, afinal, trabalha para Carver. Utilizando o GPS, os dois alteram a rota da fragata britânica Devonshire, colocando-a, sem que a tripulação o saiba, em águas territoriais chinesas. Além disso, Carver possui um barco imperceptível aos radares, do qual é lançado um torpedo tipo broca que fura o casco da fragata, dando a impressão de que foram os chineses os culpados. O incidente provoca, evidentemente, a escalada de tensões entre a Reino Unido e a China e os dois países preparam-se para a guerra.

M, entretanto, desconfia que há algo por trás disto tudo e suspeita da interferência de Carver, até porque a notícia sobre o confronto sino-britânico apareceu nos canais da CMGN muito antes do MI6 tomar conhecimento do caso. Ela, então, envia 007 para Hamburgo, onde Carver está realizando uma conferência. Como Bond tivera um caso com Paris, a mulher de Carver, alguns anos antes, o objetivo é usar esse relacionamento para conseguir mais informações.

Paris, que deixara Bond por verificar que ele nunca abandonaria sua profissão, acaba se reconciliando com o agente e passando-lhe as indicações para penetrar nas oficinas gráficas de CMGN. Bond consegue então recuperar o GPS. Carver, nesse meio tempo, descobrira a ligação entre Paris e Bond e manda um assassino profissional matar os dois, e de maneira que parecesse um crime passional. Ao chegar ao seu hotel, Bond descobre o corpo de Paris e, apesar de rendido pelo matador de aluguel, consegue dominá-lo e eliminá-lo. Embora o hotel esteja cercado pelos capangas de Carver, Bond, utilizando os gadgets do BMW750 fornecido por Q, inclusive com controle remoto de direção, escapa.

BOND E SEU NOVO BMW750


De posse do GPS, Bond vai até a base americana em Okinawa e lá os técnicos conseguem localizar os destroços da Devonshire. Agora na companhia de Wai Lin, uma agente chinesa, eles mergulham até o navio naufragado no Mar Meridional da China. Os dois, entretanto, são apanhados e levados à presença de Carver em sua sede em Saigon. Lá eles cruzam com um corrupto general chinês e o plano de Carver é revelado: ele pretende intensificar a tensão entre ingleses e chineses lançando um míssil contra Beijing de seu navio stealth e colocar a culpa nos britânicos. Em seguida ao conflito, o tal general assumiria o governo de seu país e asseguraria ao Grupo Carver o monopólio das comunicações por cem anos.

BOND E WAI-LIN


Lin e Bond fogem antes de serem torturados e partem para encontrar o barco furtivo de Carver antes do lançamento do míssil. Dentro da embarcação, eles conseguem provocar uma explosão, que acaba por danificar o escudo contra radares e expor o barco aos ataques da aviação britânica. Na refrega, Carver é morto por 007. O filme termina com Wai Lin e Bond beijando-se nos destroços do barco e evitando serem resgatados pela Marinha.

(continua)

Oswaldo Pereira
Novembro 2022

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

VIOLETA

 


Nascemos com certas cartas, e com elas jogamos nosso jogo; alguns recebem cartas ruins e perdem tudo, mas outros jogam magistralmente com essas mesmas cartas e triunfam. O baralho define quem somos: idade, gênero, raça, família, nacionalidade, etc., e não podemos mudar essas coisas, só podemos usá-las o melhor possível. Nesse jogo há obstáculos e oportunidades, estratégias e ciladas.

Esta é uma das inspiradoras imagens criadas por Isabel Allende em seu mais recente livro Violeta. São muitas, e elas constroem um rico mosaico de sensações, descobertas, desafios e confissões que preenchem os 100 anos de vida de uma mulher. A personagem central é fictícia, mas o cenário de fundo conta a história do Chile no período entre 1920 e 2020.

A vida de Violeta vai de uma pandemia, a gripe espanhola, a outra, o COVID. Nesse intervalo, o país passa por uma larga transformação, atravessando tragédias naturais, movimentações sociais e sobressaltos políticos que interferem e moldam a trajetória de uma pessoa sempre atenta ao que se passa, enquanto constrói sua família, enfrenta seus conflitos e vive suas paixões.

