quarta-feira, 30 de julho de 2014

PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL - 100 ANOS





O Heeresgechichtliches Museum (Museu de História Militar) em Viena abriga um dos mais vastos e completos acervos sobre conflitos armados do mundo. Em seus imensos salões, armas, uniformes, documentos e memorabilia diversa contam a história das inúmeras guerras que sangraram o solo europeu século após século. O fato de a Áustria estar posicionada no centro do continente, e ter sido atravessada por inúmeras campanhas desde o Império Romano, de alguma forma contribuiu para a montagem da imensa coleção. Para os amantes do assunto, é um roteiro obrigatório, ao qual pelo menos dois dias devem ser reservados.

Duas de suas salas principais são dedicadas a um acontecimento que mudou a História. Lá estão, solenemente dispostos, um automóvel Gräf & Stift conversível, um uniforme e um vestido manchados de sangue, uma pistola FN modelo 1910, e centenas de objetos diversos, inclusive o menu e um pequeno mapa onde estão indicados os lugares destinados aos comensais num banquete a ser realizado na noite de 28 de junho de 1914. Que não chegou a acontecer. Horas antes, o convidado de honra e sua mulher, o Arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, herdeiro ao trono do Império Austro-Húngaro, e a Arquiduquesa Sofia, foram assassinados nas ruas de Sarajevo. Para entender bem a magnitude desse evento, é preciso voltar um pouco no tempo.



Em 1815, a Europa se rearrumava, após a derrota definitiva de Bonaparte em Waterloo. Batidos durante anos pelas tropas de Napoleão, Rússia, Prússia e Áustria decidiram formar uma liga militar a que deram o nome de Santa Aliança. Logo a seguir, o núcleo inicial expandiu-se, dando lugar à Aliança Quíntupla, com o ingresso da Grã-Bretanha em 1817 e da França em 1819. O projeto, cujo objetivo verdadeiro era manter as raízes do absolutismo do Ancien Régime (Regime Antigo), conseguiu manter uma “paz” ligeira num continente massacrado pelas décadas napoleônicas.

A combinação não durou muito. Ambições colonialistas de seus integrantes fizeram o planeta ficar pequeno e eles começaram a pisar no pé uns dos outros. Cinquenta anos passados, apenas a Alemanha, unificada por Bismark, mantinha seus laços com os austríacos. A Inglaterra vitoriana já abandonara o barco, preocupada em consolidar seu vasto império (onde o sol nunca se punha) e a França estava em guerra com a Prússia. Por sua vez, a Rússia dos tzares chocava o ovo da serpente bolchevique. E, ao encerrar-se o século dezenove, um outro pomo de discórdia começava a crescer no sudeste europeu. Os Bálcans.

A região sempre fora um caldeirão de culturas e etnias. Desde os tempos de Filipe II da Macedonia, até a sua assimilação pelos turcos, ao fim da Idade Média, levas de ilírios, gregos, romanos, eslavos, ciganos, muçulmanos, mongóis e outras tribos pelearam por ali e deixaram as sementes de seus costumes, sua língua e sua fé. A hegemonia otomana silenciou as disputas mas não apagou o rastilho de uma inquietude explosiva que fervia debaixo dos pashas. Foi só o império turco dar sinais de fraqueza, a partir de 1890, e os movimentos separatistas começaram a pipocar. E, à medida que afloravam os sentimentos nacionalistas de sérvios, croatas, montenegrinos, macedonios, bósnios, kosovares, albaneses, armênios e outros mais, as potências ocidentais corriam a fim de trazê-los para sua respectiva esfera de influência. Em 1913, o atrito provocado pela disputa estava prestes a explodir. Bastava uma fagulha.

DIVISÃO POLÍTICA DOS BÁLCANS EM 1913


No dia 28 de junho de 1914, seis agentes do movimento conhecido por Crna Ruka (Mão Negra) estavam em Sarajevo. A organização a que pertenciam lutava pela anexação da Bósnia, então sob o domínio do império austro-húngaro, à Sérvia, e o grupo enviado para a cidade tinha como missão um ato terrorista de alto impacto – matar o herdeiro do trono austríaco. Francisco Ferdinando viera em visita oficial, depois de acompanhar as manobras de exército bósnio no interior da colônia. Era um gesto de aproximação, mas, ao mesmo tempo, de reafirmação do mando imperial e algumas vozes haviam alertado para o risco da viagem. Mas foi uma sucessão de desacertos e decisões equivocadas que selou o destino do mundo naquele dia.

