Esta
esquina de Lisboa
Viu
passar Fernando Pessoa
Estava a frase num azulejo, com
letra miúda inclinada em azul sobre um fundo branco, a uns trinta centímetros
do chão, embutida na parede pintada de amarelo. Andando ligeiro, prestando
atenção no movimento, atento ao tráfego, interessado numa vitrina, mesmo o mais
observador transeunte não a veria. Era uma informação pequena, quase obscura,
feita para não ser vista, uma mensagem atirada ao nada. À noite, então, pior era,
engolida pela iluminação precária daquela curva da cidade, desfigurada nas
sombras.
Mas ela estava ali, e ali
provavelmente deveria ter estado há muito, amornada pelo sol ou borrifada da
chuva, por quanto tempo não sei, nem tenho como saber. Só sei que, um dia, a
vi. Um dia em que procurava achar a Baixa em meio aos meus desatinos, em que
andava a procura de um norte na escuridão de meus desencantos, um sentido
qualquer, uma explicação para o inexplicável, um bálsamo para as minhas
aflições. A vida me largara, ou eu me largara dela, tanto faz, aí a ordem dos
fatores não altera o produto, mas o rumo desaparecera, o que restava eram
labirintos, sinais trocados, ruas sem saída.
Esta
esquina de Lisboa
Viu
passar Fernando Pessoa
E por que só vira o poeta? E os
outros, os “nós” anônimos, os comuns, os iguais, os despercebidos, os
desimportantes, os esquecidos, os zés e as marias ninguém, os “eu” sem ribalta,
as gentes do dia a dia, os náufragos da noite, todos com suas estórias para
contar.
Talvez, só porque o poeta a dele
contara. Talvez só porque ele escancarara suas entranhas, dera ao repasto do
mundo e do futuro sua alma como alimento. E então, por isso, a esquina o
registrara e orgulhosa do fato de tê-lo visto, de ter ouvido o ruído do taco de
seu sapato ressoando na pedra da calçada, ali tão perto, quis apregoar a
ventura de ter sentido a genialidade agitar o mesmo vento que a acariciava.
Viu passar Fernando Pessoa
E agora me vê aqui. O vento não me
acaricia; é nortada fria e molhada que me ensopa até os ossos, mas são o medo e
a solidão que me gelam por dentro. A Baixa está vazia e lúgubre, lavada de
chuva e caída no silêncio. Longe estão os verões dos turistas coloridos, das
tardes de sol, dos pregões sonoros. Mais longe ainda está o meu verão, o verão
meu que imaginava eterno, dos radiosos dias de amanhãs sem presságios, da felicidade
ao alcance de um aceno. Onde foi a sensação de vida por viver, de tempo que
obedecia ao ritmo do meu coração, parando quando eu queria, correndo quando eu
mandava?
Ah, poeta! Você que aqui passou, que
tanto sabia de angústias e de medos, que tantas vezes e de tantas maneiras os
cantou, por que não me ajuda a destilar minha alma, a aliviar meus humores e
minha bílis. Como gostaria de trocar esta febre insidiosa pelas dores do parto
de uma poesia, de um embrião de palavras escritas que depois desabrochassem num
soneto de amor, nuns versos perfeitos de rimas ricas.
Viu passar Fernando Pessoa
Adeus, esquina. Vou-me embora. Não
tive resposta do poeta. Ele terá as suas razões. Afinal, poesia não é arte que
se aprenda por osmose. Não adianta cá ficar, esperando por uma centelha, um
toque, um sussurro. A inspiração não vem assim, de presente, de graça,
flutuando no ar como um balão de festas. Ela é dádiva rara, de um deus sovina e
aleatório que, sabe-se lá por que critérios, escolhe alguém ao acaso e o regala
com o dom de domar vocábulos, encilhar frases, cavalgar estrofes. De mim, nada
sairá. Nem uma trova, nem mesmo um verso de cordel ou ainda um simples hai-kai.
Adeus, esquina. O poeta de novo aqui
não passará. Só sua fama anda por aí, mas está dispersa pelo mundo, glorificada
na memória das gerações de agora e do porvir. É imensa, galática, universal. Duvido
que de ti tome conhecimento, assim como todos os que por ti passam, imersos em
suas vidas, guiados pelos semáforos, atiçados pelas vitrinas, são imunes à tua rima
pobre.
Esta esquina de Lisboa
Viu passar... uma pessoa
Dezembro 2010
Ótimo! Oswaldo,os poetas são tristes, parvos,
ResponderExcluirimpacientes, alguns arrogantes, cheios de empáfia e desprezo, até mesmo por si mesmos. Você, é bem humorado demais, para a chorumela lírica ou até mesmo para diatribes explosivas. Mas não perca a esperança, vai que um dia, baixa um santo?
Pois é. Na mesma poesia sobre o mar, Pessoa escreveu: "Quem passar além do Bojador, tem de passar além da dor..." Será que para ser poeta, sofrer é preciso?
ResponderExcluirSofrer exatamente, talvez não. Tantos sofrem e não são poetas. Sócrates pelas palavras de Diotima, em O Banquete, diz tudo. "Poiesis... a capacidade, o ato, de trazer para a existência, o que dorme na inexistência." Mas tem fatores imprescindíveis. Por ex. Se o sujeito tiver preguiça ou desconfiança de anotar imediatamente o texto (às vezes sem nexo), que o imponderável lhe sussurra aos ouvidos, nunca será poeta. Displicência então é fatal, ele será à posteriori, castigado pelo silencio. Poesia não se procura, muito menos se acha. A poesia, quando existe, ela sozinha se mostra.
ResponderExcluirMas, percebê-la quando se mostra já é, em si, uma difícil arte. Olhos de ver, ouvidos de ouvir... nasce-se com isto...
ExcluirNão acho não, o poder para demolir estruturas, cabe no desejo. Desapego, invencionices, irreverência, atenção e preocupação alguma. E outra coisa, quanto mais se fala de qq coisa, mais ela escapa.
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