quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

2020, UMA RETROSPECTIVA?

Pensem um pouco... Lembram-se da noite de 31 de dezembro de 2019? E dos desejos e propósitos? Das esperanças e dos projetos? Falava-se, sim, de um surto viral numa cidade chinesa de que ninguém sabia o nome. Mas, era um assunto pequeno, distante e menor, perante a grandeza dos sonhos que vislumbrávamos para os 365 dias que despontavam no horizonte.

Pois é, quem poderia imaginar? Um ano com um numeral tão bonito, simpático até. Dois 20’s, um após o outro. Até em algarismos romanos era charmoso. MMXX. Que cruel decepção...

 

Doze meses que jamais serão esquecidos. Mesmo depois que as gerações agora viventes tiverem desaparecido na poeira, 2020 irá se juntar à galeria dos anos marcados pelo destino e gravados na pedra do tempo.

Diferentemente dos anos comuns, a retrospectiva de 2020 é uma história monotemática. A crônica de uma nota só. Dois meses normais e, em março, a humanidade se deparou com o impensável. A Pandemia. Podia ter sido outra coisa com o mesmo impacto, a chegada de uma nave alienígena, a descoberta da fonte da juventude ou até a revelação de que Elvis, afinal, estava mesmo vivo. Mas, não. O que vai ficar na lembrança e nos arquivos será o COVID-19.

De repente, tudo mudou. Narizes e bocas desapareceram para dentro das máscaras, cotovelos passaram a ser os reis da etiqueta, famílias se distanciaram, o trabalho e o ensino foram para as telas dos laptops e dos celulares, palavras como confinamento, distanciamento social e lockdown dominaram as conversas e os discursos. Fiqueemcasa virou hashtag e as ruas, os bares, os shoppings, os cinemas e os teatros ficaram desertos. O mundo virou um filme-catástrofe.

Como não podia deixar de ser, um cataclismo deste calibre fez aflorar os anjos e os demônios, o melhor e o pior que raça humana tem a oferecer. De um lado, deslumbrou-nos e aqueceu o nosso coração a entrega incondicional e corajosa das equipes médicas à missão de salvar vidas e minorar sofrimentos. Se Churchill vivo estivesse, repetiria sua magistral frase. Nunca tantos deveram tanto a tão poucos.

Do lado negro, assistimos assustados a um festival sem graça de erros, trapalhadas, politicagens, desonestidades e canalhices de toda a sorte de políticos ambiciosos, autoridades incompetentes e mesmo mal-intencionadas, de uma imprensa mundial corrompida e desinformada e de laboratórios gananciosos. A mim, causou-me espanto e inconformismo a ONU ter-se limitado a nos oferecer o triste espetáculo de uma OMS desorientada e alarmista.

Há várias lições a serem tiradas disto tudo. Não sei se vamos aprendê-las. Mesmo com a promessa das vacinas, a herança para 2021 ainda carrega o perigo dos efeitos colaterais da pandemia. Sequelas psíquicas e comportamentais de uma quarentena prolongada, cuidados médicos de outras doenças postergados ou abandonados. Para não falar na ressaca econômica de centena de milhares de negócios fechados, milhões de desempregados e mais milhões descendo ao nível da pobreza.

2020 levou mais do que trouxe. No esporte, nos surrupiou Kobe Bryant, Maradona e Paolo Rossi. Na música, Little Richard, Kenny Rogers, Enio Moriconi e  Eddie van Halen.  Nas telas, Sean Connery, Max von Sidow, Kirk Douglas, Chadwick Boseman e Olivia de Havilland. E o Brasil viu irem embora Nicette Bruno, Aldir Blanc, Moraes Moreira e Flavio Migliaccio.

Trump perdeu, num dos pleitos mais apertados da história yankee. A China nos mandou o vírus e o recado de que não está mais para brincadeiras. O proverbial negócio da China mudou. Agora, o negócio É a China. E as fake news tomaram de assalto todos os veículos de informação (sic), da grande imprensa às redes da web.


Aqui, tivemos o surgimento de um novo regime político, com a transformação do STF em Supremo Tribunal Imperial. Manda que pode e obedece quem tem juízes...

E agora estamos novamente no limiar do dia 31 de dezembro. De repente, o gostinho de ficar fazendo planos e desfiando sonhos ficou amargo. Todo mundo quer ardentemente que o próximo ano seja melhor, bastante melhor. Do jeito que foi 2020, nem precisaria muito. 

Entretanto, é proibido desacreditar. Esperança é uma velhinha teimosa, uma canção eterna, uma flor que não definha nunca.


UM VENTUROSO, ABENÇOADO E FELIZ 2021

Oswaldo Pereira

Dezembro 2020

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

NATAL 2020


Queridos e pacientes leitores deste blog.

UM ABENÇOADO NATAL

e, este ano, em vez de um conto, vai uma louvação


Quero louvar o Natal. E quero ouvir minha voz ecoar pelos caminhos, por ruas agora desertas, envolvidas no silêncio de uma noite escurecida, de almas sós e incertas.

Quero que anjos sozinhos, cansados de tanto de voar por precoces cemitérios, lembrem-se qu’inda há céu e vida, que o canto inda persiste.

E que, apesar de triste, ele evoca os mistérios d’outra noite abençoada, cingida pela estrela guia, pelo brilho da orvalhada, pelo choro de um menino.

