sexta-feira, 31 de maio de 2013

DESTINOS CERTOS: SANTORINI








Se você estivesse aqui, pelos idos de 1650 a.C., teria vivido numa das mais deslumbrantes ilhas do mar Egeu. O lugar era chamado de Strongyle, a redonda ou Kallisté, a mais bela, em grego. A cultura minóica, absorvida da vizinha Creta, florescia em seus palácios magníficos, cobertos de afrescos mostrando cenas rupestres e figuras humanas longilíneas e elegantes. Strongyle era um rico entreposto do império comercial cretense e em Akrotiri, sua cidade principal, viviam mais de 30.000 pessoas.

Certo dia, entretanto, você teria acordado para ver uma chuva fina de cinzas caindo lentamente sobre a ilha. O fenômeno durou alguns dias, alarmando a população. E servindo de aviso. Rapidamente, providenciou-se a remoção dos habitantes, provavelmente para Creta, 70 milhas náuticas para o sul. Você teria partido triste, por ter abandonado sua linda cidade e por ter também saído de mãos limpas – dada a urgência da retirada, todos os pertences haviam ficado para trás.

Sorte sua. Dias depois, a mais catastrófica erupção vulcânica da história fez desaparecer toda a parte central de Strongyle, ejetando 30 km³ de magma e levantando uma coluna de fumaça e detritos que podia ser vista por centenas de milhas ao redor. Seus efeitos foram mais poderosos que o de cem bombas atômicas. Uma cortina de fumo encobriu o sol por várias semanas em boa parte do mundo e tsunamis gigantescos atingiram os litorais de toda a região.

O terrível desastre deu início ao declínio da civilização minóica, uma das mais importantes da Idade do Bronze. E é mote inspirador de várias teorias. Uma delas atribui à erupção a passagem bíblica da travessia do Mar Vermelho pelos judeus. A retração da maré antecedente ao tsunami teria abaixado o nível das águas, permitindo a Moisés e seus seguidores cruzarem em segurança. A chegada da grande onda teria afogado as tropas de Ramsés. Outra, mais conhecida, estabelece uma correlação entre a ilha redonda e a descrição feita por Platão de outra ilha, também redonda, chamada Atlantis, alimentando o mito da lendária Atlântida.

Depois do cataclismo, o mar penetrou na boca do vulcão e criou uma lagoa cercada pelo que restou das paredes do cone vulcânico. Do fundo do lago, camadas de lava derretida e solidificada foram-se acumulando e uma ilhota de solo escuro emergiu no centro. Aos poucos, os escombros foram sendo reabitados.  Lacedemônios, Fenícios, Bizantinos. A denominação da ilha também mudara, para Thira ou Tera. No século XIII chegaram os venezianos. Devotos de Santa Irina, renomearam o lugar.
VISÃO 3D DE SANTORINI


SANTORINI







Em Fira e Oia, as casas ficam encarapitadas nas bordas de um precipício de 300 metros. Lá embaixo, a caldera do vulcão, cheia de água. Você até se pergunta. Que motivo leva as pessoas a morar num lugar como este?
Resposta: basta chegar à janela. A espetacular vista tira o fôlego, ao mesmo tempo em que algo sussurra que você está num dos pontos mais encantadores do planeta.

Aqui, é a Grécia dos sonhos. O casario branco com seus domos  azuis, a festa das flores em abundância, o céu mitológico. Não há ruas retas, nem sinais de trânsito, nem asfalto negro. São intrincadas vielas que sobem e descem, lojinhas charmosas vendem artesanato, roupas e lembranças. O importante é andar sem rumo, sentando aqui e ali para ver as cores, ouvir os sons, saborear a maresia.



Quando vier, venha de barco. A entrada na baía, a vista das duas vilas encasteladas no alto do imenso paredão circular, o índigo profundo do mar valem várias vezes a passagem e as horas de travessia desde o porto do Pireu.















Também não deixe de visitar a pequena ilha de pedras negras que se situa no meio da lagoa. Chama-se Nea Kameni. A paisagem lunar ainda fumega e relembra que ali, a alguns quilômetros abaixo, lá nas profundezas, câmaras de magma ainda fervem. O monstro, como um apocalíptico titã adormecido, apenas repousa.

E, definitivamente, não perca o pôr do sol. Vai ser difícil ver outro igual. Como será difícil encontrar outro lugar tão mágico como Santorini.





