quinta-feira, 27 de outubro de 2016

SÃO MARTINHO?



Era suposto ser uma noite de Outono.  Um ventinho já resvalando para uma nortada prematura, sugerindo um casaquinho de lã, alguns pingos de chuva fria, lágrimas de água deslizando no vidro das janelas hermeticamente fechadas, talvez até o aconchego de um aquecedor elétrico ressuscitado após os meses do verão.

Assim costuma ser. Este são os sinais que aparecem por aqui, nestes arredores de Lisboa onde vivo, toda vez que o ano se aproxima do final de outubro. Dois meses para o Natal. É a hora da Natureza começar a cantar suas canções nevoentas, a trazer o cinzento para sua paleta de cores, a pedir passos apressados em calçadas molhadas.

Qual o que. Nove horas da noite e vinte e oito graus (centígrados, naturalmente) no meu termômetro digital da varanda. Para o fim de semana, previsão de trinta. Como assim?!

Os portugueses mais velhos (engraçado eu escrever isto, os mais velhos, aos meus 76 anos...) avançam logo a versão de sua sabedoria: É o verão de São Martinho!

Martinho de Tours, soldado de cavalaria no exército romano, nascido na Panônia no século IV, jamais adivinharia que seu nome seria um dia associado a fenômenos meteorológicos. Mas Martinho foi um homem excepcional. Convertido ao Catolicismo, abandonou a vida militar, tornou-se um dos maiores evangelizadores da Igreja, catequizando a Gália Romana, e fundou uma comunidade de monges.

Porém, foi um acontecimento trivial ocorrido enquanto ainda era um legionário, transformado em lenda na transmissão oral dos cancioneiros da época, que catapultou seu nome para o panteão da sabedoria popular. Dizem que, atravessando os Alpes, vindo da Itália para assumir um posto militar da França, deparou-se com um mendigo que desfalecia de fome e tiritava de frio. Não tendo comida para oferecer, despiu-se de sua capa escarlate e, dividindo-a em dois com a espada, deu metade dela ao infeliz.  A seguir, o mau tempo abrandou e um sol fulgurante e tépido aqueceu a todos.

Martinho morreu aos 81 anos em 397. Foi sepultado em Tours, diocese de que era bispo, a 11 de novembro. O dia ganhou seu nome. E a crença de que, com a sua proximidade, opera-se a mágica de um outono que se veste de verão.

Um meteorologista de plantão irá certamente tirá-lo do devaneio da lenda e explicar que, no começo de novembro, o Anticiclone dos Açores ainda trabalha como se verão fosse e, somado ao ar quente que continua revolvendo as areias do Norte da África, traz para o Portugal Continental este calorzinho gostoso enquanto o resto da Europa já se contorce em ventos gélidos.

Você pode escolher em quem acreditar, mas, este ano, o fenômeno veio mais cedo. E mais forte. Aí, a turma do Apocalipse desautoriza São Martinho e os homens do tempo e invoca o mantra do aquecimento global.

Quero lá saber. Vou mais é aproveitando estas manhãs claras, esta brisa morna, estes poentes deslumbrantes, dádivas únicas desta terra benfazeja.

Oswaldo Pereira
Outubro 2016



14 comentários:

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    1. Que bom, querida maestrina, de ter você comentando no meu modesto blog!

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    1. Gracias. E que São Martinho continue nos protegendo "con su manto..."

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  3. Além da lenda de São Martinho que eu não conhecia e só veio a acrescentar aos meus conhecimentos,(eu tinha um avô paterno português de nome Ayres Martinho devia ser em sua homenagem) achei o texto muito poético. Você está cada vez mais se superando.bjs Zezé

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    1. Obrigadíssimo, Zezé. O nome de seu avô deve mesmo sr uma homenagem ao santo, muito venerado aqui em Portugal. Sua festa, em 11 de novembro, é um acontecimento marcante no calendário português. É a época das castanhas e da "água-pé", uma deliciosa bebida preparada com os bagaços restantes da prensa da uva.

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  4. Muito bonita a lenda de S. Martinho ! Além do quentinho, tem também as boas castanhas assadas!

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  5. Impressiona como os antigos dos primeiros séculos caminhavam e caminhavam atravessando montanhas muitas vezes geladas e viviam, como São Martinho , mais de 80 anos!E, viviam pregando a fé e ajudando a todos que precisavam. E, com saúde .
    Bela a vida de São Martinho .

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    1. O ar era limpo, a comida natural e o exercício da caminhada diário...

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  6. Olá Oswaldo.
    Essas terrinhas portuguesas sempre tem algo de bom para curtir. A questão de Saõ Martinho, como muitos outros acontecimentos bons,eram sempre atribuídos aos santos.como forma da Igreja na época ir inculcando e consolidando a fé nos fiéis.
    Se torna uma tradição e faz parte da cultura do povo.
    Na Bolivia católica como conservadora da tradição espanhola, pediámos a San Izidro o lavrador "ruega a Dios que salga el sol" . y as vezes saia as vezes não mesmo assim a tradição continua.
    E nos continuamos nos deliciando das suas palavras escritas.
    Abraços
    Emilio

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    1. A sabedoria do povo, seus ditos, adágios e provérbios, foi-se acumulando ao longo dos séculos. É um saber sólido, baseado na observação contínua da Natureza. Como tudo também girava em torno da Religião, houve uma feliz simbiose. Obrigadíssimo pelos teus comentários.

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