sexta-feira, 1 de março de 2013

RETALHOS

 
Ela levanta-se da poltrona, dá um longo suspiro e, lentamente, como se cortasse um pouco da vida, fecha a janela. Faz desaparecer um raio de sol poente. O quarto cai na penumbra.
«Estava uma linda tarde...»
 
A voz dela é triste, cansada. Percebe-se que carrega anos de desventuras no peito. O vento agreste de suas renúncias deixou-lhe marcas. No rosto, no corpo. Na alma.

Acende o pequeno abajur. Uma luz mortiça banha alguns contornos do quarto abafado. A borda de uma cortina velha, as marcas de umidade na parede, a colcha de retalhos.
“Retalhos... Sou feita de retalhos...”, pensa, enquanto um quase soluço sobe para a garganta.
 
 
Retalho de seda vermelha, debruado de uma fita de cetim dourado
A cerveja morna a deixara num limbo desconhecido. Por que aceitara bebê-la? Só porque ele era moreno, parecido com aquele artista... Como era mesmo o nome dele? Não o do artista. O dele. Antônio. Sim, era isto, Antônio. A música era lenta, as luzes suaves. Do limbo passara para o purgatório de uma cama de motel. Primeira vez, primeira dor. Tudo muito rápido. Perguntou ao espelho do banheiro. «É isto?»
 
Retalho de linho branco bordado com corações
...na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida... Capela linda e iluminada, lírios e convidados misturando perfumes. Ela olha para ele e tenta ver o futuro, mas só consegue enxergar o seu rosto, que não é moreno, nem ele se chama Antônio. Ela sorri. Será amor? Não tem certeza. Conheceram-se, curtiram-se, deram-se bem na cama. Acha que dá para o gasto. Depois, o amor vem. Depois se vê...
 
Retalho de cambraia cor-de-rosa com motivos infantis
Êxtase. A mansa sucção em seu mamilo transforma-lhe o corpo exausto, enchendo-o de força e determinação. Agora, pode ver o futuro. É MÃE! Está pronta para a felicidade de sofrer calada, dar corpo e alma sem retorno, ceder sempre, amar de graça, perdoar tudo. Serão muitos retalhos de desenhos intrincados, angústia, glória, orgulho, medo, preocupação, entrega. Sou MÃE...
 
Retalho de percal lilás com listas amarelas
Ela olha para o relógio. Não queria ter olhado, mas a angústia vira-lhe o rosto na direção do inevitável. Ele não vem. Não virá mais. O abrigo dele não é mais o seu corpo, transformado pela prisão da rotina da casa, dos cuidados com a filha, pela falta de opções, pelo desânimo. O dela, da outra, é resplandecente de juventude, talhado em academias. Solar. No fundo da noite do leito vazio ela tenta achar uma estrela.  Recomeçar, ressurgir, re.... Será que vou conseguir?
 
Retalho de morim azul-escuro
“Mas, por que, filha?” Ela sabe que não haverá resposta. Oportunidade, carreira, independência, simples sabor de aventura. A frase gasta - criamos os filhos para o mundo. Quem foi o idiota que disse isto? Provavelmente, não os tinha. Nem filhos nem fibras a serem dilaceradas pela despedida. Um beijinho e tem diante dela olhos que coriscam de ansiedade, como asas que se abrem para o vôo. Adeus...
 Bom dia, solidão. Bom dia, monstro.
 
Retalhos de sarja em várias cores desmaiadas
Retalhos iguais de dias iguais. Semanas resvalando pela mesmice da rotina, do repeteco incessante de noites, madrugadas, manhãs e tardes sem cor nem som, uma gravação engasgada de um monótono ritmo repetido que lhe empurra a vida. Para onde?

Ainda há alguns pedaços de tecido para mais retalhos. Ela não sabe quantos serão.
 
Ninguém sabe...
 
 
Oswaldo Pereira
Março 2013
 
 

17 comentários:

  1. Ser fiel implica em pontualidade, convergências, renúncia, jamais. Essas mulheres não existem, a não ser sob o olhar dos que assim as desejam, passivas na juventude, pachorrentas na idade da prata. Quem lida com minúcias, sedas, temperaturas, peles, acaba por guardar no lugar do coração, Um Tango. A vida é ritmo, melodia, harmonias raras.

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  2. É isso aí, a vida é feita de retalhos.

    Sonhos, desiusões, acertos, desacertos.

    Belo texto.

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  3. Primo você esta cada vez mais inspirado.... Quando vai transformá-los em livro??? Parabéns!!!

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  4. Gostei muito.
    Espero pelos retalhos do cotim, do surrobeco, da vyella, do linho, dos sintéticos, dos artificiais e do pano crú, desse mesmo, de nós.
    Grande abraço.

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    1. Olha! Esse blog tá bombando mesmo. Blog é cultura né? Vou entrar na Internet pra conhecer o cotim, o surrobeco, a vyella. Nem tendo tido uma avó portuguesa, ouvi falar desses panos.

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  5. Belíssimo texto. Real e comovente. Essas mulheres amarguradas com os retalhos que a voida lhes deixou existem sim, estão por aí sobrevivendo e buscando alguma motivação para continuar. Eu mesma conheço algumas...

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  6. mesmo aquelas que parecem desalentadas.....são cheias de poesia....esperança até num futuro que tarda em chegar.....é preciso agarrar a vida....adorei

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  7. Tardiamente deixo o meu comentário: um texto extremamente poético e de um olhar feminino de quem conhece as mulheres.Zezé

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    1. Conhecer as mulheres? Quem sou eu Zezé... Aos setenta e muitos anos, sou apenas um aprendiz...

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  8. Lindo! Virou poeta Oswaldo? Está mesmo bonito, bem escrito, nem de mais nem de menos ....
    Estou impressionada e boquiaberta.GOSTEI muito. PARABÉNS e venham mais para satisfação dos leitores e sua, penso eu de que!

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    1. Obrigado, querida Isabelinha. Quem me dera ser poeta, há tanto para cantar...

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  9. Cada vez me orgulho mais de você,meu querido primo.Mergulhar nos seus textos é uma alegria e sair deles cheia de vida e pensamentos que me levam longe é um presente indescritível.
    Beijo carinhoso.

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    1. Veio "anônimo"... Vou ficar imaginado quem é esta prima querida e de quem é este carinhoso beijo...

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  10. Lindo, Oswaldo, como é você, homem-poesia que só nos faz bem! Um beijão do seu fã!

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    1. Obrigadíssimo, querido Marcelo. Somos, então, fãs recíprocos...

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  11. Amei Oswaldo! Além de escrever maravilhosamente bem ainda canta? Com 74 anos, canto danço, pinto porcelana, cuido de um enorme jardim.... assim é que deve ser a Vida é para ser vivida e, claro vou juntando meus retalhinhos.... uns coloridos outros menos...... mas sempre indo em frente! Parabéns e obrigada.

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