Oswaldo Pereira
Maio 2013






















segunda-feira, 27 de maio de 2013

PAPO DE BAR - VIAGRA FEMININO








«Só pode ter sido uma invenção masculina! »












«Talvez tenha sido, Antonia. E qual é o problema?! Já criaram o Viagra e seus similares. Por que não criar também uma pílula do desejo para as mulheres?»






«Quando é que vocês machos vão perceber que nós somos diferentes, física e psicologicamente?  Nosso corpo responde de outra maneira aos estímulos, sexuais ou não. Não somos objetivas, imediatistas, nossa cabeça gira de outra forma. Nosso afrodisíaco compõe-se de inúmeras nuances, depende de ambientes, luzes, perfumes...»


«Presentes, jóias...»

«Sim, e por que não? Atenção e carinho não fazem mal a ninguém. Se vocês pensam que uma pílula vai nos ligar e desligar a libido assim como quem não quer nada, estão muito enganados. Isto pode funcionar para vocês. Aliás, vocês já andam com isso na cabeça mesmo...»

«Não seja simplista.  É claro que temos o sexo mais na superfície, mas isto tem a sua razão genética. Vem do tempo da pré-história e da necessidade de preservação da raça. Era imperativo que o ser humano procriasse rapidamente para sobreviver num mundo terrivelmente hostil. E a procriação dependia do desejo masculino. Sem ereção, necas. O cara, então, saia da caverna para achar comida e correr de volta antes que algum tigre de dentes de sabre o abocanhasse. Adrenalina a mil. Depois de saciar a fome, só podia pensar naquilo»

«E o trabalho da mulherzinha, hein? Carregar o bebê na barriga, parir, amamentar, proteger os filhotes, cuidar das feridas do maridão. Isto não era também preservar a raça?»

«Sim, claro, mas para o ato em si, a excitação feminina era irrelevante. Ao contrário dos outros animais, o acasalamento humano não era comandado pelo cio da fêmea. Nem com isso o macho homem podia contar para disparar seu tesão. Tinha que ter, como você disse, aquilo permanentemente na cabeça. Foi assim durante milhões de anos. E a nossa civilização tem só uns seis mil. A informação ainda é muito recente»

«Quer dizer que temos de aceitar sermos desacordadas com uma marretada na cabeça, puxadas pelos cabelos até o fundo da caverna e créu... Pois deixa eu te dizer uma coisa. Nestes tais seis mil anos de civilização, foi a mulher que evoluiu. Muito mais que vocês. Sofremos em silêncio, fomos subjugadas pela força e pelas leis durante milênios, desrespeitadas até pela própria família. A nós foram negadas instrução e cidadania. Em muitos lugares, em pleno século XXI, ainda assim é.  Mas, fomos vencendo. Aos poucos, devagar, descobrindo trilhas no meio da floresta do preconceito, do desconhecimento, até do medo. Tivemos de ser prostitutas, escravas, bruxas. Até que as guerras do século passado nos levaram para as fábricas e para a independência financeira de um trabalho remunerado e a pílula anti concepcional nos libertou do fantasma de uma gravidez indesejada»

«Mas nós também evoluímos. O homem de hoje, pelo menos o homem informado, na maioria dos países, recebe com entusiasmo a participação da mulher em todos os campos da atividade social. Basta olhar para a política. Angela Merkel, Cristina Kirchner, a Dilma. E há outras inúmeras que comandam grandes empresas, são generais das forças armadas. Mandam e seus subordinados homens obedecem numa boa. E, na verdade, o sexo hoje não é mais exclusivamente uma iniciativa masculina. É um encontro de vontades. Então, por que não existir um remédio que aumente o interesse sexual feminino?»

«Não precisamos excitantes em drágeas, queridinho. Mande flores, elogie, paparique, fale pissilones no ouvidinho dela. Funciona maravilhosamente. Muito mais que qualquer pílula, te garanto...»


Oswaldo Pereira

Maio 2013

quinta-feira, 23 de maio de 2013

"COMO VENCER NA VIDA...



...sem fazer força.”

Este é o título da comédia musical que estreou há algum tempo no Oi Casa Grande, no Rio.  Ainda não vi. Mas vi o mesmo espetáculo em 1964, numa produção que tinha Moacyr Franco, Procópio Ferreira, Marilia Pêra e Berta Loran nos papéis principais e cuja adaptação para o português fora feita por Billy Blanco, na parte musical e, nos diálogos, por ninguém menos que Carlos Lacerda, então Governador do Estado da Guanabara (quem não souber o que é isto, procure nos livros de história...) Conta a lenda que Lacerda trabalhava na tradução do texto em plena revolução, enquanto as tropas leais a João Goulart cercavam o Palácio da Rua Farani.