Quero agora ouvir o sino, as vozes unidas em preces, em catedrais, ou até, mesmo em simples cantoria, espalhar-se pelos ventos, coros juntados aos centos, mais de mil, mais de um milhão, neste grito, neste rito, nesta fé

Nesta minha louvação

Oswaldo Pereira

Dezembro 2020

domingo, 20 de dezembro de 2020

MUITAS PERGUNTAS


Quando eu devia ter certezas, tenho dúvidas. Onde eu devia achar direção, vejo encruzilhadas. Na hora em que eu preciso de um destino, o mapa está de cabeça para baixo. No momento em que quero um Norte, me dão a Rosa dos Ventos. No instante em que eu preciso de uma orientação sensata de um órgão internacional credível, aparece a OMS.

Foram nove meses de um espetáculo inédito na História. Um planeta inteiro perdido, desorientado, desnorteado, entontecido. E, naturalmente, amedrontado.

O COVID-19 veio nos mostrar quão fracos somos. Quão ovelhas e muares somos. Quão fáceis de emprenhar pelo ouvido somos. E quão facilmente nos desvestimos de nossa apregoada, e suposta, superioridade sobre as outras espécies. Homo sapiens, sei...

Nove meses passados, e não sabemos nada. Vivemos num mundo de achismos, teorias, contradições. De oportunismos, politicagens, egocentrismos, patranhas. Toda a Humanidade refém de um conto de terror, e ninguém diz coisa com coisa.

E, para jogar mais lenha nessa fogueira e aumentar a fumaça que nos cega, aí vem a vacina. Ou melhor, aí vem mais uma controvérsia, mais uma batalha de disses e me disses para exacerbar nosso medo e a nossa confusão.

Perguntas? Sim, eu as tenho, num ponto da minha vida em que já devia ter todas as respostas na ponta da língua.

Há ou não uma pandemia? Estatisticamente, mesmo adotando os números de infecções e mortes fortemente inflados pela mídia e pelas autoridades, o COVID apresenta um grau de contágio igual a qualquer outra virose e uma taxa de letalidade muito menor.

Se tecnicamente não é uma pandemia, é necessário atropelar todos os protocolos exigidos para se fabricar uma vacina sob o discutível argumento de que há uma situação emergencial?

Como tornar obrigatória uma vacina que não passou pelas fases mais importantes do desenvolvimento de medicamentos semelhantes, e adotado desde que o mundo é mundo, que é o teste em animais?

Se é sabido que há, nem que seja minimamente, o risco de distúrbios colaterais, até de longo prazo, na aplicação das vacinas, por que fazê-la em fatias etárias da população nas quais a incidência da doença causada pelo vírus e a probabilidade de óbito é moderada, pequena ou quase nula?

Por outro lado, se a vacina é absolutamente segura, porque alguns laboratórios estão exigindo uma declaração de isenção de responsabilidade de quem a recebe?

A vacina de maior grau de confiabilidade garante imunização de 95%. Se aplicada a todos os brasileiros, ainda 10 milhões (5% de 200 milhões) ficariam desprotegidos e expostos ao COVID. Após nove meses, o número acumulado de casos de coronavírus no Brasil é de 6,5 milhões. Faz isto algum sentido?

Tenho procurado me afastar do noticiário. Eles só me trazem dúvidas. E o que eu preciso é de respostas...

Oswaldo Pereira

Dezembro 2020

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

PRECONCEITOS



Sempre fui um ferrenho opositor de qualquer forma de racismo. Em nome desta convicção defendi, no decorrer da minha longa vida, amigos e colegas meus de demonstrações de intolerância a cores e etnias.

O recente caso ocorrido numa partida da Champions League, em que os dois times abandonaram o campo em repúdio a um alegado episódio de preconceito racial do quarto árbitro contra Pierre Webó, membro da comissão técnica do Istanbul Basaksehir, adversário do PSG, faz-me pensar.

Pelo relato da imprensa, o juiz teria se referido a Webó, que já havia sido advertido com um cartão amarelo por reclamar acintosamente da arbitragem, como “aquele negro ali”.

E aí eu me lembrei de um texto que escrevi em fevereiro de 2017, intitulado MEDO DAS PALAVRAS, que transcrevo a seguir.

“Em um mundo que progressivamente depende da comunicação, as pessoas passaram a ter medo das palavras. Coisas que antes eram ditas com naturalidade, voando livremente no cotidiano coloquial de gerações, foram de repente apanhadas por furores de reprovação, enjauladas como bactérias perigosas, tachadas de ofensivas.

Não sei por que artes de uma memória culpada, certos vocábulos perderam sua inocência e, trancafiados por uma rigorosa censura, foram banidos da conversação ligeira. Tornaram-se párias, anátemas, injúrias. Alguns podem até, se ditos em alta voz e em público, servirem de base para ações penais e processos tenebrosos.

É claro que insultos e xingamentos são agressões verbais e muitas podem até levar a ofensas graves, de que todo cidadão tem o direito de se defender na Justiça. Um princípio legal que vem do tempo dos romanos. Mas, para existir o crime, tem de haver a intenção. Não é a palavra que isto determina, e sim o animus do ofensor, a sua vontade de aparelhar o vocábulo de uma intenção de ferir moralmente o ofendido.

