D.
Maria I, Rainha de Portugal, teve dois epítetos. Foi chamada de a Viradeira, pelo fato de ter desfeito,
assim que subiu ao trono, grande parte da obra política e administrativa do
conselheiro de seu pai, o Marquês do Pombal. Mas, para a História, ficou mais
conhecida como “a Louca”, por ter
sucumbido a uma progressiva demência, possivelmente causada por uma varíola
contraída aos 17 anos. No fim da vida, só saia à rua amparada por um séquito de
aias. O povo, ao vê-la assim passar, dizia: “Lá vai D. Maria com as outras...”.
O dito que daí se originou – Maria vai
com as outras – acabou “colando” na figura de seu filho e sucessor, D. João.
O historiador português Sérgio Luís de Carvalho
conta que, durante seu reinado, corria por Lisboa uma quadrinha popular:
Nós
temos um Rei
Chamado
João
Faz
o que lhe dizem
Come
o que lhe dão
E
vae para Mafra
Cantar
cantochão
Sonso, disforme, indeciso, sujo, inexpressivo,
irresoluto, avarento, ridículo. Isto é apenas parte da coleção de adjetivos que
os cronistas da realeza, do início do século XIX até hoje, atribuíram a D. João
VI, rei de Portugal durante um dos mais conturbados períodos de sua existência.
E acabaram por eternizar a imagem de um homem inseguro, deselegante, avesso à
higiene, sempre a roer coxinhas de frango, com ar pasmado a protelar decisões e
a recusar as responsabilidades do cargo.
Eu discordo. Senão, vejamos.
Nascido e criado para não ser rei, o infante João
foi educado à sombra de seu irmão mais velho, José, este sim primogênito e
apetrechado para o trono desde a tenra idade. Mas, numa sina com ares de
maldição, que acometeu a maioria das sucessões palacianas desde a baixa Idade
Média, o primogênito morreu em 1788, aos 27 anos, justamente na hora em que a
decadência psicológica da Rainha já afetava a rotina do poder. João tinha 21 e,
há três anos, casara-se por imposição dos arranjos políticos da época com a
filha do futuro Rei Carlos V de Espanha, uma menina irascível chamada Carlota
Joaquina. Sem sequer ter tempo para preparar-se, viu-se arrastado
inexoravelmente para o centro de um turbilhão de forças que açoitava como um
vendaval os destinos de seu país e de toda a Europa. Em 1792, foi declarada a
incapacidade de D. Maria. João herdava o comando. Se repararmos bem na data,
esse foi o ano de um dos mais determinantes acontecimentos da História moderna:
a Revolução Francesa.
As ondas de choque causadas pelo esfacelamento da
monarquia na França reverberaram pelo continente europeu, fazendo tremer os
alicerces do absolutismo, liberando forças reacionárias e semeando o medo em
todas as casas reais. Evidentemente, Portugal não poderia ficar imune à
agitação que se seguiu. Nos anos seguintes, até 1799, quando foi proclamado
Príncipe Regente, D. João teve de enfrentar poderosas dissensões internas,
administrar as pressões externas e, principalmente, enfrentar o ânimo
conspiratório de sua mulher, que sonhava com a hegemonia espanhola sobre toda a
península ibérica.
No mesmo ano em que virou Regente, Napoleão assumiu
o poder em França. O alinhamento histórico de Portugal com a Inglaterra colocou-o
em rota de colisão com as ambições bonapartistas de dominação. A disputa entre
franceses e ingleses agia sobre D. João e o seu país como as paredes de um
torno, apertando-o entre as cruéis alternativas de ser invadido ou dever caros
favores. Os Tratados de Tilsit e Fontainbleau, impostos pela França em 1805 a
uma Europa vencida pelas armas, selou o destino da nação portuguesa. Mesmo
assim, o Príncipe Regente procurava ganhar tempo, ora aparentando concordar com
o apoio inglês, ora indicando que entregaria a coroa ao invasor. Indeciso? Bem,
quem não seria? Era do futuro do Reino que se tratava e a decisão final era
sua. Para piorar as coisas, ainda se viu a braços com uma conjura palaciana
para apeá-lo do poder, urdida por ninguém menos que D. Carlota Joaquina.
Em novembro de 1807, não há mais tempo para contemporizações.
Junot está na fronteira, a horas de marcha de Lisboa. Para cem por cento dos
historiadores, aí D. João fugiu para o Brasil.
Fugiu? Peraí. Naquele
novembro, 15.000 pessoas (deixem-me repetir o número por extenso: quinze mil pessoas) entre a família
real, membros da corte, a nobreza, o clero, famílias inteiras de fidalgos,
comandantes militares, escrivães, notários, empregados de toda a sorte
atravessaram o oceano. E, junto com elas, o tesouro real, grande parte da
biblioteca e da pinacoteca régias e da documentação de Estado. Pensem um pouco
na logística envolvida, no plano organizacional de uma empreitada deste
calibre. Não estamos falando de um Rei que botou o chapéu na cabeça e embarcou
no primeiro bote que encontrou. Estamos falando, sim, da transferência de uma corte inteira para o outro lado do mundo, num
tempo em que travessias oceânicas eram mais perigosas que uma viagem espacial. Um
fato inesperado, incomensurável, inédito. E uma espetacular jogada política.
