quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

2021: UMA RETROSPECTIVA (?!)



A interrogação faz sentido. Retrospectiva? 2021 não merece. Êta ano chocho...

Poderia até ter sido o ano da Esperança, passar à História como o paladino da salvação, o ano da Vacina, a vitória final sobre o COVID. Esperava-se que o negror da Pandemia, o monstro que assombrou 2020 e marcou-o para sempre, se esfumasse depois das picadelas em todo o planeta. Qual o que...

O bichinho continua aí, ganhando apelidos gregos e driblando as imunizações, os cuidados, os lockdowns e os distanciamentos. Tudo indica que, como seu primo H1N1, não irá embora, ficará por aí nos assombrando, uma chatice crônica e incômoda. Estamos terminando o ano ainda às voltas com restrições, máscaras, dúvidas, terceiras doses e discussões sobre o passaporte sanitário.

Por isto, e por tudo o mais, este ano não aconteceu. E, no pouco que nos trouxe, foi dissimulado, evasivo e inconcludente.

A começar pela Política. Joe Biden não podia ser mais parecido com ele. Com um carisma de ameba desidratada, caiu como uma luva neste ano amorfo. E ainda carrega uma sombra imprevisível nas costas. Como dizem por lá, Kamala Harris is one heartbeat away (está a uma batida de coração) da presidência.

JOE BIDEN
Aqui, a polarização acirrou. Com Lula na liça, o confronto entre ele e Bolsonaro já inflama corações e mentes. Apesar de da mídia enraivecida e das CPI’s estapafúrdias, o Capitão ainda inspira o fervor dos mitos. A Terceira Via não está empolgando e conversas de bar e amizades estraçalham-se num debate virulento.

PRÉ-CANDIDATOS
Nos esportes, tivemos uma retomada da bola rolando, mas uma Olimpíada de estádios vazios. E, seguindo a linha de incompatibilidades políticas, já se apregoa um boicote aos Jogos de Inverno.

Nas artes, uma cerimônia de Oscars simplesmente desastrosa aconteceu num ambiente que mais parecia uma sessão de bingo para aposentados. Nomadland, o vencedor, é um filme sobre solidão. Nada mais emblemático. E foram embora queridas figuras, como Christopher Plummer e Sean Connery, lá fora, e Tarcísio Meira, Paulo Gustavo e Eva Wilma, aqui em Pindorama.

Foi-se também Phillip, o príncipe-modelo.  Angela Merkel terminou seu reinado. Erupções, tornados e aluviões somaram-se aos percalços da pandemia. Até a Web deu um soluço e o curto apagão nos mostrou o tamanho da nossa dependência.

Enfim, um ano que passou na sombra sinistra de seu antecessor. E que deixa em seu rastro uma Humanidade cansada e, em bom Português, de saco cheio.

Em algarismos romanos, o ano que vai nascer daqui a algumas horas escreve-se MMXXII. Tudo em dobro, como na visão do bêbado. Só espero que não seja repetitivo.  

UM FELIZ ANO NOVO PARA TODOS!

Oswaldo  Pereira

Dezembro 2021

domingo, 26 de dezembro de 2021

BOND 60: DR. NO (PARTE II)

 


A imagem da pescadora de conchas Honey Ryder, saindo das águas do Caribe com seu biquini branco e uma faca na cintura, marcaria para sempre, não só a filmografia de James Bond, como também a própria história cinematográfica da década de 1960. A cena seria repetida pelos anos afora, toda vez que alguém se predispusesse a oferecer uma resenha do cinema do século XX.

Depois do encontro nas areias de Crab Key, Bond, a garota e Quarrel escapam da perseguição inicial dos guardas de Dr. No, através dos rios e pântanos da ilha, mas acabam sendo confrontados com um dragão mecânico e armado com metralhadoras e lança-chamas.  Quarrel morre na refrega; Ryder e Bond são aprisionados e, após passarem por uma minuciosa descontaminação, drogados e paparicados, são levados à presença do vilão.

Após um sofisticado jantar, em um não menos sofisticado salão, durante o qual Dr. No procura em vão aliciar Bond para a sua organização criminosa, os convidados são aprisionados.

Bond, é claro, escapa da cela e, por um tortuoso sistema de dutos, consegue chegar à estação de controle, onde No se prepara para interferir no lançamento de um veículo espacial americano. Utilizando uma indetectável técnica chamada toppling, o propósito é fazer com que os russos levem a culpa e provocar um conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética, que é o master plan da SPECTRE.

Bond consegue abortar a ação de No manipulando os instrumentos da estação e expondo um reator nuclear, o que dispara uma sequência de destruição que vai explodir todo o complexo de Crab Key. Não sem antes provocar a morte de seu inimigo numa luta final e libertar Honey Ryder. Os dois são encontrados horas mais tarde por Felix Leiter balouçando languidamente numa canoa ao sabor das ondas caribenhas. THE END.

 

O filme, apesar de seu diminuto orçamento (custou pouco menos de US$1 milhão – só para comparação, Cleopatra, produzido na mesma época, custou US$44 milhões), acabou por definir muitas das características que se tornariam permanentes na série e, principalmente, entronizar muitos dos atores nos papéis principais.