Estou enchendo a paciência de vocês todos com este palavrório para dizer do meu espanto em saber que a palavra mulata está sendo vetada neste iminente Carnaval carioca. Cáspite!, para usar um termo muito em voga do tempo em que a mulata era sinônimo de rainha dos nossos sambas e marchinhas. A mulata sempre foi o símbolo da proverbial tolerância dos nossos descobridores com relação à raça, exatamente a ausência de preconceito que uniu lusos e africanos, neste proclamado caldeamento de etnias que é a marca da pele dos brasileiros.

Demonizar esta palavra, só porque algum energúmeno descobriu que mulata foi uma corruptela de mula em tempos de Brasil Colônia é o mesmo que, de agora em diante, colocar no Index o adjetivo coitado que, todos sabem, é o particípio passado no verbo coitar, um reconhecido sinônimo do verbo f..der. Coitado quer dizer, assim, ... você já adivinhou.

Mas, já que a moda é a dos eufemismos, e palavras antes inocentes viraram ameaças à paz social, eu, do alto dos meus 76 anos, vou reivindicar meus direitos. A partir de agora vocês estão proibidos de me chamar de Velho (conota coisas gastas, usadas, imprestáveis), Idoso (vem de ido, acabado, indica partida, desaparecimento), Senior (um inadmissível anglicismo, usado preconceituosamente nas entradas de cinema e nos cartões de transporte urbano), Coroa (termo que atenta não só contra a lógica, pois o que tem este adereço real a ver com idade?, como também insinua uma certa feminilidade), Tio (sou filho único e sobrinhos os tenho só por afinidade) e, em hipótese nenhuma, digam que estou na 3ª Idade.  Terceira é sempre uma coisa inferior, terceira classe, terceira categoria, terceira divisão, terceiro mundo...

Nada disto. Se quiserem, tratem-me de jovem há mais tempo. Ou simplesmente pelo meu nome. Porque, se usarem algum dos termos do parágrafo anterior, eu chamo a Polícia...”

Oswaldo Pereira

Dezembro 2020

domingo, 6 de dezembro de 2020

ARCA & COVID

 



Segundo narram as Sagradas Escrituras, a Arca de Noé, depois de começar a navegar assim que as águas do Dilúvio a elevaram do solo de Canaã e manter-se flutuando durante os 40 dias da tormenta, ainda singrou uma Terra totalmente coberta de água (20 pés acima da mais alta montanha) por mais 5 meses, até encalhar no cume do monte Ararat.

Interpretações bíblicas datam todo esse acontecimento com uma precisão de dar inveja. Segundo elas, a chuvarada começou em 6 de maio de 2349 a.C. e Noé só ancorou seu transatlântico na montanha turca em 30 novembro do mesmo ano.

E eu, que já algum tempo, em meus devaneios solitários de noites insones, percebia uma certa analogia poética dos nossos dias pandêmicos com a passagem bíblica (uma Humanidade confinada na barcaça do Medo, navegando um mar de horrores viróticos e vivendo na esperança de uma promessa firme para se salvar), tive quase uma epifania quando comparei as datas.

O COVID, embora tenha dado o ar de sua desgraça ao final do ano passado em Wuhan, só se tornou efetivamente global, ou seja, com incidência em grande escala nos cinco continentes, no segundo trimestre de 2020. No dia 2 de dezembro, o Reino Unido deu início efetivo à vacinação de seus súditos.

Chegamos ao Ararat?  

A Bíblia não fala do que aconteceu a seguir com muitos detalhes. Há o lance do arco-íris e da pomba com o galhinho de oliveira no bico. Mas, cá prá nós, será que você consegue imaginar a louca euforia que teve ter dominado bichos e gente? A fome de coisa melhor que as rações controladas servidas na Arca, o desejo de correr em terra firme, sentir o vento lambendo crinas, penas, pelos e cabelos, de banhos em riachos e cascatas. A satisfação de cios contidos por meses nos porões da nave. O deslumbramento de começar a andar por uma Terra renovada, verdinha como a Primavera, pronta para ser repovoada.

É isso que vai acontecer conosco? Embora ainda exista um receio, até certo ponto justificado, com relação às vacinas, tenho certeza que muitas centenas de milhões de pessoas, exaustas e apavoradas pela mídia irresponsável, irão voluntariamente procura-las. Apesar de os Governos não falarem abertamente em obrigatoriedade, ela vai acabar sendo virtualmente imposta pelas restrições que serão estabelecidas para aqueles que decidirem não se vacinar.

Assim, pelo bem ou pelo mal, grande parte da população do planeta, queira ou não, vai receber em seu bracinho uma picada americana, alemã, belga, russa ou chinesa.

Imaginando positivamente, isto pode significar que, com bilhões de seres devidamente vacinados, a pandemia seja levantada nos albores de 2021. Vamos partir para os novos Loucos Anos 20, exatamente um século depois? Vamos, em bom tupiniquim, arrebentar a boca do balão?  Tirar o atraso? Balançar a roseira?

Ou fazer como Noé e sua família que, por uma razão não explicada, só saiu de arca um ano depois de chegar ao Ararat?

