Há exatos 50 anos, um fato pitoresco mexeu com as forças armadas brasileiras. Desde o final da década de 1950, o Brasil vinha aumentando significativamente a exportação de lagostas, abundantes no litoral nordestino, enquanto, no resto do mundo, a pesca estava em declínio. A partir de 1961, companhias francesas solicitaram, e obtiveram, do Governo brasileiro, uma licença para desenvolverem pesquisas na região, visando coletar dados que permitissem uma recuperação das populações do crustáceo em águas internacionais. Pouco tempo depois, a “pesquisa” transformara-se em efetiva captura de lagostas ao longo da costa brasileira.
O Brasil reagiu. Navios da Marinha passaram a patrulhar o litoral e, inevitavelmente, confrontos quase ocorreram, com alguns barcos franceses sendo detidos e obrigados a entregar a carga. Em janeiro de 1962, a corveta brasileira Ipiranga esteve a ponto de por a pique o pesqueiro francês Cassiopée. O tom subiu. Num gesto de boa vontade, o então Presidente João Goulart resolveu perdoar os pescadores e mandou devolver-lhes o que tinham apanhado. No Nordeste, a grita foi geral. Associações de pesca de Pernambuco e de outros estados reclamaram duramente contra o que taxaram de concorrência desleal, dado que os barcos estrangeiros eram muito mais bem equipados que os nossos. Além disso, argumentavam, os franceses praticavam a pesca de arrasto, considerada extremamente predatória e prejudicial.
João Goulart recuou. E foi a vez da França (na época, governada por ninguém menos que De Gaulle) se enfurecer. A famosa frase “o Brasil não é um pais sério” nasceu aí, embora até hoje haja controvérsias sobre quem efetivamente a proferiu.
Paralelamente, em foros internacionais, brasileiros e franceses discutiam uma questão fundamental: a lagosta nadava ou andava? A importância desta definição era crucial. Se a lagosta nadasse, como defendiam os europeus, ela seria peixe, uma criatura do mar, que, naquela época antes das 200 milhas da Revolução de 64, era internacional. Se, por outro lado, ela andasse, seria um crustáceo, um ser da plataforma continental nordestina e, portanto, brasileira. Os franceses contra atacavam, afirmando que capturavam o bicho quando ele, ao pular para cobrir algumas distâncias, nadava. Isto provocou a antológica pergunta do representante brasileiro, o almirante e respeitado oceanógrafo Paulo Moreira da Silva: e por acaso,o canguru, quando pula, vira ave?
Enquanto os debates descambavam para o perigoso terreno da galhofa, as providências militares progrediam. Em fevereiro de 1963, De Gaulle resolveu falar grosso e despachou para o Brasil uma força tarefa com o porta-aviões Clemenceau à frente. Como resposta, o nosso cruzador Barroso e mais alguns navios partiram para o Nordeste. Em Recife, o IV Exército mobilizou-se e, em primeiro de março, todos os quartéis da costa brasileira entraram em prontidão.
Mas, por que eu estou contando isto?
Porque naquele mesmo dia primeiro de março de 1963, eu era o Oficial de Dia do 2º Grupo de Artilharia de Costa, também conhecido como Fortaleza de São João, na Urca. Para quem não é versado em rotina castrense, a função confere ao seu ocupante a responsabilidade sobre toda a área e sobre todas as atividades de guarda, manutenção e vigilância do quartel. Mas, embora a Fortaleza fosse enorme, englobando todo o terreno situado na entrada oeste da baia da Guanabara, inclusive o sitio histórico do Forte Velho, o serviço prometia ser calmo. O Carnaval acabara há pouco mais de uma semana, a maioria dos soldados já estava em final de incorporação e havia previsão de bom tempo. De repente, tudo mudou. A ordem de prontidão foi-me dada por telefone, já tarde da noite, diretamente do Ministério da Guerra. Depois das identificações de praxe, segui o regulamento, entrando em contato com o meu coronel comandante e convocando todos os oficiais da unidade. E aí seguiu-se a azáfama pertinente à preparação para uma eventual ação militar: tropas equipadas, postos guarnecidos, sentinelas reforçadas, munições prontas, linha de tiro preparada. Depois do efetivo contabilizado, os portões foram fechados.
Foram dias de expectativa. Cadê os franceses? Alguém já viu o Clemenceau?
Mas, ninguém é de ferro. E o quartel, além de ficar num dos lugares mais bonitos do mundo, possuía dentro de seu território duas praias paradisíacas, quadras de vôlei, a melhor escola de educação física da época e um serviço de refeições de primeira.
Em 10 de março, tudo estava resolvido. Sem um tiro de parte a parte, os franceses foram embora. Vinte dias depois, eu terminava o estágio na Fortaleza e o meu período no Serviço Militar. Dava baixa como tenente da reserva e “veterano” de guerra... Da guerra que, como Itararé, a batalha que não houve, ficou apenas num rodapé da História. A Guerra da Lagosta.
Oswaldo Pereira
Março 2013
Março 2013
Essa voce nunca tinha contado pra gente. Deixou as boas estorias pro BLog, ne?
ResponderExcluirNão seria "crustáceo"?
ResponderExcluirSeria, não. É. Na primeira, acertei. Na segunda, eu e o meu inefável corretor ortográfico dormimos... Sorry
ExcluirSão fatos como o acima revelado que ajudam a escrever a história de nossas vidas
ResponderExcluirAjudam a escrever a hitória de nossas vidas e também a história do Brasil.
ResponderExcluirBom ter lido, fiquei sabendo a realidade do que aconteceu.
Viva o Brasil.
Cleusa.
Muito bom!
ResponderExcluir"e por acaso,o canguru, quando pula, vira ave?" - genial!!!!