BERNARD LEE (M)







Bernard Lee, por exemplo, como M, o sisudo chefe do MI6, participaria de 10 filmes. Lois Maxwell, a inesquecível Moneypenny (fora inicialmente escolhida para o papel de Sylvia Trench, mas recusou por acha-lo sensual demais), continuaria por 14.

LOIS  MAXWELL (MONEYPENNY)


Alguns perderam o bonde, e decidiram abandonar seu personagem após Dr. No. Jack Lord (Felix Leiter) e Peter Burton (Major Boothroyd ou Q) não apareceriam nas próximas produções.

As figuras femininas, entretanto, foram um capítulo à parte. Pode-se dizer que o termo Bond girl nasceu no instante em que Ursula Andress, uma atriz suíça de 26 anos, emergiu do mar. Uma escolha de última hora (feita a partir do momento em que os produtores viram uma foto sua tirada pelo marido, o ator John Derek), Andress teve sua voz dublada no filme, dado o seu forte sotaque alemão.

Os ingredientes para o futuro estavam todos ali. E algumas notáveis coincidências. Dr. No estreou no London Pavillion em 5 de outubro de 1962. Costumo dizer que um raio cósmico deve ter cruzado os céus de Londres pois, no mesmo dia 5, era lançado, nas lojas de discos londrinas, o compacto de estreia de um novo conjunto, com P.S. I Love You de um lado e Love Me Do do outro. Eram os Beatles.

Onze dias depois, começava a Crise dos Mísseis Cubanos. Nem a SPECTRE poderia ter imaginado um cenário daqueles. A Guerra Fria esquentava. Nunca antes e, felizmente, nem depois, o mundo esteve tão próximo de uma guerra nuclear. A realidade copiava a ficção. E a ficção ganhava seu espaço. Até hoje, a bilheteria de Dr. No retornou 60 vezes o custo da produção. E contando....

(continua)

Oswaldo Pereira
Dezembro 2021

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

NATAL 2021




Um grande Natal para todos. E, em vez do tradicional conto, desta vez vai uma mini-peça.

Em algum canto do universo, há um clube onde os vírus importantes costumam se reunir. Lá, agora, estão apenas o H1N1 e o SARS-COVID

H1N1
Então, cara, não vai dar uma trégua?

SARS-COVID
Quem, eu?

H1N1
Só estamos nós dois aqui...

Uma pausa

SARS-COVID
Por que, você vai?

H1N1
Ué, quem sabe. Afinal, acho que eles merecem. Têm sofrido prá caramba, distanciamento social, lockdowns, máscaras o tempo todo... Acho que você devia... É Natal, poxa...

SARS-COVID
Olha quem fala. Não me consta que você teve esta consideração toda no seu tempo. Não deu a mínima para datas e efemérides, matou a valer no Natal, na passagem do ano...

H1N1
Ora, isto foi há mais de cem anos. Na época em que eu me chamava Espanhola. Já passou muito temp...

SARS-COVID
É, mas depois você mudou de nome e atacou de novo. Asiática... Como você consegue tanta mutação? Tenho até inveja...

H1N1
É, mas acabaram me neutralizando. Eu me mudo, e logo eles aparecem com uma vacina. Não meto mais medo a ninguém, nem aos velhinhos. Me tiram de letra. Já com você...

SARS-COVID (enchendo o peito com orgulho)
Pois é. Comigo o buraco é mais embaixo. E não adianta me darem nomes gregos. Não vão me pegar.

H1N1
Não se esqueça que todos os grandes laboratórios do mundo estão desenvolvendo vacinas a toque de caixa. Tem para todos os gostos. E pior. Contam com a ajudinha da OMS, dos Governos, da mídia...

SARS-COVID
São uns diletantes. E é tudo experimental. Não têm ideia do que estão fazendo. A OMS não sabe o que está falando. Resumindo, ninguém sabe droga nenhuma. E podem ir preparando outro alfabeto, para quando os alfas e betas acabarem. Que tal o sânscrito, ou o cirílico?...

H1N1
Cara, não seja assim... Que raiva da humanidade é essa? Por que não aceitar uma relação de respeito mútuo, como eu consegui. Apareço todos os anos, provoco um surto aqui, outro ali, todo mundo toma mais uma dose da vacina contra a gripe, os laboratórios ganham seu dinheiro e fica todo mundo feliz...

SARS-COVID
Não é tão simples assim. Não conte para ninguém, mas é que há interesses por trás disto tudo. Tem muita gente graúda que está lucrando zilhões comigo, além de alguns projetos de poder em andamento.

H1N1
Ora, caro SARS. Não me diga que você ainda crê em toda essa teoria da conspiração. Isto é balela para você se sentir mais importante. E, mesmo que fosse, não acha degradante se sentir usado? Pula fora desta ciranda política. Dá uma modulada nas suas atividades. Deixa a turma curtir o fim do ano em paz. Em 2022, você volta lá pelo verão europeu, joga uma quinta onda maneira, o pessoal leva mais uma picadinha e continua nas praias.

SARS-COVID
Sei não, H1N1. Talvez você tenha razão. Afinal, é bem mais velho que eu. Deve saber das coisas. Vou pensar...