A peça era a versão brasileira de How to Succeed in Business Without Really Trying, lançada na Broadway em 1961, baseada no livro homônimo de Shepherd Mead, publicado dez anos antes e vencedor do Pulitzer. 

Foi um imenso sucesso, rendendo 1.400 apresentações e sete prêmios Tony. Acabou sendo recriada em 1991, e em 2011, com, respectivamente, Matthew Broderick e Daniel Radcliffe (isso mesmo, o Harry Potter do cinema) como protagonistas centrais.

Tanto o livro quanto a montagem teatral são uma crítica bem-humorada aos livros de auto ajuda profissional e ao mundo corporativo americano em geral. A trama narra a história de um certo J. Pierrepont Finch, um limpador de janelas que resolve por em prática o que lera num manual de regras para subir no mundo empresarial. As recomendações do livro indicavam que, para alavancar uma carreira brilhante, eram necessárias três atitudes básicas: mentir, bajular e puxar o tapete de seus competidores.  Munido desses conselhos, Finch inicia sua subida pelos escalões de uma grande empresa, empregando os meios preconizados no manual e usando de sua esperteza nata. E consegue, sem muito esforço, chegar a Presidente do Conselho. Isto, evidentemente, era no tempo em que o termo “politicamente incorreto” ainda não fora criado.

Quando assisti ao espetáculo, acabara de ser admitido na General Electric, à época a maior multinacional dos Estados Unidos. Começo de carreira. E, é claro, acreditei que a brincadeira era só aquilo mesmo, uma blague com as relações de trabalho numa grande corporação e que o importante para vencer eram a competência, a seriedade e uma boa dose de ambição.

Muito tempo depois, após ter trabalhado anos na GE e em outro gigante corporativo, a ITT, aqui e no exterior, fiquei com a sensação de que, embora as minhas crenças tenham provado ser, senão a regra, pelo menos ferramentas altamente consideradas nas tais empresas, vi muita gente parecida com Finch subir rapidamente dentro do organograma funcional. Eram os espertos, nem sempre no mau sentido. Eram aqueles que sabiam estar na hora certa no lugar certo, tinham um agudo faro para falar a coisa exata no momento exato, e para a pessoa exata. Requer talento, tenho de admitir.

Aliás, certa vez li uma entrevista de um celebrado gestor de recursos humanos na qual, perguntado como era capaz de escolher os melhores candidatos a um emprego, disse que sempre se inspirara nos ensinamentos do marechal de campo prussiano Helmuth von Moltke, que viveu no século XIX. Von Moltke dividia as pessoas em quatro categorias, cada uma juntando duas características básicas de personalidade: inteligente ou tolo e ativo ou preguiçoso.

O entrevistado prosseguiu dizendo que usava esta classificação para avaliar os pretendentes e determinar qual deveria ser contratado. Assim, os preguiçosos-tolos eram de ser descartados logo, pois não tinham qualquer aptidão para o trabalho.  Os ativos-tolos ainda eram piores, pois usavam sua energia para cometer uma sucessão de erros – um desastre. Nesse momento, o entrevistador concluiu. «Bem, é evidente que os ativos-inteligentes são a escolha certa».
«De maneira nenhuma», reagiu o entrevistado. «Este estragará sua competência por usá-la demais. Será sempre centralizador, interferirá em tudo. Sua super atividade o transformará num workaholic da pior qualidade». E complementou. «O candidato dos meus sonhos é o preguiçoso-inteligente. É aquele que sempre procurará dispender o menor esforço para cumprir uma tarefa. Assim, inteligente como é, procurará as soluções mais simples e eficazes para a resolução dos problemas»

Nada mais verdadeiro. Eu sei. Eu vi.


Oswaldo Pereira
Maio 2013





terça-feira, 14 de maio de 2013

PORTUGAL E O MAR







Destino. Para usar uma palavra ícone, Fado.
Foi para ele que Portugal esteve fadado, desde o nascer.  O Mar.

