“Seis e meia. Como uma maré enchente, um mar
verde-oliva e caqui começou a movimentar-se. Saindo de
detrás de muros de pedra, de dentro de celeiros, para fora
de estábulos e galpões, do fundo de fox-holes, centenas de
homens como que impulsionados por uma gigantesca mola
foram cercando o sopé do morro, transpondo a primeira
linha de arame farpado, galgando as primeiras inclinações
da subida, espalhando-se pela encosta. Nos instantes iniciais,
só a batida da sola dos coturnos no chão enlameado cortava
o silêncio sepulcral. Durante uns cinco minutos, assim foi.
De repente, o inferno desabou. Primeiro foi o som distante
das granadas dos morteiros saindo do tubo; a
seguir, o cacarejar das metralhadoras, a fuzilaria das armas
automáticas, o estampido das granadas de mão. O Tenente
se adiantou e ordenou:
«Vamos!»
Começaram a subir o morro. A esta altura, centenas
de homens tentavam galgar a subida o mais rápido que
podiam; mas a lama escorregava debaixo dos pés. Alguns
ninhos de metralhadoras alemães estavam a algumas
dezenas de metros acima.
Apesar do fragor da metralha, Genivaldo só
conseguia ouvir a sua respiração ofegante; o ar parecia
queimar os pulmões, a boca secara. Subiu os primeiros
metros a correr. Depois, o ímpeto inicial arrefeceu; os
deslocamentos eram por espasmos: correr, parar, abaixar-se.
E começar de novo. As balas zuniam como abelhas
raivosas, às vezes silvando um assobio agudo quando
ricocheteavam numa pedra, às vezes terminando num
estalido seco quando encontravam o tecido de alguma farda
e penetravam a carne – talvez o ruído mais difícil de
esquecer para quem o ouve. Os brasileiros tentavam revidar.
Aos poucos, os pelotões de morteiros e as seções de
metralhadoras foram respondendo ao fogo. Genivaldo olhou
em torno. Canarinho estava logo atrás; Moterani, Jair e
Benedito, aferrados ao chão à direita. Fez sinal para ficarem
mais afastados. Granadas de 88 começaram a cair longe, à
esquerda, onde estavam os soldados do Batalhão Sizeno.
“Pobres diabos”, pensou Rocha. Tentou achar o resto de seu
grupo. De repente, Adão passou correndo por ele, morro
acima, gritando como um louco:
«Vâmo, putada! A
cobra vai fumar!»
Rocha gritou:
«Adão! Abaixe-se, porra!»
Mas Adão pirara. O bom crioulo brincalhão, que na
véspera ainda fizera graça, havia chegado ao seu ponto de
ruptura. Continuou subindo, peito aberto, indiferente ao
perigo.
Sem pensar em mais nada, Genivaldo levantou-se e
foi correndo atrás dele; os outros também.
O carioca estava a uns dez metros na frente. De
repente, uma bola de fogo acendeu debaixo de seus pés e
seu corpo subiu ao ar num salto mortal e caiu no chão, já
sem uma perna, arrancada na altura do torso e jogada à
distância. Pisara numa schumein.
Rocha chegou nele. No meio da fumaça, viu o rio
vermelho que descia do corpo do soldado e encharcava a
lama. Adão tinha os olhos arregalados e cuspia sangue; a
cor chocolate de sua pele virara um cinzento baço. Gemia
baixinho. Não gritava.
Rocha sentia o coração apertar. O soldado agarrou a
sua mão.
«Cabo... não me deixa morrer aqui sozinho...»
«Tu não vai morrer,
crioulo. Padioleiro!»
Berrou mais forte.
«Padioleiro!»
Canarinho se acercou, rastejando.
«Cabo, vamos sair daqui. Estamos a descoberto.»
Adão continuava segurando a mão de Rocha:
«Pelo amor de Deus, Cabo. Não me deixa aqui
sozinho...»