E, enquanto ele pensa, vamos aproveitar o nosso Natal com muita Paz, Amor e, esperemos, muita Saúde.

FELIZ NATAL

Oswaldo Pereira
Natal de 2021

 

Obs.

Se você quiser curtir os meus escritos dos Natais passados, é só clicar no ano correspondente.


segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

BOND 60: DR. NO (PARTE I)







“Um bebop com uma vibração swing, acoplada a um solo perverso, sinistro e distorcido de uma guitarra elétrica....”. Assim descrevia o compositor David Arnold a composição que Monty Norton acabara de produzir. E aduzia que era perfeita para emoldurar a personalidade arrogante, presunçosa, confiante, perigosa, insinuante, sexy e incontrolável do personagem a que a peça musical iria servir de introdução.

Norton a compusera em apenas dez minutos. E, servindo de fundo à primeira gun barrel scene (a cena do cano do revólver) da série, a melodia eternizar-se-ia como o “Tema de James Bond”, os acordes que iriam, onde quer que tocados pelas próximas décadas, acoplar-se indelevelmente à figura do mais famoso agente secreto de todos os tempos.

E é assim que começa Dr. No. A seguir, a sequência dos créditos iniciais, talvez datada para os olhos de hoje, tornou-se um marco para a época. O trabalho de Maurice Binder iria servir de parâmetro e inspiração para uma dinastia de programadores visuais da década que se iniciava.

O roteiro do filme era baseado no sexto livro de Ian Fleming sobre seu herói, escrito em 1958. Os roteiristas, Johanna Harwood e Berkely Mather, procuraram seguir o plot básico de Fleming, mas muita coisa teve de ser adaptada, não só em função do limitadíssimo orçamento, como também devido ao panorama internacional. Estávamos em plena Guerra Fria e identificar os russos como inimigos era um ponto sensível. Assim, Harwood e Mather resolveram antecipar o aparecimento da temível organização terrorista SPECTRE, coisa que só aconteceria no livro Thunderball, escrito em 1961, e livrar a cara dos soviéticos como responsáveis pelas forças do mal.

FLEMING E CONNERY

Além disso, alguns preciosos detalhes da persona de Bond acabariam por ser introduzidos por Terence Young, o diretor escolhido pelos produtores Harry Saltzman e Albert Broccoli. Young era um bon vivant.  Conhecia bem seus vinhos, seus cigarros, seu guarda-roupa apurado e o refinado estilo de vida do jet-set internacional. Assim, ele acabou por instilar na imagem de Bond muito da natural sofisticação que iria marcar o comportamento de 007 nas produções seguintes.

TERENCE YOUNG & SEAN CONNERY








O filme começa com o assassinato de John Strangways, chefe de operações do MI6 na Jamaica, o que determinará a ida de James Bond para Kingston. A convocação do agente por um funcionário da agência de espionagem britânica no Le Cercle de Londres tornou-se uma das cenas mais icônicas de sua época. Bond está numa mesa de chemin de fer, uma variante do jogo baccarat. Sua “adversária” é uma socialite chamada Sylvia Trench, que está a fim de apanhá-lo, não apenas nas cartas. No início, só as mãos de Sean Connery aparecem, manuseando o dispensador de cartas e uma cigarreira de prata. É somente quando Trench pergunta seu nome que o rosto surge. E aí, Bond... James Bond, uma das mais famosas falas cinematográficas de sempre (em 2001, foi eleita  the best-loved one-liner in cinema, a mais amada frase curta do cinema) acontece, sublinhada em surdina por alguns andamentos do James Bond ThemeSe quiser rever a cena, clique neste  LINK.

O enredo prossegue com Bond encontrando-se com Felix Leiter, agente da CIA americana e envolvendo-se cada vez mais no mistério que cerca Crab Key, uma ilha ocupada pelo vilão Dr. No. Nesse percurso, ele conscientemente enfrenta uma armadilha preparada por um assecla de No, o geólogo Professor Dent. A eliminação de Dent, já sem balas em seu revólver, por Bond causou um verdadeiro frisson. Era a primeira vez que um representante do Bem matava um inimigo a sangue frio e sem ser em legítima defesa.

A essa altura, Bond já contabilizara aventuras amorosas com a própria Sylvia Trench e com Miss Taro, uma secretária cúmplice de Dent. Nada comparável, entretanto, com o que viria a seguir. Depois de passar uma noite dormindo nas areias de Crab Key, para onde ele navegara durante a noite acompanhado de Quarrel, um pescador arregimentado pela CIA, Bond é acordado por uma cantarolante voz feminina. Iria ter início uma aparição que ajudaria a perpetuar o cinema dos anos 1960.

(continua)

Oswaldo Pereira

Dezembro 2021

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

ÔMICRON


Não era para ser Ômicron.  Aliás, no início, as variantes do coronavírus eram identificadas por letras e números. O Sars-CoV- 2, o primeiro a ser catalogado em Wuhan, nos idos de 2019, foi batizado com a letra A. 

Com a rápida profusão, entretanto, de mutações do famigerado bichinho, números começaram a ser acoplados ao alfabeto, procurando estabelecer uma referência que indicasse a sua procedência, sua cepa e sua linhagem.