Sempre centrada no cotidiano de Violeta (o livro é escrito na primeira pessoa, como se fosse um legado escrito da personagem principal), a narrativa é intimista e parte de dentro para fora, o que a torna reveladora e cativante. Igualmente instigantes e magistralmente construídos são os outros atores desse belo drama, homens e mulheres que acompanham (e às vezes traçam) o caminho centenário de Violeta.

A autora, filha de um primo de Salvador Allende, presidente do Chile entre 1970 e 1973, é uma das mais reverenciadas escritoras latino-americanas. A Casa dos Espíritos, seu primeiro romance, foi um grande sucesso literário. Seguiram-se mais de 20 livros, muitos dedicados ao período da deposição de Allende e da ditadura militar que depois se instalou. Violeta mantém a qualidade das obras anteriores e, com suas belas imagens e preciosos momentos, é um prazeroso exercício de leitura.

Oswaldo Pereira
Novembro 2022

 

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

DUAS ARENAS

 


Esperando a poeira baixar, enquanto ouço e vejo as explosões de alegria dos apoiadores de Lula e o desespero e a tristeza dos seguidores de Bolsonaro. E, aos poucos, à medida que a névoa da batalha se dissipa e eu me recupero da ressaca de uma esperança contrariada, tento enxergar além deste cenário imediato do pós-pleito.

Para mim, o que tivemos foram duas eleições, duas arenas em que se delineou o que o Brasil realmente quer. Na arena mais ampla, aquela que define o panorama político que vai comandar o Parlamento e a administração dos Estados brasileiros, houve a demonstração de uma clara e indiscutível preferência dos eleitores pela direita conservadora ou, pelo menos, pela fatia que se identificou com o Governo Bolsonaro. Praticamente, todos os seus ex-ministros se elegeram, todos os que tiveram seu incisivo apoio durante a campanha foram, com larga margem, premiados pelas urnas.  Houve uma significativa renovação, tanto na Câmara Federal como no Senado e, na maioria dos Estados mais importantes da União, os candidatos alinhados com o atual Presidente venceram.

Sem medo de errar, podemos dizer que a direita foi a grande vencedora. E isto quer dizer muita coisa. Quer dizer, por exemplo, que muitas das pautas da preferência petista encontrarão uma imensa dificuldade de passar no Congresso. Quer dizer que as casas legislativas estarão prontas a instalar CPI’s à menor indicação de atos irregulares do Governo Lula. E quer dizer também que o próprio STF terá agora pela frente um Senado hostil. Só para brincar de cenário, imaginem se, por exemplo, Sergio Moro for eleito Presidente da casa. Quantos pedidos de impeachment de Alexandre Moraes et caterva vão ser exumados de debaixo do tapete onde Rodrigo Pacheco os colocou?

Mas, tivemos uma outra arena. Uma arena de dois contendores, disputando um round de rejeições. A apertadíssima vitória de Lula nesse ringue dá a dimensão de quão acirradas e diametralmente opostas são as paixões e as preferências pessoais. Deve-se notar, também, que, mesmo apanhando da mídia todos os dias durante os quatro anos de seu mandato, enxovalhado pela classe artística e influenciadores de plantão, e alfinetado constantemente por uma Justiça partidarizada, Bolsonaro quase derrotou Lula.

Disto tudo, percebe-se que Lula terá dificuldade para governar. O Brasil de hoje é muito diferente do Brasil de 2002, de 2006, e mesmo de 2010, quando Dilma ganhou as eleições. Para já, há um modo novo de divulgação e propagação de ideias e notícias e, não há dúvidas, é um fator que pode desestabilizar o ambiente político. Além disso, Lula estará muito só no mandato que ele iniciará em primeiro de janeiro de 2023. A esquerda está sem lideranças. Haddad, Boulos, Freixo e muitos outros foram rejeitados pelas urnas. Em contrapartida, duas grandes estrelas da direita estão surgindo e já anunciando seu protagonismo: o mineiro Romeu Zema e o carioca Tarcísio de Freitas.

