segunda-feira, 21 de julho de 2014

NOITE







Foi de repente. Um grito.

Não, não foi.  Foi mais um sussurro, um suspiro em surdina, um lamento estrangulado. Como se uma vida se tivesse apagado, uma tarde morrido, o luar engolido por uma nuvem negra.

A noite caíra, mais rapidamente do que o costume. Nem dera chance ao poente, desfigurado de suas cores antes mesmo que pudesse tingir a linha do horizonte.

«Diz pra mim...»

«Dizer...o que?»

«Que o dia virá...»

Olhei para a sombra que era ela.

«Creio que sim. Esta não é a última das noites. Não pode ser...»

A sombra agitou-se.

«Não tens certeza... »

Eu tento senti-la com os dedos.

«Não, não tenho. Alguém terá?...»

Lá fora, a noite muda. Não há sons, nem vida, nem morte.

«Este plácido lago negro...»

«Que disseste?...»

«Plácido lago negro... Me veio à cabeça»

Eu afago seus cabelos escuros na escuridão.

«Tenta dormir...»

Os olhos dela. Não os vejo, mas sei que me olham.

«Não posso. Preciso ver se o amanhã chega, se haverá aurora. Tenho de saber até onde este silêncio vai, se já cobriu o mundo ou apenas este vale, esta varanda, este quarto. Quero ver as entranhas desse monstro chamado Destino»

Eu suprimo um sorriso triste.

«Não tens como. Este é um monstro sem intestinos, hidra sem cabeças, ciclope sem olho. É o que é. Anda sem ver, caminha sem ouvir. Mata e faz nascer, cria e descria. Nada valemos para ele, nem nossos sonhos nem nossos pecados»

«Cruel...»

Outro gemido pequeno, preso na garganta.

«Não chora. Este é o pacto. Viver por viver. Só isso...»

«Não pode ser. Tem de haver mais. Tem de haver a promessa das manhãs, o compromisso das estrelas, o penhor da chuva. Temos este direito, de sermos felizes, de sermos...nós...»

Sua lágrima morna cai e escorre em meu peito.

«Poesia. Só lá somos o que sonhamos. Aqui é outra terra, outra lei. Aqui somos apenas o rugir de um instante, uma fração, o átimo de um relâmpago que nasce e morre num segundo, perdido para sempre num céu sem memória...»

«Rebelo-me...»

«Não podes... Estamos presos aqui. Companheiros nesta cela a que chamam existência. Daqui não sairemos vivos. Descansa. Esta pode ser a última noite...»

Ela pega minha mão e coloca-a em seu rosto. Está molhado e frio.

«Beija-me...»

Obedeço. Ela adormece. Fico olhando para o abismo invisível do vale, à espreita de uma manhã incerta.  Que talvez não venha.


Oswaldo Pereira
Julho 2014






Um comentário:

  1. É da ordem do poético dar voz aos seres oriundos dos territórios onde vive aquilo que não se pode nomear

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