Logo, o sequencial iniciado por A.1, A.2 e assim por diante foi acumulando uma sopa de letras e números que incluíam B.1.2, C.30.1, criando uma enorme confusão nos órgãos responsáveis pelo controle da pandemia, na imprensa especializada e no público em geral.

O jeito foi lembrar do velho alfabeto grego. Alfa, beta, gama e família sempre foram os tradicionais aliados da ciência nas suas classificações e na sua nomenclatura.

Assim, o tenebroso vírus passou a ter seu sobrenome helênico o que, se não diminuía o incômodo de sua presença entre nós, pelo menos lhe emprestava uma certa respeitabilidade. Os delta, por exemplo, tiveram midiática exposição e tornaram-se celebridades perigosas.

Mas, alguma coisa aconteceu no caminho. Quando se esperava que, após o citado delta, viessem o épsilon e o zeta, as variantes descobertas a seguir no Peru e na Colômbia foram inexplicavelmente nomeadas como lambda (11ª letra do alfabeto grego) e mu (a 12ª). Por que? Ninguém sabe.

E aí aconteceu algo ainda mais inusitado. Tendo como irreversível a pulada de ordem praticada, a letra seguinte, quando surgisse mais uma mutação, seria nu (também conhecida como ni). Só que a proximidade de sua pronúncia, principalmente nos países de língua inglesa, com a palavra new poderia provocar ainda mais balbúrdia no já conturbado universo de denominações. 

Pulando mais essa, a próxima na lista seria xi. Mas, como Xi é o sobrenome mais usado na China, achou-se que seria politicamente incorreto, e insultuoso com a maioria dos chineses, ter um coronavírus mutante com o seu nome.

Tentando dormir com um barulho destes, a comunidade científica da OMS partiu para a escolha do ômicron. Coitado, acabou vendo-se odiado mundo afora, logo ele que achava que nunca seria chamado.

Para mim, o que realmente interessa é chegarmos logo à variante Õmega, a letra final, o adeus definitivo desta chatice. E que possamos ouvir a letras gregas apenas como referência cultural, vê-las em pórticos e colunas de uma paradisíaca ilha do mar Egeu ou das planícies do Peloponeso.

Oswaldo Pereira

Dezembro 2021

terça-feira, 30 de novembro de 2021

PASSEIO NO PASSADO

 




O passado, para quem tem mais de 80 anos, é enorme. À medida que o futuro mingua, os anos se acumulam para trás, com todas as lembranças que, com sorte, conseguimos reter. E nos praz acariciar, no tempo que parece infindável neste dia-a-dia que escorre lânguido (já diziam que, na velhice, os dias passam devagar e os anos voando...), algumas memórias, estórias e momentos vividos.

Às vezes, alguns acontecimentos servem para reaviva-los, retira-los dos baús em que dormem nos sótãos de nossos neurônios, e espana-los. Quando isto acontece, o brilho original de alguma imagem ou de alguma sensação, há muito coberta pela poeira do abandono, renasce colorido e vibrante, quase novinho em folha.

Foi o que ocorreu há dias comigo. Como muitos de vocês já sabem, sou um inveterado leitor. Tenho sempre um livro a ler e, nos raros períodos de entressafra literária, sinto as melancolias da privação, como qualquer viciado afastado de seu vício. Pedindo perdão pela “americanada”, considero-me um juramentado bookaddict.

Assim, nunca passo por uma livraria impunemente. Um poderoso magneto me empurra para dentro, e ali sou capaz de passar largos momentos, a olhar as capas, a manusear as páginas, a sorver com volúpia as promessas dos textos e de suas revelações. E foi numa dessas que me deparei com um livro de Arsène Lupin.

Para os menores de 70 anos, talvez a única referência trazida pelo nome seja a série Lupin, lançada pela Netflix no ano passado. Mas, para os maiores...

Arsène Lupin foi uma criação do escritor francês Maurice Leblanc. Sua primeira aventura (A Detenção de Arsène Lupin) foi publicada na forma conto pela revista Je Sais Tout (o correspondente almanaque brasileiro Eu Sei Tudo foi um ícone de sua época), em julho de 1905. Daí até sua morte em 1941, Leblanc escreveria 18 romances, 39 novelas e 5 peças de teatro sobre o seu personagem.

A coleção dos livros de Maurice Leblanc foi devorada pelos adolescentes do meu tempo. Lupin era o arquétipo do gentleman cabrioleur, o ladrão cavalheiro, e sua insuperável capacidade para disfarces, sua superior inteligência e sagacidade e sua aptidão para resolver enigmas, praticar roubos espetaculares e fazer os delegados da Sûreté, a polícia francesa, de idiotas nos traziam em aguçado deleite.

Em tempo: dizem que Leblanc criou Lupin para espicaçar os ingleses, dentro da velha rivalidade gálico-saxã, que tinham como herói Sherlock Holmes. Um de seus livros, inclusive, trata de um confronto direto entre o ladrão francês e o detetive britânico. O título, dada reação irada de Sir Arthur Conan Doyle ao ver o nome de sua criação usado pelo rival, foi mudado por Leblanc para “Arsène Lupin contra Herlock Sholmes”...