Com a mudança do cetro para a América, D. João
ludibriava Napoleão. O que Junot encontrou, ao chegar à capital abandonada,
foram algumas caixas largadas à beira do cais. A posse da coroa, que
significaria o mando sobre o império português de além-mar, escapara-lhe.
A vida da corte nos trópicos já foi motivo de
centenas de livros, peças, estudos, pesquisas e piadas. Faz tanto parte do folclore
brasileiro como as lendas indígenas e os cancioneiros regionais e é, até hoje,
mote inspirador de muito samba-enredo. Primeiro rei absolutista da História a
pisar numa colônia, D. João foi recebido como um deus. O que se esperava era
que, vencido o inimigo francês, retornasse ele célere para a Europa,
reafirmando a submissão do Brasil e fechando o capítulo como uma digressão
temporária e apenas conveniente. Todos sabemos que não foi o caso. Sua
prolongada permanência, alargada por muitos anos após a derrocada de Bonaparte,
marcou o início do processo de emancipação do futuro país. O rei português
apaixonou-se pelo novo mundo e tratou de dar a uma preguiçosa aldeia à beira
mar os alicerces que transformariam o Rio numa metrópole, sede de um Império e
o Brasil numa pátria em gestação.
Foi só quando os acontecimentos em Portugal o
exigiram que partiu. Com uma percepção rara para um monarca europeu, intuiu que
aqueles alicerces haviam disparado um processo irrefreável de independência.
Outro qualquer teria tentado sufocar o anseio, convocado tropas, prendido os
líderes, iniciado uma guerra. Ele não. Num exemplo magnífico de clarividência,
resolveu cooptar a iniciativa, instruindo Pedro, seu primogênito, a tomar a
frente do movimento. Podem olhar seus livros de História. Não há, em todo o
mundo, outro caso em que a independência de uma colônia tenha sido feita pelo
filho do rei do poder colonizador com a total concordância deste.
A mesma clarividência exibiu ao voltar para
Portugal, logo entendendo que o absolutismo estava com os dias contados e
assinando a Constituição Liberal. E isto acabaria por lhe custar a paz que
sempre almejava e a vida. A mulher e o filho Miguel (paternidade, aliás, sob
disputa) usariam de todos os meios, desde intrigas até insurreições armadas,
para depô-lo. Ele resistiu. Até março de 1826, quando, após alguns dias passando
mal, morreu no Paço da Bemposta, em Lisboa. Recentemente, análises em suas vísceras
confirmaram que foi envenenado por cavalares doses de arsênico. Não há provas,
mas todas as suspeitas recaíram sobre Carlota Joaquina.
“Foi o único que me pregou uma peça”. Esta frase foi
dita por Napoleão, em seu exílio final em Santa Helena, sobre D. João VI. Vindo
de quem veio, é um forte argumento para passarmos a olhar este rei, a quem
muitos chamaram de “desgraçado”, sob outra luz.
Oswaldo
Pereira
Fevereiro
2013
Adorei relêr estes episódios da nossa história, tão bem sintetizados neste post.
ResponderExcluirObrigadinho Oswaldo.
Abraço,
Vasco
Muito bom!!! :)Impressionante a concisão. Tomara que abra um pouco os horizontes de alguns e que se desfaça parte desta imagem simplória e injusta do Rei. e BTW, é o nome da rua em que moro :)
ResponderExcluirMui lindo!
ResponderExcluirNada menos que sensacional a verdade histórica...
ResponderExcluirWilson.
Oswaldo,
ResponderExcluirNosso livros de História precisam ser refeitos, o que você relata eu sabia , em parte, pois não tinha conhecimento da "malvadez da Carlota Joaquina.
Quanto a D.Pedro I também tenho conhecimento do muito que ele fez, e em uma época muito difícil.
Estudos agora encontraram a prova, nos restos mortais da Imperatriz, e certeza que D. Pedro não a maltratava, como diz a história contada, que ela faleceu por maus tratos do Imperador que empurrando-a quebrou sua perna. Entretanto ela foi encontrada intacta, nada de perna quebrada, e asim caminha nossa história.
Os restos mortais dos dois estão no monumento em S.Paulo.
Parabéns, vou enviar para amigos.
Abraço,
Cleusa.
Oswaldo
ResponderExcluirMuito obrigado pela aula de História, um resumo perfeito. Foi o José Carlpos Ferraio, nosso amigo comum que me passou. Sempre discordei da história distorcida que nos era passada. Nunca achei que ele tivesse fugido do Napoleão, e sempre achei que ele foi um estadista, pelo golpe de mestre que deu em Napoleão, com a transferência da Côrte para o Brasil, e pelo que ele fez aqui, que o pessoal esquec, e pela orientação ao seu filho. Mais uma vez muito obrigado pelo texto claro e conciso
Essa é mais uma prova que nossa história precisa ser revista e recontada.
ResponderExcluirRevista, recontada e ensinada como deve ser...
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