Oswaldo Pereira

Dezembro 2020

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

MARADONAS


No meu último texto, eu escrevi mal tracejadas linhas sobre a agressividade que campeia pelas redes sociais e a opção pela polêmica e pelo confronto verbal nos relacionamentos sociais. Discute-se apaixonadamente por tudo e por nada, desde ideologias de gênero, vacinas contra a COVID e até se a Terra é redonda ou plana.

Como não podia deixar de ser, a morte de Diego Armando Maradona acendeu nova cizânia, mesmo entre aqueles que nunca adentraram em um estádio de futebol. Trincheiras de argumentação foram cavadas para defender ou atacar o jogador, indo desde aqueles que o idolatram aos que o denigrem.

No cerne da disputa está a propalada dicotomia que, segundo a maioria, segregou o fabuloso gênio da bola do homem amargo, instável e subjugado pelo vício das drogas. É como se tratassem de duas pessoas, irreconhecíveis e irreconciliáveis entre si, um ser bipartido que nem a mais profunda bipolaridade conseguiria explicar.

Todas as mensagens de despedida, de amigos, de contemporâneos dos gramados, de jornalistas e comentaristas esportivos, da gente comum que o viu jogar, acentuavam esta imagem, tentando usar a figura de um Maradona super-herói de chuteiras para compensar o Maradona infeliz e derrotado pela cocaína. A frase de Paulo Roberto Falcão, o ex-jogador brasileiro, é exemplo disto. Maradona no campo foi um deus; na vida, foi humano.

Para mim, Maradona foi um só e tudo o que lhe aconteceu é decorrência de seu desmesurado talento desportivo e efeito do endeusamento que experimentou desde que apareceu pela primeira vez com a bola nos pés.

Garoto pobre de periferia, aos 9 anos já assombrava quem o via jogar. Numa ascensão meteórica, nos dez anos seguintes, operou milagres para os times que defendeu, o Argentinos Juniors e o Boca Junior e deu início ao culto que o entronizou no Olimpo dos torcedores portenhos. Faltava conquistar o mundo, e isto ele fez, primeiro no Barcelona e depois no Napoli. A inesquecível campanha de Maradona no time italiano não só fez com que uma equipe antes medíocre subisse aos píncaros das tabelas europeias como conquistou o coração de uma cidade inteira. A ponto de os napolitanos torcerem pela Argentina e contra seu país na Copa de 1986, só porque Maradona estava em campo.

Essa Copa, inclusive, marcou o seu auge. A vitória do time argentino sobre a Inglaterra, apenas quatro anos depois que os britânicos haviam humilhado a Argentina na Guerra das Malvinas, ganhou cores mais vivas do que uma simples partida de futebol. Era uma “vingança”.

E eu fico pensando. Raríssimas pessoas na História experimentaram essa sensação de mundo a seus pés, de adoração de milhares de vozes, de bajulação incontida, de declarações apaixonadas, de triunfo e de glória. Como administrar isto tudo? Como relativizar uma visão de paraíso, de poder aparentemente ilimitado? Como suportar o fim deste sonho?

Não é outro Maradona, o que desceu do Valhala. É o mesmo homem que, de pibe nos campos de terra das favelas de Buenos Aires subiu aos céus. E teve de descer.

Oswaldo Pereira

Novembro 2020

terça-feira, 24 de novembro de 2020

DEFAULT



Mais um confronto racial. Como se não bastassem a guerra midiática em torno de lockdowns e vacinas, as vociferações pró e contra medidas e comportamentos durante a pandemia, as discórdias provocadas por eleições e fraudes, o tiroteio das fake news, os patrulhamentos do politicamente correto, os dedos em riste em torno da ideologia de gênero.

De repente, parece que a humanidade confinada e de máscaras resolveu brigar por tudo e por nada, com imprensa e redes sociais cavando um campo de batalha, onde trincheiras opostas despejam torrentes de impropérios e ameaças virtuais que terminam por desaguar em confrontos nas ruas e nas praças.

Será que nos tornamos violentos, de uma hora para outra? Será que a mansidão e a concórdia evaporaram-se num piscar de olhos, exatamente na hora em que chegávamos ao século XXI e deveríamos estar preparados para administrar nossa civilidade?

Lamentavelmente, a resposta é NÃO, para ambas as perguntas. A triste verdade é que sempre fomos assim. Faltavam apenas os meios para que a nossa ferocidade se revelasse no quotidiano. As antigas discussões com vizinhos ou as brigas de torcidas nas arquibancadas dos estádios receberam um up grade com a proximidade disponibilizada pela Internet. À distância de um deslizar de dedos ágeis na telinha de um celular, temos o rosto virtual de quem, certamente por implicância, ignorância ou simples maldade, discorda da nossa sagrada opinião. E tome de dislikes insultuosos e ofensas cabeludas.

Somos assim. Os dois milhões de anos de existência do homo sapiens não foram bastantes para abrandar a visceral marcação de território que está na base do nosso comportamento. Seja por poder, desejo ou crua inveja, a agressividade instintiva das cavernas ainda corre em nossas veias. É o metal de que somos feitos. É o nosso default...

Oswaldo Pereira

Novembro 2020

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

GUINADA PARA O CENTRO

 





Com uma rapidez de dar inveja a muito americano do Norte, o resultado das eleições municipais brasileiras estava praticamente apurado antes que soasse a meia-noite do último dia 15, o próprio dia do pleito. Mesmo um atraso pouco explicado com relação à cidade de São Paulo e uma entrada de hackers no sistema não impediram que, ao amanhecer de segunda-feira, analistas, comentaristas, âncoras, colunistas e outros palpiteiros políticos já pudessem nos inundar com sua interpretação esclarecida dos humores institucionais da Nação.