E Genivaldo ficou ali, debaixo de chuva e fogo, até
que a vida foi-se esvaindo daquele corpo, a mão afrouxando
o aperto, a voz sumindo; até que a cabeça de Adão pendeu
para o lado e um último gemido escapou.
O ataque falhou. Mais uma vez, Monte Castello
negava aos brasileiros o sabor de sua conquista. Os
comandantes passaram os dias seguintes procurando
identificar as causas do fracasso; os soldados procurando
esquecer os horrores passados na encosta. A maioria não
havia conseguido nem iniciar a subida; ficaram presos nos
arames farpados, entrincheirados em buracos, agachados
atrás de pedras, resfolegando na lama, e levado bala de todos
os lados. Com os flancos expostos, eram alvo fácil para os
alemães postados no alto do morro, em Abetaia, em
Mazzancana. Antes das 3 da tarde daquele fatídico 12 de
dezembro, a ordem de retraírem-se já tinha sido dada. Os
vivos retiraram-se para trás da linha de partida. Os mortos
ficaram onde caíram.”
Este é um trecho do
meu livro A Fórmula Etrusca, uma
história ficcional que envolve um soldado brasileiro na Segunda Guerra Mundial,
um príncipe imortal e um repórter investigativo à procura de aventuras. O
trecho acima foi inspirado na malograda tentativa de conquistar uma colina
descalvada dos Apeninos Setentrionais onde os alemães haviam colocado um posto
fortificado. A elevação detinha um importante significado estratégico, pois dali
a Wehrmacht podia controlar a movimentação das tropas aliadas na Rota 64,
impedindo o avanço do 5º Exército Americano para Bolonha.
VISTA AÉREA ATUAL DO MONTE CASTELLO |
Era a terceira
tentativa. No final de novembro, duas arremetidas da 1ª Divisão de Infantaria
Expedicionária brasileira também haviam sido contidas pelos alemães. As causas do
fracasso eram as mesmas: terreno difícil, visibilidade precária para um apoio aéreo
eficaz, efetivo empregado insuficiente para a missão. E uma tenaz resistência
germânica. Naquele ponto, o cinturão de defesa da Linha Gótica era guarnecido
pela 232ª Divisão, uma tropa que misturava meninos de 14 anos recém-saídos da Hitler Jugend (a Juventude Hitlerista) com
experimentados veteranos do front russo,
todos decididos a manter sua posição a qualquer custo. Na sua cabeça, a guerra
ainda poderia ser ganha.
Os brasileiros eram
novatos.
Em fevereiro de 1942,
pressionado pelos Estados Unidos, Getúlio Vargas teve de renunciar à sua tímida
neutralidade e romper relações com os países do Eixo. Imediatamente, navios
nacionais começaram a ser afundados pelos submarinos que rondavam o Atlântico e
tentavam impedir que as Ilhas Britânicas fossem municiadas pelos Aliados. Muita
gente morreu e a pressão para uma declaração de guerra contra a Alemanha, a
Itália e o Japão aumentou, o que acabou por ocorrer em agosto. Paralelamente, o Brasil acolheu bases
americanas no Nordeste, em Fernando de Noronha e, principalmente, em Natal. Chamadas
romanticamente de “Trampolim da Vitória”, eram uma forma de participar do
esforço bélico que unia o mundo contra o nazi-fascismo.
Em 1943, entretanto,
com a tomada do norte da África por britânicos e americanos, o Trampolim perdeu sua importância
estratégica. Para manter ativa a presença brasileira decidiu-se, então, pelo
envio de tropas – uma chance de participar, no futuro, do banquete dos vencedores.
E criou-se a FEB.
Inicialmente
projetada para armar três divisões, a Força Expedicionária Brasileira, dadas
todas as dificuldades de logística e recursos, acabou sendo formada apenas por
uma. Sua formação começou logo no início do ano, mas somente dezoito meses depois,
em julho de 1944, o primeiro escalão embarcou para a frente italiana. Todo esse
tempo foi necessário para transformar os recrutas, na maioria com endemias, problemas
dentários, alguns semianalfabetos e subalimentados, em soldados de verdade.