De leste, o país sempre foi abraçado pela Espanha. Castela e León o espremeram logo após o berço, depois de um parto a ferros obrado por Afonso Henriques na mesopotâmia lusa entre o Minho e o Douro. Estabelecida a precária fronteira no nascente, Henriques e seus sucessores rumaram para o sul, ceifando os muçulmanos e abrindo um corredor estreito entre o litoral e as montanhas andaluzas, até, em meados do século XIII, parar nas praias dos Algarves. Um retângulo cuja independência ainda se equilibrou cambaleante entre desuniões familiares e conspirações castelhanas até sua definitiva confirmação na batalha de Aljubarrota, em 1348.

Nação formada, língua oficializada, rei posto. E agora?

Não havia para onde ir a levante. As terras de Espanha, e mesmo o continente todo, pareciam querer forçar o novel reino para fora, expeli-lo do mapa da Europa, empurrá-lo para o precipício do mar. E foi nesse momento que Portugal descobriu sua vocação, sua alma. Seu Fado.

João de Avis, o rei, dá início a uma fulgurante dinastia. Ela será breve, mas iluminada pela visão da linha do horizonte além das ondas, de um mundo apenas adivinhado para lá do sol poente e inspirará os homens de aço que tripularão seus navios na mais arrojada empreitada da história náutica – a era dos Descobrimentos.

A partir daí, o mar domina. Ele será o provedor, o deus das fortunas, o arauto da glória, a base do poder. Tudo dele vem. E para ele vai. Vidas, sonhos, esperanças. Até o final do século XVI, Portugal expandirá seu império do Brasil à Polinésia, cobrindo mais do que o mundo conhecido, criando feitorias, ensinando o catecismo e praticando a sublime arte da miscigenação.

Em 1580, D. Sebastião desaparece nas brumas de Alcácer-Quibir e o sonho acaba. Mas, o Mar Oceano não perde sua magia e sua importância. Recolhidas as naus das descobertas, os pesqueiros lançam-se às águas e fazem florescer uma atividade econômica, ao mesmo tempo determinando hábitos comestíveis que até hoje fazem dos portugueses os maiores consumidores per capita de peixe do ocidente. Sem falar que, já em 1497, seus barcos caçavam, nos bancos da Terra Nova, o pescado símbolo da culinária lusa – o bacalhau.

Mulheres vestidas de negro nas areias da Nazaré, esperando seus homens voltar. Centenas de canções invocando cenas de maresia, gaivotas e fragatas. Um cacilheiro lentamente atravessando o Tejo. Um rabelo singrando o Douro.  Tudo isso é o mar.
De que Fernando Pessoa escreveu:

“Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal...”

E, falando em Pessoa, aproveito para relembrar o que escrevi  há tempos, no link a seguir.

Oswaldo Pereira
Maio 2013




segunda-feira, 13 de maio de 2013

ESQUINA DE LISBOA


Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Estava a frase num azulejo, com letra miúda inclinada em azul sobre um fundo branco, a uns trinta centímetros do chão, embutida na parede pintada de amarelo. Andando ligeiro, prestando atenção no movimento, atento ao tráfego, interessado numa vitrina, mesmo o mais observador transeunte não a veria. Era uma informação pequena, quase obscura, feita para não ser vista, uma mensagem atirada ao nada. À noite, então, pior era, engolida pela iluminação precária daquela curva da cidade, desfigurada nas sombras.

Mas ela estava ali, e ali provavelmente deveria ter estado há muito, amornada pelo sol ou borrifada da chuva, por quanto tempo não sei, nem tenho como saber. Só sei que, um dia, a vi. Um dia em que procurava achar a Baixa em meio aos meus desatinos, em que andava a procura de um norte na escuridão de meus desencantos, um sentido qualquer, uma explicação para o inexplicável, um bálsamo para as minhas aflições. A vida me largara, ou eu me largara dela, tanto faz, aí a ordem dos fatores não altera o produto, mas o rumo desaparecera, o que restava eram labirintos, sinais trocados, ruas sem saída.


Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

 Por que só viu o poeta? E qual poeta teria visto? Quem seria o poeta naquele dia, ou naqueles dias em que passara e a esquina o vira? Bernardo Soares em seu desassossego? Ricardo Reis antes de ir para o Brasil? O filósofo Alberto Caeiro ou o torturado Álvaro de Campos? 

E por que só vira o poeta? E os outros, os “nós” anônimos, os comuns, os iguais, os despercebidos, os desimportantes, os esquecidos, os zés e as marias ninguém, os “eu” sem ribalta, as gentes do dia a dia, os náufragos da noite, todos com suas estórias para contar.