Não sou, e nem quero ser, um analista político. Desde quando me candidatei, e depois me arrependi, a representante de turma no primeiro ano do Curso de Direito da PUC, que sempre senti um certo desconforto com os meandros da vida política e com seu jogo furtivo e calculista.

É claro que entendo, e aceito, ser impossível a existência hierarquizada de qualquer aglomerado social sem a atividade política. Ela faz parte do DNA do que chamamos Sociedade Humana. O problema é que ela leva à procura do poder. E este afrodisíaco pode transformar, e tem transformado, a disputa pela preferência do eleitorado num campo pantanoso e minado, onde alianças tornam-se conchavos, acordos travestem-se em armadilhas e honestidade de princípios num vale-tudo de promessas vazias e descaradas mentiras.

Mas, mesmo com toda esta alergia epidérmica ao assunto, eu não posso e, como todo cidadão consciente, não tenho o direito de abstrair-me do que acontece com a vida política da comunidade em que vivo. E de oferecer, também, o meu palpite.

Acho que todo mundo concorda que foi uma guinada para o Centro. Quem ganhou foi a política tradicional, a mesma que prepondera sobre a Câmara e o Senado e ainda tem nas mãos a chave da governança, apesar de todos os esforços estapafúrdios do Supremo Tribunal Federal para legislar.

Muitos interpretam isto como uma derrota para o Governo. Eu discordo. Bolsonaro, mui sabiamente, não se jogou de corpo e alma neste pleito. Nem possui ele uma base partidária para tanto. Sua atuação não passou da indicação, num twitter, de alguns candidatos.  E, se lembrarmos bem, muito antes de 15 de novembro ele já sinalizava uma aproximação com o Centrão.

Outros alardearam o ressurgimento de uma “onda vermelha”. Não consigo atinar onde viram isto. O PT simplesmente derreteu. Algum avanço da esquerda veio do PSOL e do PC do B e, mesmo assim, pontualmente e ainda não confirmado em São Paulo e Porto Alegre, onde a disputa foi para o segundo turno. Dos municípios em que a eleição ficou definida, os partidos identificados com a esquerda mais radical vão controlar menos de 5%.

Assim, o fato do pêndulo do poder deslocar-se para o meio do espectro político acaba por sinalizar uma mensagem, tanto para a esquerda como para a direita, com relação a 2022. Será que esta polarização, tão ardente nas redes sociais e mantida candente pelo comportamento irresponsável da mídia brasileira, arrefece na hora do voto ir para as urnas?

 

Oswaldo Pereira

Novembro 2020

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

NOSSO QUINTAL



Muita gente ligada nas eleições americanas. Pode-se até entender, dada a liderança global dos Estados Unidos. Mas, que tal abaixar a vista um pouco e focar no nosso próprio quintal? Daqui a três dias, vamos eleger aqueles que vão literalmente cuidar (ou não) dele...

É a votação que mais nos aproxima dos nossos políticos. Prefeitos e vereadores convivem conosco em nossas cidades. São aqueles que estão mais perto de nossas necessidades, de nossos anseios, de nossas mazelas. Nos grandes centros talvez isto se perca na sua magnitude urbana e afaste um pouco os mandatários de seus mandantes.

Mas, nas cidades pequenas, o contato pode ser diário. Afinal, o eleito é o concidadão que normalmente partilha o mesmo restaurante ou o mesmo clube, o vereador é o vizinho da esquina, filho da Dona Maria... Estão à mão para receber de viva voz as reclamações, os pedidos e (mais raramente, claro) os elogios.

Meu simplório critério para julgar o trabalho de um Prefeito e de vereadores foi sempre baseado no que eles fazem, ou prometem fazer, pela minha esquina. As grandes considerações nacionais, a solução de uma agenda social e política abrangente eu uso para avaliar Presidentes e congressistas.

E é com este olhar que tenho tentado examinar os candidatos que se apresentam para a próxima eleição no Rio. Bem...

Às vezes, eu me pego pensando: Como chegamos até aqui?... Por que eu fico com a sensação que a minha esquina não sobreviverá ilesa a quatro anos sob a administração de qualquer um deles? Por que será que a escolha dos vereadores tem de passar por centenas de candidatos sem sobrenome? (Parece que estamos na Idade Média, quando ainda inexistia o nome familiar e as pessoas eram identificadas pela sua profissão ou pelo lugar de onde vinham). E me pergunto:

Será que isto é o melhor que temos?

Oswaldo Pereira

Novembro 2020

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

AMERICANAS 2020

 




Qualquer que seja o seu resultado, as eleições americanas de 2020 vão fazer parte dos documentários do Canal História (ou seu equivalente tecnológico) de daqui a 100 anos. Como tudo o que se refere a este ano sem pé nem cabeça, engendrado por alguma divindade de ressaca. Se o planeta ainda estiver girando no mesmo sentido até o próximo século, estes doze meses que (espero com ansiedade) terminarão no último dia de dezembro serão esquadrinhados por analistas horrorizados. Como foi possível?...