E, mesmo assim, logo
na chegada à Itália, verificou-se que tanto treinamento quanto equipamento tinham
ficado aquém da dura realidade (até o
uniforme usado pelos pracinhas provou ser inadequado. Além de pouco funcional,
poderia ao longe ser confundido com o dos alemães...). Um esforço
extraordinário, com muito on the job training,
isto é, aprendendo a guerrear em plena guerra, e uma rápida adaptação - foi
desta maneira que a FEB, em setembro de 1943, juntou-se às outras 22 divisões que compunham o 5º Exército.
Após o malogro de 12 de dezembro, um inverno cruel paralisou as ações em todo o front dos Apeninos. Mais uma dura prova para o nosso caboclo, para quem uma temperatura de 20 graus negativos era inimaginável. Mas, assim que o tempo deu um breve respiro, no dia 21 de fevereiro de 1945, os brasileiros de novo atacaram Monte Castello. Era um ponto de honra, um dever com aqueles que tinham tombado nas tentativas anteriores e lá ficado. Desta vez, tudo foi feito como manda o figurino das batalhas. Os aviões da força Aérea atingiram as posições alemãs na hora certa, a nossa Artilharia realizou uma barragem que entrou para os livros de História Militar e os três regimentos de infantaria avançaram em conjunto. No flanco, a 10ª Divisão de Montanha americana deu cobertura e, às cinco da tarde, a bandeira brasileira foi fincada no topo.
DEPOIS DA VITÓRIA |
Nestes setenta anos, muita coisa já se falou e escreveu sobre a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Muita gente criticou a nossa falta de preparação, a desimportância estratégica das nossas ações no quadro geral do conflito e até já classificou toda a operação de tomada do Monte Castello como um grande erro tático.
Eu discordo. Em
1942, nosso exército não via uma guerra há quase cem anos. E, é sempre bom lembrar,
dois anos antes nem os exércitos francês, inglês, russo ou americano, países
que haviam participado da Grande Guerra de 1914-1918, estavam preparados para
os alemães. O rompimento da Linha Gótica, embora sem o fulgor das praias da
Normandia ou da saga de Stalingrad,
apressou a derrocada da máquina nazifascista com a morte de Mussolini e a
tomada da Áustria. E, só para comparar, um ano antes de Monte Castello, o
aguerrido e experimentado 8º Exército inglês, do festejado Marechal de Campo
Bernard Law Montgomery, precisou de quatro tentativas para tomar Monte Cassino,
numa operação em tudo semelhante à da FEB nos Apeninos.
Eu vi os pracinhas desfilando na Avenida Rio
Branco, às vésperas da ida para a Europa. Vi-os de novo no mesmo lugar, quando
voltaram no ano seguinte. Muitos anos depois, conheci pessoalmente vários deles
e ouvi suas histórias pessoais. Foram 239 dias de combate ininterruptos. Das 44
divisões, de várias nacionalidades, que lutaram no Norte da África e na Itália,
só 12 superaram a marca. Até Winston Churchill, em sua mensagem ao Marechal
Alexander em 29 de abril de 1945, em que cita nominalmente as tropas
brasileiras, escreveu: This great final
battle in Italy will long stand out in history as one of the most famous episodes
in this Second World War (Esta grande batalha final na Itália se destacará
na História por um largo tempo como um dos mais famosos episódios desta Segunda
Guerra Mundial).
Por tudo isto,
sempre tive um grande orgulho dos nossos pracinhas.
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2015
Muito bom vc me lembrar as historias que me contou meu pai. Embora indesejável a guerra frequenta a humanidade desde sempre e talvez para sempre. Hoje, pior que uma guerra aberta e ver o carnaval carioca premiar um enredo que fala de uma nação desgovernada por um "governante " sem escrúpulos.
ResponderExcluirO "maior espetáculo da Terra" tornou-se uma bela lavanderia... É. O mundo mudou em setenta anos...
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