O que realmente me preocupa é a reconhecida orientação esquerdista de, comendo pelas bordas, cooptar, seja pela corrupção ou pela ameaça, os pilares do poder. É um filme que já estamos assistindo aqui mesmo perto de casa e que já vivenciamos em Pindorama. Outra é a reação internacional. Não aquela que muita gente boa está comemorando, destacando a aceitação de Lula pelos governos estrangeiros. Isto de tapinha nas costas de chefes de Estado é muito bonito para fotografias e discursos. O que me interessa é a aceitação e a confiança dos grandes investidores internacionais, aqueles que trazem dinheiro e criam trabalho e riqueza. Nestes anos de Bolsonaro, o Brasil foi o eleito por eles como porto seguro para seus empreendimentos. Será que Lula não irá assustá-los, como aconteceu na Venezuela, na Argentina, no Chile e agora começa a acontecer na Colômbia?

Isto é o que eu consigo enxergar. Vão ser anos difíceis. Se Lula, paralisado num ambiente político adverso, estagnar o país, logo-logo a lua-de-mel acaba. Até a grande imprensa, que agora perdeu seu Judas preferido para malhar, poderá dar um giro de 180º em suas baterias. A ver.

Oswaldo Pereira
Outubro 2022

terça-feira, 25 de outubro de 2022

BOND 60 (36): GOLDENEYE (PARTE II)



O atraso na retomada da franquia em função da longa batalha legal entre a MGM e Albert Broccoli acabou por influenciar a desistência de Timothy Dalton em continuar no papel. Quando finalmente em 1994 a questão resolveu-se, Dalton já tinha outros planos e não aceitou a oferta de fazer os próximos cinco Bonds, conforme proposto por Broccoli. A procura do substituto, que chegou a ter no radar Mel Gibson, Hugh Grant e Liam Neeson, acabou se decidindo por Pierce Brosnan, que fora descartado quando da substituição de Roger Moore por ser muito jovem na ocasião.

Muita coisa havia mudado também, no período. O Muro de Berlim caíra e a Guerra Fria terminara. A grande era romântica dos espiões chegara ao fim e achava-se que heróis como 007 tinham saído de moda. Isto, e a morte de alguns dos veteranos participantes da equipe original da franquia, como o roteirista Richard Maibaum e o designer das aberturas Maurice Binder, foram responsáveis por importantes mudanças, tanto no redirecionamento conceitual do personagem principal como até da composição do casting.

O cargo de M, chefe do MI6, foi ocupado por uma mulher, a conceituada atriz Judi Dench. O bastão da direção foi para o neozelandês Martin Campbell, depois de John Woo ter declinado, e o script baseou-se numa história do americano Michael France, que iria mais tarde escrever os roteiros dos filmes de Hulk e do Fantastic Four.

JUDI DENCH COMO "M"
A inglesa Samantha Bond substituiu Caroline Bliss como Ms Moneypenny e um BMW Z3 interrompeu a carreira do Aston Martin como o super equipado carro de trabalho de Bond. Os vilões foram um capítulo à parte. Eram 3. O papel da sanguinária Xenia Onatopp coube à atriz holandesa Famke Janssen e o do General Ourumov ao alemão Gottfried John. Inicialmente, o script descrevia o agente tornado criminoso Alec Trevelyan/Janus como uma espécie de tutor de Bond e atores mais velhos como Anthony Hopkins e Alan Rickman chegaram a ser cogitados. Mas, com a mudança de roteiro e a transformação de 006 e 007 em contemporâneos, a escolha recaiu em Sean Bean (os amantes de Game of Thrones iriam vê-lo anos mais tarde no inesquecível personagem Ned Stark). Natalya Simonova, a Bond Girl da vez, foi interpretada pela cantora e modelo sueco-polonesa Izabella Scorupco.

