O Heeresgechichtliches Museum (Museu de
História Militar) em Viena abriga um dos mais vastos e completos acervos sobre
conflitos armados do mundo. Em seus imensos salões, armas, uniformes,
documentos e memorabilia diversa contam a história das inúmeras guerras que
sangraram o solo europeu século após século. O fato de a Áustria estar
posicionada no centro do continente, e ter sido atravessada por inúmeras
campanhas desde o Império Romano, de alguma forma contribuiu para a montagem da
imensa coleção. Para os amantes do assunto, é um roteiro obrigatório, ao qual
pelo menos dois dias devem ser reservados.
Duas
de suas salas principais são dedicadas a um acontecimento que mudou a História.
Lá estão, solenemente dispostos, um automóvel Gräf & Stift conversível, um uniforme e um vestido manchados
de sangue, uma pistola FN modelo 1910, e centenas de objetos diversos, inclusive o menu e um pequeno mapa onde estão
indicados os lugares destinados aos comensais num banquete a ser
realizado na noite de 28 de junho de 1914. Que não chegou a acontecer. Horas
antes, o convidado de honra e sua mulher, o Arquiduque austríaco Francisco
Ferdinando, herdeiro ao trono do Império Austro-Húngaro, e a Arquiduquesa Sofia, foram assassinados nas ruas de Sarajevo. Para
entender bem a magnitude desse evento, é preciso voltar um pouco no tempo.
Em
1815, a Europa se rearrumava, após a derrota definitiva de Bonaparte em
Waterloo. Batidos durante anos pelas tropas de Napoleão, Rússia, Prússia e
Áustria decidiram formar uma liga militar a que deram o nome de Santa Aliança. Logo a seguir, o núcleo
inicial expandiu-se, dando lugar à Aliança
Quíntupla, com o ingresso da Grã-Bretanha em 1817 e da França em 1819. O
projeto, cujo objetivo verdadeiro era manter as raízes do absolutismo do Ancien Régime (Regime Antigo), conseguiu
manter uma “paz” ligeira num continente massacrado pelas décadas napoleônicas.
A
combinação não durou muito. Ambições colonialistas de seus integrantes fizeram
o planeta ficar pequeno e eles começaram a pisar no pé uns dos outros. Cinquenta
anos passados, apenas a Alemanha, unificada por Bismark, mantinha seus laços
com os austríacos. A Inglaterra vitoriana já abandonara o barco, preocupada em
consolidar seu vasto império (onde o sol nunca se punha) e a França estava em
guerra com a Prússia. Por sua vez, a Rússia dos tzares chocava o ovo da
serpente bolchevique. E, ao encerrar-se o século dezenove, um outro pomo de
discórdia começava a crescer no sudeste europeu. Os Bálcans.
A
região sempre fora um caldeirão de culturas e etnias. Desde os tempos de Filipe
II da Macedonia, até a sua assimilação pelos turcos, ao fim da Idade Média,
levas de ilírios, gregos, romanos, eslavos, ciganos, muçulmanos, mongóis e outras tribos pelearam por ali e deixaram as sementes de seus costumes, sua língua e
sua fé. A hegemonia otomana silenciou as disputas mas não apagou o rastilho de
uma inquietude explosiva que fervia debaixo dos pashas. Foi só o império turco dar sinais de fraqueza, a partir de
1890, e os movimentos separatistas começaram a pipocar. E, à medida que
afloravam os sentimentos nacionalistas de sérvios, croatas, montenegrinos,
macedonios, bósnios, kosovares, albaneses, armênios e outros mais, as potências ocidentais corriam a fim de trazê-los para sua respectiva esfera de influência. Em 1913, o atrito provocado pela disputa estava prestes a explodir. Bastava uma
fagulha.
DIVISÃO POLÍTICA DOS BÁLCANS EM 1913 |
No
dia 28 de junho de 1914, seis agentes do movimento conhecido por Crna Ruka (Mão Negra) estavam em
Sarajevo. A organização a que pertenciam lutava pela anexação da Bósnia, então
sob o domínio do império austro-húngaro, à Sérvia, e o grupo enviado para a
cidade tinha como missão um ato terrorista de alto impacto – matar o herdeiro
do trono austríaco. Francisco Ferdinando viera em visita oficial, depois de
acompanhar as manobras de exército bósnio no interior da colônia. Era um gesto
de aproximação, mas, ao mesmo tempo, de reafirmação do mando imperial e algumas
vozes haviam alertado para o risco da viagem. Mas foi uma sucessão de
desacertos e decisões equivocadas que selou o destino do mundo naquele dia.