A Mão Negra contava com o suporte técnico da polícia secreta sérvia e fora informada dos detalhes das solenidades programadas, inclusive do trajeto da carreata que transportaria o Arquiduque e sua mulher da estação de trem à Câmara Municipal, onde se realizaria o primeiro evento da visita. O veículo a eles destinado era um automóvel fechado mas, não se sabe porque razões, os visitantes reais embarcaram num Gräft & Stift de capota aberta.

O cortejo seguiu pela avenida que ladeia o Rio Miljacka, onde já se posicionavam, armados com pistolas e granadas, cinco dos terroristas. Os quatro primeiros não conseguiram agir. Os carros passaram rápidos demais e o ajuntamento dos transeuntes impediu a ação. O quinto, Nedeljko Ćabrinoviž, foi o único que agiu. E falhou. A granada atirada por ele resvalou na capota do conversível e explodiu debaixo do automóvel que vinha a seguir, danificando-o e ferindo cerca de vinte pessoas. Francisco Ferdinando e Sofia seguiram ilesos. Ao ver o malogro da sua tentativa, Ćabrinoviž  procurou o suicídio - engoliu uma cápsula de cianureto, correu para uma ponte e atirou-se no rio. Falhou de novo. O impacto na água o fez vomitar o veneno e o Miljacka ali tinha só 1,20m de profundidade. Foi imediatamente apanhado pela polícia, que agora iniciava a caça aos demais agentes da Mão Negra.

Enquanto isso, o Arquiduque participava das solenidades na Câmara. Visivelmente irritado, interrompeu o discurso de boas vindas do Prefeito para reclamar da insegurança e dos danos do atentado. Como o mau estar era evidente, resolveram então encurtar a programação, cancelando a visita ao Museu Nacional de Sarajevo e restringindo os compromissos oficiais à ida ao Hospital Municipal. Entretanto, não informaram o chofer do Gräft & Stift da mudança.

O Arquiduque e sua mulher saem da Câmara, minutos antes do atentado

Por esta altura, o último componente do grupo terrorista, o bósnio Gavrilo Princip, convencido de que a missão falhara, abrigara-se numa delicatessen de uma rua secundária da cidade. E quase não quis acreditar em sua sorte quando o conversível carregando os arquiduques começou a manobrar na esquina, para retomar a nova rota que só agora era comunicada ao motorista. Princip tirou a pistola do bolso do casaco, caminhou resolutamente na direção do veículo e, a cinco metros de distância, disparou duas vezes. Uma bala atingiu Francisco Ferdinando na jugular. A outra entrou pelo abdomen de  Sofia.  Meia hora depois, ambos morriam no Hospital que iriam visitar.

O ATENTADO
Ondas de choque varreram a Europa. O Império austríaco acusou o governo sérvio de apoiar o atentado e apresentou um ultimato que praticamente equivalia a uma declaração de guerra. Como nos dominós, as peças começaram a cair. A Rússia declarou suporte à Sérvia e iniciou uma mobilização parcial de suas tropas. Em represália, a Alemanha cerrou fileiras ao lado da Áustria e também convocou seu exército. Receosa de mais um confronto com seu histórico inimigo, a França fez o mesmo. Enquanto a Itália e a Bélgica esperavam para ver, a Grã-Bretanha também se armou do outro lado do canal. Após um mês de intensa troca de acusações, em 28 de julho canhões austríacos dispararam na direção da Sérvia. No dia seguinte, a Alemanha invadiu a Bélgica em sua marcha para Paris. Uma semana depois, a Europa conflagrava-se. Tinha início a Grande Guerra, uma hecatombe que duraria quatro longos anos. Uma combinação perversa de moderna tecnologia bélica e antiquadas táticas de combate elevaria o número de baixas a números jamais vistos. Ao término do cruel confronto, em novembro de 1918, dezessete milhões de mortos, entre eles 8 milhões de civis, jaziam em solo europeu.

O mundo mudara naqueles quatro anos como nunca antes. Os grandes impérios da Europa Central haviam desaparecido. Costumes, tradições e sonhos também tinham sido destruídos pelo horror dos bombardeios, das chacinas,  da impiedosa carnificina que tragara toda uma juventude. O que sobrou foi um sentimento de arrependimento e a promessa de que isto não poderia voltar a acontecer. A Guerra para acabar com todas as Guerras, uma frase do então Presidente americano Woodrow Wilson, definiu o propósito que serviu de base para a criação da Liga das Nações em 1920 e dos tratados que supostamente sedimentariam uma paz duradoura.

Ledo engano. Dezenove anos mais tarde, o pesadelo voltaria e novo apocalipse teria início. Para muitos, o segundo capítulo de uma mesma tragédia – a Segunda Guerra Mundial.


Oswaldo Pereira
Julho 2014


Nenhum comentário:

Postar um comentário