Talvez, só porque o poeta a dele contara. Talvez só porque ele escancarara suas entranhas, dera ao repasto do mundo e do futuro sua alma como alimento. E então, por isso, a esquina o registrara e orgulhosa do fato de tê-lo visto, de ter ouvido o ruído do taco de seu sapato ressoando na pedra da calçada, ali tão perto, quis apregoar a ventura de ter sentido a genialidade agitar o mesmo vento que a acariciava.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

E agora me vê aqui. O vento não me acaricia; é nortada fria e molhada que me ensopa até os ossos, mas são o medo e a solidão que me gelam por dentro. A Baixa está vazia e lúgubre, lavada de chuva e caída no silêncio. Longe estão os verões dos turistas coloridos, das tardes de sol, dos pregões sonoros. Mais longe ainda está o meu verão, o verão meu que imaginava eterno, dos radiosos dias de amanhãs sem presságios, da felicidade ao alcance de um aceno. Onde foi a sensação de vida por viver, de tempo que obedecia ao ritmo do meu coração, parando quando eu queria, correndo quando eu mandava?

Ah, poeta! Você que aqui passou, que tanto sabia de angústias e de medos, que tantas vezes e de tantas maneiras os cantou, por que não me ajuda a destilar minha alma, a aliviar meus humores e minha bílis. Como gostaria de trocar esta febre insidiosa pelas dores do parto de uma poesia, de um embrião de palavras escritas que depois desabrochassem num soneto de amor, nuns versos perfeitos de rimas ricas.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Adeus, esquina. Vou-me embora. Não tive resposta do poeta. Ele terá as suas razões. Afinal, poesia não é arte que se aprenda por osmose. Não adianta cá ficar, esperando por uma centelha, um toque, um sussurro. A inspiração não vem assim, de presente, de graça, flutuando no ar como um balão de festas. Ela é dádiva rara, de um deus sovina e aleatório que, sabe-se lá por que critérios, escolhe alguém ao acaso e o regala com o dom de domar vocábulos, encilhar frases, cavalgar estrofes. De mim, nada sairá. Nem uma trova, nem mesmo um verso de cordel ou ainda um simples hai-kai.

Adeus, esquina. O poeta de novo aqui não passará. Só sua fama anda por aí, mas está dispersa pelo mundo, glorificada na memória das gerações de agora e do porvir. É imensa, galática, universal. Duvido que de ti tome conhecimento, assim como todos os que por ti passam, imersos em suas vidas, guiados pelos semáforos, atiçados pelas vitrinas, são imunes à tua rima pobre.

Só eu, esquina. Só eu te vi e ouvi teu grito para o nada. Esquece o poeta. Registra esta noite, o meu desalento, a nossa solidão. E escreve:

Esta esquina de Lisboa
Viu passar... uma pessoa


Oswaldo Pereira
Dezembro 2010

sábado, 11 de maio de 2013

CONTOS DA CAROCHINHA




















Na minha infância, num mundo pré-televisão - tentem imaginá-lo!- a vida seguia entre escola, “horas” de alguma obrigação enfadonha (hora do banho, hora do almoço, hora da janta), brinquedos inventados, pois os verdadeiros eram escassos e caros, e o momento da aquietação, em que a criançada era recolhida na cozinha para amansar as energias que ainda queriam sobrar inesgotáveis e se preparar para outra “hora” chata – a de ir para a cama.

E era exatamente aí que certas lições de vida nos chegavam pelas histórias infantis, rótulo que podia abarcar desde sagas medievais até peraltices de alguma criatura mítica, passando por toda uma antologia popular, adaptadas e dramatizadas por quem, sempre com o firme intuito de nos fazer prender a respiração e permanecer imóveis pela primeira vez no dia,  as contava para nós ao seu jeito e com sua inspiração.

Quem isto fazia, a mais das vezes no interior de Minas onde eu morava, eram as empregadas da casa, elas próprias sabedoras de algumas estórias apanhadas no tempo, passadas de muitas gerações e nunca escritas, rolando de boca em boca ao sabor de crendices e imaginações. Era uma enorme colcha de retalhos folclóricos que costurava Irmãos Grimm com mulas-sem-cabeça, Hans Christian Andersen com Os Doze Pares de França, e por aí vai.

