segunda-feira, 13 de maio de 2013

ESQUINA DE LISBOA


Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Estava a frase num azulejo, com letra miúda inclinada em azul sobre um fundo branco, a uns trinta centímetros do chão, embutida na parede pintada de amarelo. Andando ligeiro, prestando atenção no movimento, atento ao tráfego, interessado numa vitrina, mesmo o mais observador transeunte não a veria. Era uma informação pequena, quase obscura, feita para não ser vista, uma mensagem atirada ao nada. À noite, então, pior era, engolida pela iluminação precária daquela curva da cidade, desfigurada nas sombras.

Mas ela estava ali, e ali provavelmente deveria ter estado há muito, amornada pelo sol ou borrifada da chuva, por quanto tempo não sei, nem tenho como saber. Só sei que, um dia, a vi. Um dia em que procurava achar a Baixa em meio aos meus desatinos, em que andava a procura de um norte na escuridão de meus desencantos, um sentido qualquer, uma explicação para o inexplicável, um bálsamo para as minhas aflições. A vida me largara, ou eu me largara dela, tanto faz, aí a ordem dos fatores não altera o produto, mas o rumo desaparecera, o que restava eram labirintos, sinais trocados, ruas sem saída.


Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

 Por que só viu o poeta? E qual poeta teria visto? Quem seria o poeta naquele dia, ou naqueles dias em que passara e a esquina o vira? Bernardo Soares em seu desassossego? Ricardo Reis antes de ir para o Brasil? O filósofo Alberto Caeiro ou o torturado Álvaro de Campos? 

E por que só vira o poeta? E os outros, os “nós” anônimos, os comuns, os iguais, os despercebidos, os desimportantes, os esquecidos, os zés e as marias ninguém, os “eu” sem ribalta, as gentes do dia a dia, os náufragos da noite, todos com suas estórias para contar.

Talvez, só porque o poeta a dele contara. Talvez só porque ele escancarara suas entranhas, dera ao repasto do mundo e do futuro sua alma como alimento. E então, por isso, a esquina o registrara e orgulhosa do fato de tê-lo visto, de ter ouvido o ruído do taco de seu sapato ressoando na pedra da calçada, ali tão perto, quis apregoar a ventura de ter sentido a genialidade agitar o mesmo vento que a acariciava.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

E agora me vê aqui. O vento não me acaricia; é nortada fria e molhada que me ensopa até os ossos, mas são o medo e a solidão que me gelam por dentro. A Baixa está vazia e lúgubre, lavada de chuva e caída no silêncio. Longe estão os verões dos turistas coloridos, das tardes de sol, dos pregões sonoros. Mais longe ainda está o meu verão, o verão meu que imaginava eterno, dos radiosos dias de amanhãs sem presságios, da felicidade ao alcance de um aceno. Onde foi a sensação de vida por viver, de tempo que obedecia ao ritmo do meu coração, parando quando eu queria, correndo quando eu mandava?

Ah, poeta! Você que aqui passou, que tanto sabia de angústias e de medos, que tantas vezes e de tantas maneiras os cantou, por que não me ajuda a destilar minha alma, a aliviar meus humores e minha bílis. Como gostaria de trocar esta febre insidiosa pelas dores do parto de uma poesia, de um embrião de palavras escritas que depois desabrochassem num soneto de amor, nuns versos perfeitos de rimas ricas.

Esta esquina de Lisboa
Viu passar Fernando Pessoa

Adeus, esquina. Vou-me embora. Não tive resposta do poeta. Ele terá as suas razões. Afinal, poesia não é arte que se aprenda por osmose. Não adianta cá ficar, esperando por uma centelha, um toque, um sussurro. A inspiração não vem assim, de presente, de graça, flutuando no ar como um balão de festas. Ela é dádiva rara, de um deus sovina e aleatório que, sabe-se lá por que critérios, escolhe alguém ao acaso e o regala com o dom de domar vocábulos, encilhar frases, cavalgar estrofes. De mim, nada sairá. Nem uma trova, nem mesmo um verso de cordel ou ainda um simples hai-kai.

Adeus, esquina. O poeta de novo aqui não passará. Só sua fama anda por aí, mas está dispersa pelo mundo, glorificada na memória das gerações de agora e do porvir. É imensa, galática, universal. Duvido que de ti tome conhecimento, assim como todos os que por ti passam, imersos em suas vidas, guiados pelos semáforos, atiçados pelas vitrinas, são imunes à tua rima pobre.

Só eu, esquina. Só eu te vi e ouvi teu grito para o nada. Esquece o poeta. Registra esta noite, o meu desalento, a nossa solidão. E escreve:

Esta esquina de Lisboa
Viu passar... uma pessoa


Oswaldo Pereira
Dezembro 2010

5 comentários:

  1. Ótimo! Oswaldo,os poetas são tristes, parvos,
    impacientes, alguns arrogantes, cheios de empáfia e desprezo, até mesmo por si mesmos. Você, é bem humorado demais, para a chorumela lírica ou até mesmo para diatribes explosivas. Mas não perca a esperança, vai que um dia, baixa um santo?

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  2. Pois é. Na mesma poesia sobre o mar, Pessoa escreveu: "Quem passar além do Bojador, tem de passar além da dor..." Será que para ser poeta, sofrer é preciso?

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  3. Sofrer exatamente, talvez não. Tantos sofrem e não são poetas. Sócrates pelas palavras de Diotima, em O Banquete, diz tudo. "Poiesis... a capacidade, o ato, de trazer para a existência, o que dorme na inexistência." Mas tem fatores imprescindíveis. Por ex. Se o sujeito tiver preguiça ou desconfiança de anotar imediatamente o texto (às vezes sem nexo), que o imponderável lhe sussurra aos ouvidos, nunca será poeta. Displicência então é fatal, ele será à posteriori, castigado pelo silencio. Poesia não se procura, muito menos se acha. A poesia, quando existe, ela sozinha se mostra.

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    1. Mas, percebê-la quando se mostra já é, em si, uma difícil arte. Olhos de ver, ouvidos de ouvir... nasce-se com isto...

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  4. Não acho não, o poder para demolir estruturas, cabe no desejo. Desapego, invencionices, irreverência, atenção e preocupação alguma. E outra coisa, quanto mais se fala de qq coisa, mais ela escapa.

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