Era suposto ser uma noite de Outono. Um ventinho já resvalando para uma nortada prematura, sugerindo um casaquinho de lã, alguns pingos de chuva fria, lágrimas de água deslizando no vidro das janelas hermeticamente fechadas, talvez até o aconchego de um aquecedor elétrico ressuscitado após os meses do verão.
Assim costuma ser. Este são os sinais
que aparecem por aqui, nestes arredores de Lisboa onde vivo, toda vez que o ano
se aproxima do final de outubro. Dois meses para o Natal. É a hora da Natureza
começar a cantar suas canções nevoentas, a trazer o cinzento para sua paleta de
cores, a pedir passos apressados em calçadas molhadas.
Qual o que. Nove horas da noite e vinte
e oito graus (centígrados, naturalmente) no meu termômetro digital da varanda.
Para o fim de semana, previsão de trinta. Como assim?!
Os portugueses mais velhos (engraçado eu escrever
isto, os mais velhos, aos meus 76
anos...) avançam logo a versão de sua sabedoria: É o verão de São Martinho!
Martinho de Tours, soldado de cavalaria
no exército romano, nascido na Panônia no século IV, jamais adivinharia que seu
nome seria um dia associado a fenômenos meteorológicos. Mas Martinho foi um
homem excepcional. Convertido ao Catolicismo, abandonou a vida militar, tornou-se
um dos maiores evangelizadores da Igreja, catequizando a Gália Romana, e fundou
uma comunidade de monges.
Porém, foi um acontecimento trivial ocorrido
enquanto ainda era um legionário, transformado em lenda na transmissão oral dos
cancioneiros da época, que catapultou seu nome para o panteão da sabedoria
popular. Dizem que, atravessando os Alpes, vindo da Itália para assumir um
posto militar da França, deparou-se com um mendigo que desfalecia de fome e
tiritava de frio. Não tendo comida para oferecer, despiu-se de sua capa escarlate e, dividindo-a em dois com a
espada, deu metade dela ao infeliz. A
seguir, o mau tempo abrandou e um sol fulgurante e tépido aqueceu a todos.
Martinho morreu aos 81 anos em 397. Foi
sepultado em Tours, diocese de que era bispo, a 11 de novembro. O dia ganhou
seu nome. E a crença de que, com a sua proximidade, opera-se a mágica de um
outono que se veste de verão.
Um meteorologista de plantão irá
certamente tirá-lo do devaneio da lenda e explicar que, no começo de novembro,
o Anticiclone dos Açores ainda trabalha como se verão fosse e, somado ao ar
quente que continua revolvendo as areias do Norte da África, traz para o
Portugal Continental este calorzinho gostoso enquanto o resto da Europa já se
contorce em ventos gélidos.
Você pode escolher em quem acreditar,
mas, este ano, o fenômeno veio mais cedo. E mais forte. Aí, a turma do
Apocalipse desautoriza São Martinho e os homens do tempo e invoca o mantra do
aquecimento global.
Quero lá saber. Vou mais é aproveitando
estas manhãs claras, esta brisa morna, estes poentes deslumbrantes, dádivas
únicas desta terra benfazeja.
Oswaldo
Pereira
Outubro
2016