Quando aprendi a ler, abriu-se para mim o império das histórias em quadrinhos e seus heróis formidáveis e justiceiros. Vinha tudo dos Estados Unidos onde, para mim, o dia-a-dia devia ser um contínuo desfilar de tremendas batalhas entre os diversos Marvels, Batmans e Superhomens da vez e seus ardilosos desafiantes. Um pouco mais, o parco dinheirinho das mesadas já me permitia ir às matinés (arcaico para sessões de cinema à tarde, destinadas à garotada imberbe), torcer para os mais rápidos gatilhos do Velho Oeste e confirmar que a América já era a mesma terra impossível desde o tempo dos cowboys.

Mais um pouco, e então a adolescência nos apanhou e outras questões vitais nos afastaram definitivamente do reino dos contos infantis.

Bem, escrevi toda esta chorumela nostálgica acima porque, pelo bem-aventurado fato de ter netos, há tempos venho observando o que agora representa, para eles, a experiência cultural que recebi em faixa etária semelhante. Como muito da argamassa de meus princípios foi certamente influenciada pelo que vi e ouvi ainda criança, devo deduzir que o mesmo pode acontecer com eles e que, portanto, o que vêem e ouvem hoje poderá definir uma parcela importante de seu caráter.

E fiquei impressionado. Mal impressionado.

Os atuais substitutos das empregadas faladeiras, das bandas desenhadas e das matinés, são os tablets, i-pads, i-pods e outras maravilhas eletrônicas que qualquer pai põe ao alcance de seus filhos para fazer exatamente o que as histórias contadas nas cozinhas de antanho procuravam fazer – aquietá-los.
Tudo bem.
O problema é o conteúdo.
O riquíssimo menu de jogos posto à disposição dos usuários deixa pouco espaço para a imaginação. Começa pelo grafismo hiper-real da ação e continua pela oferta de recursos de computação que permitem encarnar o agente do jogo com avançado grau de realismo.
De novo, nada contra a técnica desses role-playing games, se bem que sua aplicação traz a realidade para muito perto e, talvez na cabeça de alguma criança, confunda as linhas divisórias entre fábula e fato.
A questão é a mensagem de violência que estes jogos trazem embutida em seus enredos, seus objetivos e seu propósito.

Já sei que vou escutar duas afirmativas. “Você está velho!...” Absoluta verdade. E “no seu tempo, a maioria das historinhas, os super-heróis e os filmes de faroeste também só mostravam violência...”
Bem, em termos.
João e Maria foram aprisionados pela avó, a madrasta mandou matar Branca de Neve e depois tentou envenená-la, havia gigantes maus e dragões furiosos. Mas, seu irrealismo e seu cenário distante colocava os personagens e seu drama num plano distinto do nosso quotidiano.
Os grandes campeões dos quadrinhos defendiam a sociedade do Mal, sob qualquer forma e, em vez de matar seus adversários, acabavam entregando-os à justiça, onde invariavelmente eram julgados com rigor (ó inveja!...)
E os nossos mocinhos do Oeste só puxavam pelo colt depois de terem apanhado como bois ladrões e em situação de insofismável legítima defesa. Mesmo assim, o tiro fatal era rápido e antisséptico. Sangue, nem pensar.

Espero que seja só um achaque nostálgico. Entretanto, me aflige observar um aumento gradativo de agressividade entre os jovens. Os fatores devem ser vários, mas algo me sussurra que jogos nos quais a ação violenta é um objetivo em si têm um pouco de culpa no cartório. 

Com a palavra, o futuro.


Oswaldo Pereira
Maio 2013





quarta-feira, 8 de maio de 2013

O BURACO




Coisas do Rio antes do Passos, coisas que registradas no tempo, talvez possam parecer, às gerações futuras, fructo da mais deslavada fantasia, da mais ousada e petulante farsa. Esse buraco é uma dellas. Os prefeitos da cidade parecem, no começo do século, em sua maioria, estrangeiros que não se podem interessar pela terra onde mandam, já porque nella não nasceram. Já porque só buscam, na mesma, apenas, meios de estabelecer, garantir fortuna, ou prestígio na Política. A cidade é uma vergonha para a civilização americana. É a mesma cidade colonial de 1801. Sem tirar nem pôr – suja, atrazada e fedorenta.
Ora, em frente à Colombo, certa vez, para fazer-se uma obra urgente, cabouqueiros da Prefeitura, açodados e activos, abrem profunda cova. Mas, terminada a obra, não a fecham.
Como a cidade é um crivo de buracos, pouco se nota o augmento de mais um. O transeunte que vem apressado, descendo a rua Gonçalves Dias, olha a bocca hiante do abysmo – aliás sondável – faz, naturalmente, uma volta, mãos solicitas, tendo posto sobre o monte de terra que lhe fica á beira este amável letreiro:
Cuidado com o buraco!...
Quando chove, a cova torna-se em pequenino lago, com o sol, mais ou menos depois, uma fossa lamacenta e cheia dos mais sórdidos detritos.
Lebrão pede aos follicularios que frequentam a sua confeitaria, que façam reclamações pelas gazetas. Gemem prelos. Há commentários chistosos sobre o caso. Um theatro chega a anunciar uma revista que, então representada, faz sucesso. Chama-se O BURACO.