A Mão
Negra contava com o suporte técnico da polícia secreta sérvia e fora informada
dos detalhes das solenidades programadas, inclusive do trajeto da carreata que
transportaria o Arquiduque e sua mulher da estação de trem à Câmara Municipal,
onde se realizaria o primeiro evento da visita. O veículo a eles destinado era
um automóvel fechado mas, não se sabe porque razões, os visitantes reais
embarcaram num Gräft & Stift de capota aberta.
O
cortejo seguiu pela avenida que ladeia o Rio Miljacka, onde já se posicionavam,
armados com pistolas e granadas, cinco dos terroristas. Os quatro primeiros
não conseguiram agir. Os carros passaram rápidos demais e o ajuntamento dos
transeuntes impediu a ação. O quinto, Nedeljko Ćabrinoviž, foi o único que
agiu. E falhou. A granada atirada por ele resvalou na capota do conversível e
explodiu debaixo do automóvel que vinha a seguir, danificando-o e ferindo cerca
de vinte pessoas. Francisco Ferdinando e Sofia seguiram ilesos. Ao ver o
malogro da sua tentativa, Ćabrinoviž
procurou o suicídio - engoliu uma cápsula de cianureto, correu para uma
ponte e atirou-se no rio. Falhou de novo. O impacto na água o fez vomitar o
veneno e o Miljacka ali tinha só 1,20m de profundidade. Foi imediatamente
apanhado pela polícia, que agora iniciava a caça aos demais agentes da Mão
Negra.
Enquanto
isso, o Arquiduque participava das solenidades na Câmara. Visivelmente
irritado, interrompeu o discurso de boas vindas do Prefeito para reclamar da
insegurança e dos danos do atentado. Como o mau estar era evidente, resolveram
então encurtar a programação, cancelando a visita ao Museu Nacional de Sarajevo
e restringindo os compromissos oficiais à ida ao Hospital Municipal.
Entretanto, não informaram o chofer do Gräft & Stift da mudança.
O Arquiduque e sua mulher saem da Câmara, minutos antes do atentado |
Por
esta altura, o último componente do grupo terrorista, o bósnio Gavrilo Princip,
convencido de que a missão falhara, abrigara-se numa delicatessen de uma rua secundária da cidade. E quase não quis
acreditar em sua sorte quando o conversível carregando os arquiduques começou a
manobrar na esquina, para retomar a nova rota que só agora era comunicada ao
motorista. Princip tirou a pistola do bolso do casaco, caminhou resolutamente na
direção do veículo e, a cinco metros de distância, disparou duas vezes. Uma
bala atingiu Francisco Ferdinando na jugular. A outra entrou pelo abdomen de Sofia. Meia hora depois, ambos morriam no Hospital
que iriam visitar.
O ATENTADO |
Ondas
de choque varreram a Europa. O Império austríaco acusou o governo sérvio de
apoiar o atentado e apresentou um ultimato que praticamente equivalia a uma
declaração de guerra. Como nos dominós, as peças começaram a cair. A Rússia
declarou suporte à Sérvia e iniciou uma mobilização parcial de suas tropas. Em
represália, a Alemanha cerrou fileiras ao lado da Áustria e também convocou
seu exército. Receosa de mais um confronto com seu histórico inimigo, a França
fez o mesmo. Enquanto a Itália e a Bélgica esperavam para ver, a Grã-Bretanha
também se armou do outro lado do canal. Após um mês de intensa troca de
acusações, em 28 de julho canhões austríacos dispararam na direção da Sérvia.
No dia seguinte, a Alemanha invadiu a Bélgica em sua marcha para Paris. Uma
semana depois, a Europa conflagrava-se. Tinha início a Grande Guerra, uma
hecatombe que duraria quatro longos anos. Uma combinação perversa de moderna
tecnologia bélica e antiquadas táticas de combate elevaria o número de baixas a
números jamais vistos. Ao término do cruel confronto, em novembro de 1918,
dezessete milhões de mortos, entre eles 8 milhões de civis, jaziam em solo
europeu.
O
mundo mudara naqueles quatro anos como nunca antes. Os grandes impérios da
Europa Central haviam desaparecido. Costumes, tradições e sonhos também tinham
sido destruídos pelo horror dos bombardeios, das chacinas, da impiedosa carnificina que tragara toda uma
juventude. O que sobrou foi um sentimento de arrependimento e a promessa de que
isto não poderia voltar a acontecer. A
Guerra para acabar com todas as Guerras, uma frase do então Presidente
americano Woodrow Wilson, definiu o propósito que serviu de base para a criação
da Liga das Nações em 1920 e dos tratados que supostamente sedimentariam uma
paz duradoura.
Ledo
engano. Dezenove anos mais tarde, o pesadelo voltaria e novo apocalipse teria
início. Para muitos, o segundo capítulo de uma mesma tragédia – a Segunda
Guerra Mundial.
Oswaldo
Pereira
Julho
2014