Mais um ícone desfigurado pela máquina de moer carne de 2020, o processo eleitoral no nosso grande irmão do Norte sempre fora para mim, desde o momento em que balbuciei pela primeira vez a palavra Democracia, a corporificação santificada do Governo do povo, para o povo e pelo povo. Que inveja no meu tenro coração tupiniquim. Um pleito limpo como os lençóis dos comerciais do OMO, uma apuração segura e precisa, que nem o tic tac do meu Omega de pulso. No final, vencido e vencedor sorrindo para as rolleyflex dos repórteres, desejando o melhor para a Nação. Tudo em vibrante Technicolor, enquanto aqui em Pindorama havia votos de cabresto, urnas violadas, derrotados saindo pela porta dos fundos.

Agora, o filme a cores já não parece tão musical como as produções hollywoodianas com Esther Williams na monumental piscina clorada. E a Pandemia tem a ver um pouco com isso.

Para evitar que o confinamento elevasse significativamente o percentual de abstenção, o voto pelo correio foi maciçamente incentivado. Um complicador, dado que, de Estado para Estado, a data limite para sua inclusão na contagem divergisse entre os que só os admitiriam até o dia da eleição e os que estendiam o prazo até o recebimento do último voto.

Numa disputa acirrada e cabeça com cabeça, isto criou o fumegante pomo de discórdia que arde nos noticiários e vai arder ainda mais nas ruas. E aí, outro ingrediente explosivo promete azedar ainda mais o caldo.

Os americanos já tiveram outras eleições apertadas. Kennedy, por exemplo, venceu Nixon por uma diferença mínima, Bush suplantou Gore por uma ainda menor. Rivalidades sempre existiram. O problema agora é outro. Chama-se Polarização. Não são opiniões divergentes sobre um mesmo fim. São fins diferentes capturando opiniões.

Dentro de toda essa bruma, começam a pipocar denúncias de fraudes, envolvendo principalmente as cédulas enviadas pelo correio. Trump já afirmou que não vai deixar barato e prepara sua ofensiva nos tribunais. E, de repente, só no ano que vem saberemos que ganhou.

Já não se fazem eleições americanas como antigamente...

Oswaldo Pereira

Novembro 2020


sábado, 31 de outubro de 2020

R.I.P. 007



Em março de 1961, a deusa da sorte bafejou a fronte de um escritor britânico. Seu nome era Ian Fleming.

Fleming, filho da aristocracia escocesa, tinha um passado importante como oficial de inteligência durante a Segunda Guerra Mundial e, terminada a guerra, seguira uma carreira de altos e baixos como jornalista. Em 1952, entretanto, resolveu exercitar seus dotes de ficcionista, temperados pelos anos de experiência no submundo de espiões que vivenciara e, com poucas chances de sucesso, conseguiu publicar Casino Royale, uma spy novel, gênero desacreditado pelos puristas literários da época.

Mais por prazer próprio, entretanto, Fleming continuou editando suas obras e obtendo um sucesso moderado. Até a data que acima mencionei. Numa reportagem da prestigiada revista LIFE naquele mês de março, seu livro From Russia With Love aparecia como um dos preferidos do Presidente John Kennedy.

A catapulta do sucesso havia sido acionada. Centenas de milhares de leitores ávidos correram às livrarias para adquirirem os thillers de Fleming. Com a Guerra Fria recrudescendo, seus enredos encaixavam-se como uma luva no imaginário de conspirações que dominava corações e mentes.

Logo, o agudo faro de dois produtores de Hollywood detectou alguma coisa em seu radar. Harry Saltzman e Albert Broccoli, ainda no segundo time dos grandes nomes da indústria, resolveram apostar. Com um orçamento modesto, decidiram produzir Dr. No, um dos livros de Fleming.

Caracteristicamente, o escritor impôs participar ativamente, não só na confecção do roteiro, como na escolha do ator para encarnar o personagem principal de suas histórias, um agente secreto britânico chamado James Bond.

Um dos nomes sugeridos foi o do galã inglês Cary Grant. Fleming discordou. Queria alguém menos famoso. Grant era Grant em todos os seus filmes. O escolhido teria de encarnar a persona do espião que criara. Como guia, ele próprio havia feito um esboço do rosto de seu herói. A solução foi instituir um concurso, com candidatos menos emblemáticos.

ESBOÇO FEITO POR FLEMING



Um dos primeiros a aparecer foi um ator escocês de 32 anos. E, bingo, suas feições rudes e seu ar macho encaixavam-se no desenho de Fleming. É ele!  o escritor afirmou.


Thomas Sean Connery, o postulante escolhido, havia feito um pouco de tudo. Marinheiro na Royal Navy, halterofilista, chofer de caminhão, banhista salva-vidas, modelo, jogador de futebol. Recebera até uma proposta do Manchester United. Mas, outros convites haviam-no seduzido.

Trabalhando nos bastidores do King´s Theatre em 1951, Connery acabou fazendo parte do elenco do musical South Pacific. A partir daí o jovem escocês, em grande parte devido a seu porte atlético, foi sendo convidado para vários papéis, tanto no teatro como no cinema. Eram papéis subalternos, como o de um soldado inglês trapalhão em The Longest Day (O Dia Mais Longo), mas que o mantinham no estoque de atores à disposição das agências de talentos.