Sepultura de prefeitos
Este buraco ahi está
Já cahiram dois sujeitos
Um terceiro cahirá

É o cumulo. Acha-se, nisso tudo, muita graça! Mas a cova persiste...”

Este relato faz parte do livro “O Rio de Janeiro do Meu Tempo”, do escritor e membro da Academia Brasileira de Letras Luís Edmundo de Mello Pereira da Costa (1878/1961) que, além de cronista emérito, foi também jornalista (do Correio da Manhã), poeta, teatrólogo e orador.

Embora escrito em 1938, o ”meu tempo” de Luís Edmundo refere-se ao Rio da virada do século, antes de Francisco Pereira Passos, o “Chico Bota-Abaixo”, assumir a prefeitura e comandar a mais dramática mudança já experimentada pela cidade e que a colocou nos trilhos de um caminho ascendente até ser chamada, mais tarde, de “Cidade Maravilhosa”.

No período descrito no livro, o Rio tinha 600 mil habitantes, vielas descuidadas e insalubres iluminadas a gás, com a malária rondando em cada esquina, mal pavimentada e suja. Invejava Paris, mas cheirava a esgoto. Mesmo assim, o jeito carioca achava razões de sobra para encher as ruas de tipos folclóricos e inesquecíveis, para abrigar companhias teatrais de algum renome, para festejar uma intelectualidade literária da melhor qualidade, para comer e beber em restaurantes e confeitarias com trejeitos do primeiro mundo europeu.

Nesta obra de três volumes, hoje em dia disponível para consulta ou download no site “Domínio Público”, o autor monta um riquíssimo painel da cidade prestes a ganhar sua maioridade das marretas e dos andaimes do futuro. E que também convive com problemas os quais, apesar de tudo, ainda a afligirão mais de um século depois...


Oswaldo Pereira
Maio 2013


sexta-feira, 3 de maio de 2013

PAPO DE BAR - DEMOCRACIA







«Eu? É claro que estou satisfeito. Isto é uma demonstratação de que as nossas instituições estão funcionando. O Legislativo e o Judiciário divergindo, a imprensa relatando livremente a discussão, os cidadãos opinando sem censuras. Quer coisa mais bonita?»











«Beleza... Você deve até ter achado sublime o discurso da Dilma no dia primeiro de maio, em que ela dissertou magnificamente sobre a situação da Dinamarca...»





«Dinamarca?!»

«Sim, porque não deve ter sido do Brasil que ela falou. Altos índices de educação, exemplar distribuição de renda, inflação sob controle...»

«Cara, lá vem você de novo. Tudo bem, você pode não gostar dela e menos ainda do Lula, mas tem de conceder que houve uma revolução social no Brasil nos últimos anos. Mostre-me um país que tenha conseguido criar vinte milhões de empregos em oito anos. Outro do mundo industrializado, além da China e da Índia que ainda usam mão-de-obra escrava, que tenha conseguido continuar crescendo enquanto a Europa e os Estados Unidos entraram em recessão. Ou que tirou quarenta milhões de indivíduos da pobreza e os inseriu na classe média»

«Bem, antes que você saia por aí cantando o Hino Nacional e declamando “porque me ufano do meu país”, deixe-me colocar este seu cenário cor-de-rosa em perspectiva. Prá começo de conversa, toda esta obra gigantesca não foi mérito exclusivo do PT. Quando o grande companheiro assumiu seu primeiro mandato, o trabalho de base para a arrancada já havia sido preparado pelo Governo Fernando Henrique. Foi durante o período FH que o controle da inflação se solidificou, os programas sociais de resgate da pobreza foram montados, as linhas de financiamento municiadas pelas agências federais de crédito. E, entre 2002 e 2007, o mundo experimentou uma fantástica era de crescimento, naturalmente expandindo os mercados externos para os emergentes. Até a tal propalada autossuficiência em petróleo, que o Lula encheu a boca para reivindicar, é fruto dos alicerces técnicos plantados ainda durante a ditadura militar»