SEAN BEAN COMO JANUS


Em outros papéis, Joe Don Baker, que já trabalhara em The Living Daylights como o corrupto Brad Whitaker (mais uma repetição desnecessária de casting) apareceu como o agente da CIA em São Petersburgo e Robbie Coltrane (recentemente falecido), famoso posteriormente como Hagrid na saga de Harry Potter, encarnou Valentin Zuckowsky, chefe de uma máfia russa.

O francês Eric Serra assumiu a trilha sonora, no lugar do lendário John Barry e a música título foi composta por Bono (do U2) e pelo inglês David Howell Evans, mais conhecido como The Edge. A intérprete foi Tina Turner, mas tanto o fundo musical como a canção tema tiveram pouca aceitação pela crítica. Para ouvi-la, clique neste    LINK.

O filme, entretanto, obteve um bom índice de aprovação na imprensa especializada e foi um sucesso de público (bilheteria até hoje de US$ 355 milhões). Em retrospectiva, Goldeneye, que marcou o retorno de certo modo triunfante de James Bond e o início da era Brosnan, classifica-se bem no ranking dos aficionados do herói de Ian Fleming.

(continua)

Oswaldo Pereira

Outubro 2022

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

NUNCA



O escritor galês Ken Follett, na abertura de seu recente livro Never, diz que, quando fez as pesquisas para seu trabalho anterior, Fall of Giants (Queda de Gigantes) se impressionara ao constatar que a Primeira Grande Guerra foi um acontecimento que ninguém desejava. Nenhum líder europeu tinha intenções de inicia-la. Cada Imperador ou Primeiro-Ministro, um a um, foram tomando decisões – decisões lógicas e moderadas – mas que, cada uma a seu modo, significaram mais um passo em direção ao mais sangrento conflito que o mundo conhecera até então.

Isto acabou por inspirar Follett a escrever Never (Nunca). O título remete ao desejo, expresso quase unanimemente pelos Governos mundiais, de que jamais aquelas condições pudessem acontecer novamente, isto é, que apesar de singularmente desejosos de manter a Paz, interesses e querelas aqui e ali levassem inexoravelmente ao caminho do confronto.

Neste livro, Follett mostra o que pode acontecer se essas condições advierem num ambiente nuclear e até que ponto o medo de uma hecatombe atômica conseguirá impedir os líderes do planeta de apertarem seus botões vermelhos. Partindo de situações sensíveis atualmente localizadas em vários continentes, o que dá ao livro uma certa aura de premonição (escrito antes da invasão da Ucrânia, o livro não contempla mais este inquietante fator), a trama desenrola uma série de implicações, tanto de caráter pessoal dos protagonistas, como de alianças e hegemonias internacionais que, somadas, empurram uma sequência de decisões inevitáveis e provocativas.

Uma disputa no Sahel, um drone americano roubado, uma rebelião na Coreia do Norte, uma Presidente dos Estados Unidos em campanha de reeleição, uma pressão da linha dura chinesa sobre um líder moderado são alguns dos ingredientes que servem de pano de fundo a um micro universo de dúvidas, ambições e frustrações pessoais.  O provérbio chinês dois tigres não podem compartilhar a mesma montanha dá o tom do que está por vir.

Como quase todo livro desse escritor prolífico e detalhista, Never é um “tijolo” de 800 páginas. Acabei de lê-lo e posso dizer que foi uma viagem agradável e instigante. Follett continua sendo o impecável ficcionista histórico que se consagrou com as trilogias de Os Pilares da Terra e de Queda de Gigantes. Vale a pena.

Oswaldo Pereira

Outubro 2022

domingo, 16 de outubro de 2022

COMO FOI POSSÍVEL?

 


Logo após as eleições de 2018, um amigo francês enviou-me um e-mail perguntando: Por que Bolsonaro? Respondi-lhe também por e-mail. Foi uma resposta sucinta e apenas em grandes linhas. Resolvi, porém, qualificar melhor a minha resposta e escrevi um texto sobre o assunto, em que procurei colocar em perspectiva político-histórica o resultado das urnas (se você estiver interessado, poderá lê-lo neste   LINK  ).