Falar qualquer coisa a respeito do sucesso de Sean Connery como James Bond é chover no molhado. A História da segunda metade do Século XX nunca estaria completa se não registrasse como um de seus principais ícones a figura de Connery/Bond. Mesmo que a franquia 007 se perpetue, a imagem inicial do agente britânico com licença para matar nunca será esquecida.

Mais importante que tudo é que Sean Connery sobreviveu ao papel. Desistindo primeiramente depois de You Only Live Twice, retornando sob pressão em Diamonds Are Forever, Connery teve a percepção de que sua carreira tinha de ser mais do que isto. E deu início ao seu legado como ator carismático em dezenas de filmes como Marnie, The Man Who Would Be King, The Name of the Rose, Highlander, Robin and Marriam, The Rock e The Untouchables, pelo qual foi premiado com o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, perante uma plateia que o aplaudiu de pé em 1987 no Dorothy Chandler Pavillion.

Paralelamente ao seu grande sucesso nas telas, Sean Connery foi sempre um resoluto defensor de sua terra natal. Propugnando incansavelmente pela independência da Escócia, compareceu vestido com o kilt do clã McLean na cerimônia em que foi agraciado pela rainha Elizabeth II com o título de Sir.

Qualquer um que me conhece sabe que sempre fui um juramentado apreciador dos filmes de Bond. A febre me pegou logo em 1962, quando assisti a Dr. No pela primeira vez num cinema carioca. De lá para cá, li todos os livros de Fleming, colecionei todos os VHS, substitui-os por BlueRays e, com frequência, os revejo com reverência ritual.

Por uma estranha coincidência, havia apenas terminado de rever Goldfinger pela enésima vez quando a notícia da morte de Sean Connery me apanhou. Não tive outra escolha. Preparei com profunda meticulosidade um médium dry vodka martini. Shaken, not stirred, é claro. Levantei a taça em direção ao poente que minguava na minha janela. E disse. R.I.P. 007.

Oswaldo Pereira

Outubro 2020

sábado, 24 de outubro de 2020

PERIGOSO TERRENO DA GALHOFA


APPARICIO TORELLY - O BARÃO DE ITARARÉ


Seu nome era Apparício Fernando Brinkerhoff Torelly. Usou muito o pseudônimo Apporelly, mas era mesmo conhecido como o Barão de Itararé. E foi um dos maiores, senão o maior, jornalista satírico da imprensa brasileira.

Os dotes irreverentes de Apparício evidenciaram-se ainda na adolescência, quando, aluno de um colégio católico no Rio Grande do Sul, sua terra natal, criou um jornaleco chamado “Capim Seco”, em que satirizava a disciplina de seus mestres jesuítas.

Em 1925, largou os estudos de Medicina para dedicar-se inteiramente ao Jornalismo. Nesse mesmo ano, foi contratado por um jornal recém-criado por Irineu Marinho. O Globo. Num apêndice semanal chamado A Manhã, Torelly destilava sua superior verve humorística contra os políticos de então.

O sucesso foi tanto que, em meados da década de 1930, Apporelly despediu-se dos Marinho e criou seu próprio jornal. Tirando apenas o til da publicação que comandava no Globo, lançou aquele que seria, por excelência, o mais lido semanário político de sua época. A Manha.

Como não podia deixar de ser, seus editoriais, recheados de humor cáustico e gozações impiedosas a respeito de autoridades e governantes granjearam-lhe inúmeras e incômodas inimizades e reações violentas. Como opositor de Getúlio Vargas em pleno Estado Novo, foi preso várias vezes e teve sua redação empastelada outras tantas.

Certa vez, por ter escrito um artigo burlesco sobre a Revolta da Chibata, provocou a ira da Marinha e foi espancado por oficiais daquela força. Fiel ao seu estilo, mandou colocar na porta dos escritórios da Manha a seguinte tabuleta: Entre Sem Bater.

Este era, sem dúvida, o grande talento do Barão de Itararé. Brincar com as palavras, construir frases cuja lógica surpreendente mesclava humor com perspicácia. Centenas delas ficaram famosas e são até hoje citadas em homenagem ao grande frasista que era.

Exemplos?

“Os vivos serão governados, cada vez mais, pelos mais vivos”

“De onde menos se espera, é que não vem nada mesmo...”

“Pobre quando come frango, um dos dois está doente...”

“Não é triste mudar de ideias. Triste é não ter ideias para mudar”.

“Viva cada dia como se fosse o último. Um dia você acerta.”

“Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados...”

E por aí vai. Uma das mais famosas expressões de Torelly era a que utilizava para qualificar episódios especialmente escandalosos da vida nacional. Estamos deslizando para o perigoso terreno da galhofa.

E eu fico pensando. Que descrição mais perfeita dos acontecimentos recentes de nosso presente. Um dos mais procurados e perigosos traficantes de droga do planeta saindo pela porta da frente do presídio, beneficiado por um habeas corpus inacreditável de um Juiz do Supremo (Supremo!!!) Tribunal Federal. Um Senador (Senador!!!) da República sendo apanhando com dinheiro ilegal enfiado nos fundilhos.

É, caríssimo Barão. Perigoso terreno da galhofa.  No seu tempo ele já existia. Hoje, o que temos é um caminho escorregadio que, da galhofa, talvez nos faça resvalar para terrenos mais pantanosos, de onde dificilmente se volta...