O livro com que me deparei, e que me abriu um portal para o passado, foi La Barre-y-Va, um dos últimos escritos por Maurice Leblanc. Lê-lo foi como voltar a passear pelos caminhos em que trilhei, deslumbrado e aventureiro, os meus anos da adolescência.

Oswaldo Pereira

Novembro 2021

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

BOND 60: À PROCURA DE BOND

 


Tudo ou Nada.

Este foi o nome dado (Everything Or Nothing - EON) por dois pequenos produtores cinematográficos, em 1961, à empresa que haviam acabado de formar. Tanto o canadense Harry Saltzman como o americano Albert Broccoli tinham uma ideia comum – adquirir os direitos de filmagem dos livros do inglês Ian Fleming, cujo sucesso como autor fora catapultado às estrelas após a revista LIFE ter revelado From Russia With Love como uma das preferências literárias de John Kennedy.

Apesar da imediata e imensa publicidade em torno da obra de Fleming e da elevação de seus thrillers à categoria de best-sellers, a iniciativa de leva-los às telas ainda era considerada uma hipótese arriscada. E não seria a primeira. Em outubro de 1954, a rede televisiva americana CBS havia inserido, em seu programa semanal Climax!, um capítulo com a versão para a telinha de Casino Royale. O curta, com Barry Nelson no papel de Bond e Peter Lorre como Le Chiffre, não suscitou muita agitação e, visto com os olhos de hoje, é simplesmente caricato.

Quem quiser dar uma conferida, é só clicar neste LINK

Mas, a recém criada EON Productions Ltd, fazendo jus a seu nome, estava decidida a apostar. Com os direitos finalmente adquiridos, o que tinham de resolver era qual dos títulos de Fleming iria primeiro para os cinemas. Como Casino Royale, o livro inicial da lista, já fizera sua aparição na TV, Dr No foi o escolhido, por ter uma trama instigante e, em princípio, ser mais fácil e menos dispendioso para filmar. Tudo estava pronto para dar início à mais longeva e financeiramente exitosa franquia cinematográfica de todos os tempos. E a criação de um dos dois ícones britânicos que iriam marcar a segunda metade do século XX. O outro seriam os Beatles.

Faltava agora encontrar Bond.

O favorito de Harry Saltzman para o papel era o ator britânico Cary Grant. Havia, entretanto, dois impedimentos. Grant só se comprometia com um filme; e Fleming, caracteristicamente participando ativamente da escolha, era contra. Grant era Grant em todos os filmes que fazia e o escritor queria alguém que não eclipsasse o personagem. E ele já tinha definido com precisão o tipo físico de seu herói: esguio, olhos azuis acinzentados, cabelos curtos e negros, uma boca “cruel” até ao detalhe de uma cicatriz de 7,6 cm em sua face direita. Admitindo posteriormente que compusera Bond a partir de um amálgama de todos os agentes secretos e comandos que conhecera durante a Segunda Guerra Mundial, Fleming até desenhara o seu rosto para servir de guia à procura. Além disso, em alguns trechos de seus livros, Bond era fisicamente comparado a Hoagy Carmichael, um famoso compositor americano (só para referência, Carmichael foi um dos compositores de “Stardust”, um dos grandes sucessos da década de 1940).

JAMES BOND: DESENHO DE IAN FLEMING





HOAGY CARMICHAEL

Broccoli, Saltzman e Fleming chegaram até a promover um concurso. O vencedor foi um modelo de 28 anos, chamado Peter Anthony. Infelizmente, Anthony não tinha jeito para representar. Continuaram a procura até convidarem um ator com experiência de teatro e cinema, mas pouco conhecido. Em 1962, o escocês Thomas Sean Connery fizera teatro e papéis subalternos no cinema, como por exemplo, o de um soldado trapalhão em The Longest Day (O Dia Mais Longo).

Connery compareceu à entrevista vestido com desalinho e com a barba por fazer, tipo seja o que Deus quiser. Mas acertou em cheio no tipo macho que estava na cabeça dos entrevistadores. Ao vê-lo caminhar para o seu carro, ao final do encontro, Saltzman comentou: look how he moves (veja como ele se move).  Os outros dois concordaram.

Pronto. Haviam encontrado Bond.

(continua)

Oswaldo Pereira

Novembro 2021

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

NOVO LIVRO



Neste livro, há contos de vários tamanhos. Uns são íntimos, outros expansivos. Há aqueles para serem lidos em voz baixa, à luz de um abajur mortiço num dia cinzento. Há os que exigem uma janela aberta para um poente sinfônico como cenário de fundo. Alguns falam do passado; alguns imaginam um futuro.

Cotidiano, esperança, descoberta, história, amor e saudade são temas que os povoam. Há até os que viraram peças de teatro. Um exemplo de imaginação à solta, que certamente irá divertir e provocar o leitor.

Este é o texto que ocupa a contracapa do meu novo livro “O POVOADOR E OUTROS CONTOS”, lançado agora pela Editora Autografia.

O livro é uma coletânea de vários contos que fui escrevendo ao longo do tempo e que chegaram a ser esparsamente divulgados por e-mail, numa prisca era anterior ao advento do Facebook e do WhatsApp.

