Com os assuntos do presente envoltos numa nebulosidade enjoada, fica complicado escrever sobre eles com um mínimo de discernimento. E, quando a nuvem se dissipa, revela-se um perturbante panorama que mistura paixões e fake news, discórdias e baixarias, punhos fechados e ranger de dentes. Para manter um pouco a sanidade, resolvi voltar ao passado e republicar um texto que escrevi há seis anos e meio, em que pus o título de Quadrinho na Parede. Ei-lo, novamente.
"Na parede da varanda da casa de meus pais, havia um pequeno
quadro. Era diferente de todos os outros, porque, no lugar duma pintura ou uma
aquarela, tinha a metade de um copo de couro em alto relevo, do qual dois
dados, também em relevo, projetavam-se para fora, como se tivessem sido
arremessados no ato de jogar. Logo abaixo,
havia uma inscrição.
La
vida es como los dados. Tiene sus puntos marcados.
Como, durante anos, vi esta frase praticamente todos os
dias, nunca cheguei a me demorar sobre seu significado. Para mim, que com ela
convivi desde criança até deixar a casa paterna aos vinte e três anos, era uma
simples peça de decoração.
Agora que tenho muito mais passado que futuro, me pego a
olhar para trás com frequência. E, acreditem ou não aqueles que ainda não
chegaram neste ponto, com o maravilhoso sentido de perspectiva que a simples
acumulação de várias décadas confere aos mais velhos. Esta “visão de cima”,
talvez o mais precioso componente do que os americanos chamam de gray power, ou o poder dos grisalhos, nos
dá a acuidade visual de poder entender o que, na vida, é importante e o que é
supérfluo, embora este “presente” só nos seja regalado quando já pouco podemos
fazer para reparar erros passados. Mas, se aceitarmos que esses erros foram
exatamente as pedras que construíram a “torre” de onde agora contemplamos o
mundo, a perspectiva fica ainda mais nítida. E aí, surge novamente a frase do pequeno quadro.
“A vida é como os dados; tem os seus
pontos marcados...”
Será?
De caras, parece uma afirmativa fatalista. Ou seja, a vida é
aquilo que a fortuna (na falta de outro deus) nos reserva. Maktub. Assim estava escrito. A linha é traçada antes de nascermos e dela
não podemos fugir. Os pontos dos dados são aqueles e, por mais que queiramos
driblar a sorte, o resultado não muda e o que determinam será o nosso caminho entre
os dois invólucros que marcam os nossos extremos. O útero e o túmulo.
Mas, se olharmos bem para o quadrinho, ele não torna
implícito que o resultado daquela virada do copo é a única. A vida, como os
dados, pode ter seus números estampados em cada uma de suas faces, mas a
combinação que fica na parte virada para cima pode mudar cada vez que o copo os
arremessa na mesa do destino. Viver seria então uma sucessão de jogadas, uma
série de apostas, um contínuo girar da roleta, um novo embaralhar de cartas a
cada momento nos quais, nós, os jogadores, teríamos a oportunidade de mudar o
jogo.
O que vi, e posso contar, é que às vezes parece uma coisa,
às vezes outra. Há épocas em que o inevitável nos torna impotentes, em que tudo
parece ter sido engendrado por uma divindade imutável e imune às nossas
esperanças ou ao nosso desespero. Há outras em que o comando parece estar na
nossa mão, em que capitaneamos o barco com a certeza dos iluminados, dos
invencíveis e dos eternos.
Se sei a resposta? Talvez. Mas é provável que ela sirva só
para mim, pois é fruto das minhas vivencias e andanças. E, se a compartilhar,
talvez estrague a chance que cada um tem de decifrar por si só o mistério da
vida e dos dados."
Você decifrou?
Oswaldo Pereira
Dezembro 2019
Difícil para mim.Nunca penso sobre a vida,vivo o dia a dia fazendo o que gosto e...o que não gosto.Lendo o mais que posso,planejando viagens,encontrando amigos e viajando .Volto de incrível viagem e visitei até monastérios onde nem carro chega.Voltei a Jerusalém que está bastante mudada,o mar Morto onde fiquei flutuando e agora nem entrei na água.Sinto isso acontecer.Mas é a vida!
ResponderExcluirBela resposta, querida Cleusa. Já vi que você decifrou o seu próprio mistério...
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