«Inacreditável. Você deve ser daqueles que, quando o seu time ganha, o mérito é dos jogadores. Quando perde, é culpa só do técnico. Mesmo que as condições já existissem, como você diz, antes da posse, é preciso conceder que ele teve o mérito de botar a coisa para funcionar»

«Mérito? De que? Este tal aumento da classe média foi conseguido pelo achatamento da própria classe média. Enquanto a base da pirâmide aumentou, o topo esfacelou-se. O que se fez foi uma distribuição perversa de renda, tirando dos que não tinham muito para os que não tinham nada. Dos ricos é que não veio um tostão para financiar as diversas Bolsas criadas pelo Governo. O escalão superior da classe média é que está sendo esmagado pela maior carga tributária do planeta para suportar estas benesses e ainda sustentar o Governo mais inchado e corrupto da história da República»

«Bobagens. A corrupção não é apanágio deste Governo. Sempre existiu, aqui e lá fora. Os programas noticiosos dos Estados Unidos, da França, da Espanha, de Portugal e outros países da Europa gastam pelo menos meia hora todos os dias para falar das maracutaias locais. Há corrupção na Rússia, na Holanda, até no Vaticano. Há pouco descobriram uma rede que “arranjava” resultados das lutas de sumô. Sumô, imagine! Uma das coisas mais veneráveis do Japão...»

«Sim, meu caro. Rouba-se da coisa pública em qualquer lugar. Mas definitivamente não com a voracidade e a falta de punição a que assistimos aqui. O suado dinheirinho dos remediados da nação, em vez de retornar na forma de um razoável serviço de saúde, do aprimoramento da rede pública de ensino, da maior segurança nas grandes cidades, do aumento das infraestruturas básicas de energia, transporte e comunicação, vai para desvãos do poder, para contas bancárias em ilhas da fantasia, para regabofes turísticos, quando não termina em lugares bem mais prosaicos...»

«Quem sabe? Talvez seja o preço da democracia. Irmos depurando aos poucos, corrigindo a rota, melhorando o sistema...»

«Lindo! E você crê realmente que estamos numa democracia...»

«Ora bolas! É claro que sim. Temos o mais sofisticado e eficiente mecanismo eleitoral do mundo. 180 milhões de eleitores. Cada um vota em quem quer, com total liberdade. Como você chama isto, se não de democracia?! E com D maiúsculo»

«Vou refrescar um pouco o que você deve ter aprendido na escola. Democracia, amigão, é o regime político pelo qual o povo exerce o governo através dos seus representantes. Agora, me diga, você que votou com orgulho nas últimas eleições. Quem são os seus representantes, na Assembleia Municipal, na Câmara Estadual, no Congresso, no Senado? Quem são esses caras em que você depositou sua confiança? O que eles estão fazendo para preservar os seus interesses? Qual a linha de comunicação que você tem com eles?»

«Ora, você sabe que não é assim que as coisas acontecem por aqui...»

«É lógico que sei. Sei até mais. Sei que a grande maioria dos eleitores nem se lembra em quem votou. E muito menos se preocupa com o que os seus supostos representantes estão fazendo no exercício de seus mandatos»

«Não exagere. Para os quarenta milhões que melhoraram de vida, compraram sua primeira geladeira, sua primeira TV em cores, construíram seu puxadinho e sua laje, onde fazem seu churrasquinho e bebem sua cerveja no fim de semana, não existe nada melhor do que a situação atual do país. No que lhes diz respeito, a democracia brasileira funciona como um relógio»

«Até precisarem de um hospital e morrerem na fila de atendimento. Até possuírem bens suficientes para verem suas casas saqueadas. Até seus filhos perderem o futuro por falta de escolas. Até extinguirem a capacidade de pagar impostos da classe média mais alta e a fonte dos subsídios secar»

«Você só vê as coisas pelo lado negativo. Somos um país enorme, rico, sem brigas internas nem externas, o maior produtor de grãos da Terra. Somos a sétima economia, temos uma língua única, uma...»

«E Deus é brasileiro, etcetera e tal... Só faltou dizer que temos o melhor futebol do mundo»

«E não é verdade?!»

«Espere até a Copa das Confederações, amigo...»

Oswaldo Pereira
Maio 2013