Apreciaria imensamente que o conhecessem e o divulgassem. Meus personagens torcem por isso. Afinal, eles só viverão se forem lidos e corporificados na mente do leitor. E, se eles assim viverem, gratificado ficarei eu por tê-los criado.

Como dica final de marketing, o Natal se aproxima e, para muitos, um livro é uma companhia querida e um presente gentil.

Estes são os links para compra. É só clicar em cima.

Editora Autografia

Em breve, o livro estará também na FNAC.

 

Oswaldo Pereira

Novembro 2021

domingo, 7 de novembro de 2021

ROUND 6

 


O roteirista e diretor de cinema coreano Hwang Dong-hyuk teve sua ideia recusada por 10 anos. Produtores e atores simplesmente não se deixavam empolgar por ela e, mesmo obtendo sucesso como realizador do filme policial Silenced em 2011, sua criação ficou engavetada uma década.

Mas, aí chegou a Netflix. Ainda sem acreditar muito no projeto, o canal gigante resolveu apostar numa estranha história que misturava brincadeiras infantis com uma alegoria violenta sobre a condição humana e sua brutal face quando levada a limites extremos.  

O sucesso foi (e está sendo) retumbante. Com um retorno, até agora, na ordem de quase US$900 milhões, a série já é a maior contribuição para os cofres da provedora com sede na Califórnia e que atualmente possui mais de 280 milhões de assinantes.

Como nada é totalmente perfeito, Round 6 (ou melhor, Squid Game) vem recebendo duras críticas de associações parentais, que acusam a série de exercer perigosa influência sobre os jovens, incentivando-os a replicar em seus ambientes escolares as mesmas regras cruéis da ficção trágica.

Acabei de assistir aos 9 capítulos que compõem a temporada.  

Há, claro, violência explícita, tiros para todo o lado e muito sangue. Mas, nada muito mais do que eu tenho observado em dezenas de filmes e streamers televisivos policiais, de terror ou até em uma grande quantidade de joguinhos RPG à disposição da garotada.

Talvez o diferencial venha da associação da trama sanguinária a brincadeiras infantis. Mas, batatinha 1-2-3, bolas de gude e cabo de guerra, por exemplo, tiveram seu tempo numa juventude de um século atrás e, hoje, já saíram das práticas recreativas do jardim de infância e do primário. Pode ser que,  na Coreia, elas ainda carreguem seu impacto, como a modalidade que dá nome à série – O Jogo da Lula.

O que define Squid Game, entretanto, é a análise crua que faz do comportamento humano diante de seu mais crucial desafio – a sobrevivência. O teste de moralidade permeia todos os capítulos, exacerbando-se em função de uma equação que envolve algumas centenas de indivíduos falidos, endividados e transformados em párias da sociedade competitiva numa luta por um prêmio milionário, com apenas duas opções: o dinheiro ou a morte.

Outro ponto cardeal do trabalho de Dong-hyuk é o tratamento visual dado à trama. Cores, cenários, mis-en-scènes e planos fazem um contraponto instigante à rotina de massacre e à aridez de sentimentos dos algozes encapuzados. Tudo parece lúdico demais, ao lado de uma frieza assassina.

Mas, parece que foram estes mesmos ingredientes que determinaram o sucesso planetário de Squid Game. E a insana dedicação do seu roteirista-diretor durante as filmagens. Perfeccionista e obstinado, Dong-hyuk acabou sofrendo vários períodos de depressão enquanto a série era gravada, o que lhe acarretou a perda de seis dentes. Isto, e o fato de que ele próprio, dadas as condições contratuais com a Netflix, pouco lucrou, fazem com que a existência de uma segunda temporada esteja em avaliação.

Para nós, ocidentais, várias coisas chamam a atenção. Nomes, usos e costumes pouco têm referência com os nossos. Sae-byeok, por exemplo, nome de uma das personagens, é considerado lindo (!?). Vários jogos, como o ddjaki, que consiste em atirar um envelope sobre outro colocado no chão, com o objetivo de virá-lo, e que poderia trazer reminiscências do patrício bater figurinhas (ó galera menor de 60 anos – pesquisem...), não encontram referências tupiniquins. A própria brincadeira que batiza a série não é conhecida aqui. Dizem que isto fez com que o título no Brasil tenha sido mudado para Round 6, já que a mortal competição tem seis etapas. Mas, só aqui a série tem este nome. No resto do mundo, ela é Squid Game, Jogo da Lula. Será que houve alguma razão política?...

Não sei se a tchurma mais velha vai gostar do tema e da qualidade interpretativa dos coreanos. Há uma coleção de expressões corporais e faciais que vão levantar muitas sobrancelhas. Mas, não é bem por aí. O grande mérito de Round 6 é a mensagem que traz sobre quão frágeis são os nossos cultuados conceitos de solidariedade e amor ao próximo.

Oswaldo Pereira

Novembro 2021

domingo, 31 de outubro de 2021

BOND 60: O ORNITÓLOGO E O ESCRITOR

 


O livro “Birds of the West Indies” (Pássaros das Índias Ocidentais) foi escrito em 1936 por um ornitólogo americano e teve 11 edições. Seu autor era um reconhecido expert no assunto, cujo interesse pelas aves começara cedo, ainda adolescente, quando acompanhou o pai em uma excursão ao delta do rio Orinoco e ao Amazonas. Especializando-se no estudo dos pássaros da região caribenha, acabou por tornar-se referência, vindo a ocupar o cargo de curador de ornitologia da Academia de Ciências da Filadélfia. E, fora do estreito campo de sua especialidade, certamente teria ele passado despercebido pela cena mundial, não fosse por um pequeno detalhe. Ele se chamava James Bond.

