Foi de repente. Um grito.
Não, não foi. Foi
mais um sussurro, um suspiro em surdina, um lamento estrangulado. Como se uma
vida se tivesse apagado, uma tarde morrido, o luar engolido por uma nuvem
negra.
A noite caíra, mais rapidamente do que o costume. Nem
dera chance ao poente, desfigurado de suas cores antes mesmo que pudesse tingir
a linha do horizonte.
«Diz pra mim...»
«Dizer...o que?»
«Que o dia virá...»
Olhei para a sombra que era ela.
«Creio que sim. Esta não é a última das noites. Não pode
ser...»
A sombra agitou-se.
«Não tens certeza... »
Eu tento senti-la com os dedos.
«Não, não tenho. Alguém terá?...»
Lá fora, a noite muda. Não há sons, nem vida, nem morte.
«Este plácido lago negro...»
«Que disseste?...»
«Plácido lago negro... Me veio à cabeça»
Eu afago seus cabelos escuros na escuridão.
«Tenta dormir...»
Os olhos dela. Não os vejo, mas sei que me olham.
«Não posso. Preciso ver se o amanhã chega, se haverá
aurora. Tenho de saber até onde este silêncio vai, se já cobriu o mundo ou
apenas este vale, esta varanda, este quarto. Quero ver as entranhas desse
monstro chamado Destino»
Eu suprimo um sorriso triste.
«Não tens como. Este é um monstro sem intestinos, hidra
sem cabeças, ciclope sem olho. É o que é. Anda sem ver, caminha sem ouvir. Mata
e faz nascer, cria e descria. Nada valemos para ele, nem nossos sonhos nem
nossos pecados»
«Cruel...»
Outro gemido pequeno, preso na garganta.
«Não chora. Este é o pacto. Viver por viver. Só isso...»
«Não pode ser. Tem de haver mais. Tem de haver a promessa
das manhãs, o compromisso das estrelas, o penhor da chuva. Temos este direito,
de sermos felizes, de sermos...nós...»
Sua lágrima morna cai e escorre em meu peito.
«Poesia. Só lá somos o que sonhamos. Aqui é outra terra,
outra lei. Aqui somos apenas o rugir de um instante, uma fração, o átimo de um
relâmpago que nasce e morre num segundo, perdido para sempre num céu sem
memória...»
«Rebelo-me...»
«Não podes... Estamos presos aqui. Companheiros nesta
cela a que chamam existência. Daqui não sairemos vivos. Descansa. Esta pode ser
a última noite...»
Ela pega minha mão e coloca-a em seu rosto. Está molhado
e frio.
«Beija-me...»
Obedeço. Ela adormece. Fico olhando para o abismo
invisível do vale, à espreita de uma manhã incerta. Que talvez não venha.
Oswaldo Pereira
Julho 2014
Oswaldo Pereira
Julho 2014
É da ordem do poético dar voz aos seres oriundos dos territórios onde vive aquilo que não se pode nomear
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