Oswaldo Pereira

Outubro 2020

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

CORONAVÍRUS - UM CONTO (PARTE II)


 

Há algum tempo, escrevi “Coronavírus – Um Conto” (se quiserem, releiam-no neste LINK). Agora, vai a Parte II.

A última reunião acontecera em dezembro. Agora, outubro de 2020, a magnífica mansão agitava-se novamente. E, claro, com aquela agitação contida e eficiente de uma equipe altamente treinada de excelentes profissionais.

Os sete proprietários haviam chegado na noite anterior, como sempre. O breakfast já fora servido e a reunião iria, também como sempre, ter início às 9 da manhã.

Desta vez, no entanto, quebrando o protocolo, os seis homens entraram primeiro na grande sala. Quando Madame Z surgiu, uma salva de palmas a recebeu. Todos os outros membros do seleto grupo prestavam assim sua homenagem à mentora de um dos mais bem-sucedidos planos de sua recente história.

Assim que todos tomaram seus lugares ao redor da grande mesa, Herr Doktor, o alemão, como de praxe, foi o primeiro a ter uso da palavra.

«Senhores, quero propor um voto de louvor à nossa colega. Uma estratégia impecável! E com resultados muito acima do esperado. Parabéns, cara senhora.»

Realmente, a linha de ação proposta pela chinesa no final do ano anterior ultrapassara em muito as projeções e as expectativas. O aproveitamento de um surto gripal causado por uma variação do vírus SARS, na cidade de Wuhan, para causar uma epidemia global e gerar uma crise sem precedentes no século, desencadeando um pânico em escala planetária, proporcionara aos sete membros oportunidades negociais extraordinárias.

Com o auxílio, involuntário ou não, de governos, autoridades médicas, formadores de opinião e, last but not least, da própria OMS, os impérios financeiros controlados pelos sete haviam auferido ganhos substancialmente maiores do que os percentuais anteriormente estimados.

Zhivago, o russo, cujo comando do mercado mundial de ouro era indisputável, estava radiante.

«O preço do metal está no mais alto nível dos últimos 20 anos. O bastante para que um agradecido Putin passasse a cortejar-me. Grande parte das ações do laboratório que está distribuindo a Sputnik V já está em nossas mãos. Os lucros projetados são astronômicos. Spassiba, Madame Z.»

O brasileiro Rio agitou-se na sua cadeira.

«Eu também tenho de agradecer. A venda de equipamento hospitalar para unidades médicas dirigidas por políticos corruptos foi uma festa! Respiradores, hospitais de campanha, UTI’s móveis, só para falar em alguns itens, foram selvagemente superfaturados. Por outro lado, as nossas redes de supermercados puderam aumentar os preços para uma população acovardada e sem outra alternativa de compra, com a redução das feiras livres. Como se diz em meu país, Beleza Pura!»

O charuto já estava na mão de Mr. Green, o americano. Apenas não o acendera por deferência à sua colega.

«Outstanding! A quebra na Economia americana, ajudada pela própria irresponsabilidade do Trump, colocou em sérias dúvidas a reeleição daquele bastard. Minhas baterias contra ele na mídia vão fazer o resto. Vou eleger o Sleepy Joe Biden. E ele vai ficar me devendo esta. Thanks, Z!»

«Arigato, honorável colega.» O japonês Samurai fez uma elegante curvatura com a cabeça em direção à chinesa e continuou.

«A pandemia arrefeceu a lenga-lenga dos verdes. O foco mudou. Embora o consumo mundial de energia tenha diminuído, isto acabou por nos ajudar. Estamos adquirindo por preços irrisórios grande parte da indústria de energia limpa. Com o seu comando nas nossas mãos, os projetos vão andar a passo de cágado.»

Herr Doktor esperou o japonês terminar de falar limpando cuidadosamente as lentes de seus óculos. Seu sorriso era inusitadamente amplo quando falou.

«O pânico do COVID está causando uma movimentação histórica no mundo dos fármacos. Os lucros dos nossos laboratórios são exponenciais. E isto antes de começarmos a empurrar pela goela abaixo da humanidade inteira as vacinas. Bilhões delas! Wunderbar!»

Mesmo na área do Sheik, em que a OPEP, sob sua direta influência, experimentara uma sensível diminuição no consumo global de combustíveis, principalmente pela redução das atividades das gigantes aéreas, ganhos potenciais estavam previstos. Debaixo de seu turbante, os olhos de águia franziam de satisfação.

«Aproveitamos para adquirir vultosas posições acionárias de montadoras, companhias de aviação e da indústria de cruzeiros marítimos. Tudo a preços irrisórios. E já se percebe um crescimento nessas áreas. Numa possível retomada, vamos lucrar imensamente, Alá seja louvado!»

Foi a vez de Madame Z falar.

«Xié xié, muito obrigado, honoráveis colegas. E acho que iremos comemorar ainda por muito tempo. O mundo está refém do pânico. O volume de informações contraditórias mantém a balança do terror em todo o planeta. Governos medrosos ou mal-intencionados e até corruptos fazem o resto. Um quadro sem previsão de mudança, no curto prazo. A simples menção a uma suposta segunda onda já colocou a Europa de rastros. As estimativas de nossos ganhos são agora incalculáveis.»

Nova rodada de aplausos encerrou a reunião.



Oswaldo Pereira

Outubro 2020