Em fevereiro de 1952, um ex-integrante dos serviços de inteligência da Marinha inglesa finalmente conseguira as condições ideais que o propiciavam exercer seu mais dileto passatempo. Num regime de trabalho junto ao jornal Sunday Times, que lhe permitia tirar regularmente os meses de janeiro a março de férias, ele começou a escrever. O tema de seu primeiro romance alicerçava-se na figura de um agente britânico, cuja imagem e peripécias eram inspiradas por sua própria e extraordinária carreira militar durante a Segunda Guerra Mundial.

Com a persona de seu herói firmemente delineada, só faltava um nome que, segundo sua concepção, deveria ser as ordinary as possible (o mais comum possível). Foi quando o livro de Bond caiu-lhe nas mãos. Estava resolvido.

James Bond e Ian Fleming encontraram-se apenas uma vez, em 1964, pouco antes da morte deste último. O ornitólogo sempre achou graça em ver seu nome transformar-se numa celebridade. Nessa visita, Fleming presenteou-o com um exemplar de You Only Live Twice e a seguinte dedicatória: To the real James Bond, from the thief of his identity (Ao verdadeiro James Bond, do ladrão de sua identidade). Em 2008, muitos anos após a morte de ambos, esse exemplar foi leiloado por US$ 86 mil.

O livro que Fleming iniciara em fevereiro de 1952, Casino Royale, foi publicado no ano seguinte, muito por influência de seu irmão mais velho, Peter Fleming, um já reconhecido escritor de livros de viagens, junto aos editores. E teve um sucesso relativo, acabando por receber 3 edições. Animado, Fleming seguiu em frente. Entre 1953 e 1966, foram 14 histórias do personagem, a saber:

Casino Royale 1953

Live and Let Die 1954

Moonraker 1955

Diamonds Are Forever 1956

From Russia With Love 1957

Dr. No 1958

Goldfinger 1959

For Your Eyes Only 1960

Thunderball 1961

The Spy Who Loved Me 1962

On Her Majesty’s Secret Service 1963

You Only Live Twice 1964

E, publicados postumamente

Goldeneye 1965

Octopussy/The Living Daylights 1966

Até 1961, os livros vendiam bem, mas sem qualquer grande projeção e longe de serem best-sellers. Mas, a inescrutável mão do destino ia tudo mudar. Em março daquele ano, a revista LIFE teve como tema central uma entrevista com o então Presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. Perguntado sobre suas preferências literárias, Kennedy declarou que lera recentemente um ótimo thiller, intitulado From Russia With Love.

Pronto.

Estávamos em plena Guerra Fria, e o gênero spy novels, antes desprezado pelos puristas, estava explodindo. Foi instantâneo. Ian Fleming chegava ao olimpo.

Do olimpo a Hollywood, foi um pulo. Em 1962, a dupla de produtores Harry Saltzman e Albert Broccoli resolvera surfar a onda dos filmes de espionagem e contatou Fleming. Ia começar a mais longa e exitosa série cinematográfica de todos os tempos.

(Continua)

Oswaldo Pereira

Outubro 2021

Nota: Este é o primeiro texto, de uma série que, para horror de alguns dos meus abnegados leitores, pretendo escrever sobre a filmografia de James Bond, neste ano em que a franquia chega aos 60 anos. God help us...

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O VIOLENTO PITECANTROPO

 


Há dias, perguntaram-me o que achava eu da situação atual da humanidade, no que se referia ao grau de polarização do momento. Logo eu? ... pensei, um pouco surpreso com o pedido, formulado por jovens confiantes na premissa arriscada de que, por ser velho, eu pudesse ter algo de interessante, esclarecedor ou, até, profundamente filosófico a declarar.

Ledo engano.

A idade confere muita coisa. Um certo distanciamento crítico, um saudável arrefecimento de arroubos e paixões, uma visão mais larga em termos de perspectivas e horizontes. É até uma contrapartida razoável que a Natureza nos dá para compensar os achaques e as limitações físicas da velhice.

Mas não nos regala automaticamente com a onisciência, a prerrogativa da verdade insofismável, com as certezas absolutas. Ao tentar responder à tal pergunta, vi que a única coisa que tinha a oferecer era uma coletânea de imagens que havia acumulado pela vida afora, todas elas criadas, interpretadas e coloridas pelo photoshop das minhas próprias convicções, dos meus conceitos individuais e, por que não, até do meu DNA.

E o que me resultou como resposta foi o seguinte.

Em primeiro lugar, Humanidade é um termo perigoso. E pouco acurado. O que há são miríades de sociedades, cada uma com seus códigos, suas necessidades, suas expectativas, seus medos e suas esperanças. Comportamentos são classificados de acordo com suas próprias religiões, seus credos, suas normas e suas tradições. Por mais globalizados que formos, nunca existirá a Terra igual.