Passados quatro anos, e nas vésperas do segundo turno de uma eleição crucial, sou eu que me pergunto: como foi possível chegar ao ponto em que estamos, com Lula disputando palmo a palmo a escolha para a Presidência do país?

Em outubro de 2018, o PT estava de rastros. A gigantesca corrupção que havia sido praticada durante os governos petistas, reveladas pela Operação Lava-Jato, havia horrorizado o povo brasileiro. Pela primeira vez, e devido principalmente ao incontestável teor da desonestidade conluiada entre as grandes empreiteiras e a base política do Governo, vimos, com o aplauso da sociedade brasileira, o revigorante espetáculo da justiça sendo feita. Caciques graduados e antes intocáveis recebendo a visita da Polícia em suas indevidas mansões e indo para a cadeia era a justa retribuição pelos zilhões de dinheiro do nosso esforço como contribuintes que tinham ido para o ralo da roubalheira.

O tenebroso projeto de poder da esquerda, colocando na folha de pagamentos do propinoduto, financiada pelos nossos impostos e à custa da dilapidação de empresas e fundos de pensão estatais, uma considerável fatia do Congresso, bateu fundo na indignação do cidadão pátrio. Umbilicalmente identificado com esse quadro de desonestidade, o PT e seus puxadinhos pareciam ter caído no ostracismo político. A nítida sensação de que Lula e Dilma, chefes da nação durante o período, se não participantes diretos no botim, teriam no mínimo pecado por omissão, havia destroçado seu capital político e sua imagem.

Então, a pergunta. Como se explica a ressurreição de Lula?

Um argumento poderia ter sido uma péssima administração de Bolsonaro. Naquele meu texto, eu repetia o que todos diziam na ocasião: o hercúleo trabalho que o novo Presidente tinha pela frente, ao assumir um Governo aparelhado e uma situação econômico-institucional complicada. Escalando um time de ministros de reconhecida competência e fechando os buracos da malversação do erário, Bolsonaro conseguiu surpreender favoravelmente. Hoje, ninguém duvida do sucesso de seu trabalho, com o país, após enfrentar uma prolongada pandemia, condições climáticas adversas e uma guerra com várias implicações, voltando a crescer, e com inflação e desemprego em queda. Essa aprovação ficou evidente na votação do dia 2. A direita conservadora aumentou consideravelmente sua presença no cenário político.

Assim, não é por aí. O que nos faz voltar ao problema da rejeição. E, neste quesito, eu acho que houve uma inversão de marcha. Nos últimos quatro anos, observou-se uma redução da ojeriza a Lula, dominante em 2018, a ponto de muita gente que o renegava ter bandeado para o grupo que é capaz de apagar seus registros de memória e imaginar que ele possa ser uma alternativa melhor. Lula mudou? É claro que não. Pela retórica de sua campanha, o que ele anuncia é um revanchismo enraivecido e o que se vislumbra é a volta à prática do jabaculê partidário, do toma lá dá cá indecente. Seu currículo e seu retrospecto não permitem esperar nada diferente.

O que operou esta redução? Para mim, a resposta vem de uma estratégia da esquerda que é mais velha do que eu: a cooptação da cultura, da escola e dos meios de comunicação, a célebre e decantada tática gramsciana, que o socialismo brasileiro tão eficazmente soube instalar neste país. Com isso feito e consolidado, ficou fácil capitalizar em cima dos interesses contrariados pela firme atitude anticorrupção de Bolsonaro, diminuir ou simplesmente esconder na mídia os avanços e as realizações do Governo, explorar ad nauseam a belicosidade do Presidente, suas falhas de comunicação e sua personalidade combativa, de quem não gosta de levar desaforo para casa.

E, apesar de a direita ter reagido através das redes sociais, a inimaginável volta por cima de Lula acabou acontecendo. E nos pondo na encruzilhada deste segundo capítulo das eleições.

Oswaldo Pereira
Outubro 2022