Por outro lado, não me parece que estamos mais polarizados que antes, só porque o Face, o Twitter e que tais canalizam a bílis raivosa de muita gente. Divergências de opiniões sempre existiram. Há menos de cem anos, estávamos imersos numa guerra mundial. Quer mais polarização do que isto?

A realidade é que o pithecanthropus erectus é um animal violento. Dez mil anos de uma pátina de civilidade ainda não conseguiram apagar a informação original. Somos antagonistas e pronto. Então, não está escrito que Caim matou Abel? Logo na segunda geração bíblica, o pau comeu. E eram irmãos...

Não sei se isto satisfez os meus jovens perguntadores. Nem se suscitará alguma reação dos meus abnegados leitores. Mas, era o que tinha a compartilhar, depois de décadas amealhando conhecimentos e lições, um pouco aqui, um pouco lá e de tentar entender o que é esta esfera azul em que estamos.

Oswaldo Pereira

Outubro 2021

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

(SEM) TEMPO PARA MORRER

 


ATENÇÃO: Este texto não contem estragantes (spoilers é o cacete...)

Não é o melhor da série. Prá já, do alto da minha autoproclamada cultura bondiana, posso citar outros melhores. On Her Majesty´s Secret Service, por exemplo. Ou Goldfinger. Ou, ainda, o extraordinário Skyfall. Mais pegada, mais malvadeza explícita dos vilões, mais epopeia. Mas, sem dívida, este longamente esperado No Time To Die não chega a decepcionar. Lá estão todos os ingredientes, todo o ritmo ritual, todo o cenário suntuoso, as frases e os gadgets, as tramas de fim do mundo e os diálogos velozes, tudo o que compõe esta fórmula vencedora que está prestes a comemorar 60 anos.

Mas, e principalmente, o que marcará este último filme da franquia é o definitivo descolamento da figura de seu protagonista do padrão de dureza e insensibilidade que estava em sua gênese. Ian Fleming moldou Bond um pouco em cima de sua própria persona de ex-agente e muito em cima dos ideais de masculinidade vigentes das décadas de 1950 e 1960.  Uma mescla idealizada de rudeza e charme, ou de humor cáustico com truculência classuda.

O inexpugnável 007 de outras eras, em No Time To Die tornou-se humano, tem dúvidas e dores. Está sofrido e vulnerável. E apaixonado. E isto também se encaixa como uma luva na despedida de Daniel Craig do papel. Alvo de ferrenha desconfiança quando foi escolhido para o rôle em 2006 (como tinha cabelos claros, ganhou de caras a alcunha de James Blond), o ator britânico logo dissipou as desconfianças com uma convincente atuação em Casino Royale.

A partir daí, imprimiu sua marca ao papel. Hermético e caracteristicamente down to business, contrastava com a sofisticação elegante de Pierce Brosnan, seu antecessor. Aos poucos, entretanto, toda a aparente insensibilidade da interpretação foi abrindo brechas e um 007 se entregando a românticos anseios com as anteriormente descartáveis bond girls mudou o quadro.

Craig deixa o papel depois de 15 anos e cinco prestações, com um saldo altamente positivo. Aos 53, passa a batuta bem mais em forma fisicamente do que Connery ou Moore, já meio “pesadões” ao se despedirem do posto.

Voltando a No Time To Die, o filme certamente será lembrado por várias coisas, umas que fazem parte do enredo e outras determinadas pelo acaso. Dada a pandemia, que atrasou a sua estreia por quase dois anos, o intervalo entre lançamentos da franquia foi o maior até agora (6 anos). Várias cenas, inclusive, e por exigência de patrocinadores, tiveram de ser refilmadas para substituir gadgets cuja tecnologia havia sido ultrapassada. Além disso, com uma pauta de gastos em torno de US$900 milhões, é o mais caro Bond de sempre.

Mas, mais importantes são as novidades da trama. É claro que não vou adiantar nada aqui, mas há coisas preciosas (para os aficionados, evidentemente) como as citações. Há as explícitas, principalmente aquela a On Her Majesty’s Secret Service e sua belíssima canção tema (We Have All The Time In The World, na magistral e inesquecível interpretação de Louis Armstrong), e outra, na vinheta de apresentação, a Dr. No.  Outras vão exigir um olhar mais atento do espectador mais iniciado. E uma grata surpresa, como Ana de Armas, irrepreensível na pele de uma agente da CIA.

Resumindo, vale a pena ver. Apenas recomendo que, antes, assista novamente a Spectre, o filme anterior, que funciona como um primeiro capítulo, já que as histórias estão interligadas.

Lembrando. No dia cinco de outubro de 1962, estreava em Londres a primeira produção da série (por coincidência, no mesmo dia foi lançado o primeiro single dos Beatles...). Assim, entramos no sexagésimo ano de vida da mais longeva sequência cinematográfica de um personagem de ficção. Uma proposta bem sucedida, sem dúvida.

Se eu tiver tempo, e os meus abnegados leitores uma extraordinária dose de paciência, proponho-me resenhar, ao longo dos próximos 12 meses, os 25 filmes. Seja o que Deus quiser...

Oswaldo Pereira

Outubro 2021