quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

PERSPECTIVA




Uma das vantagens (são poucas...) da idade avançada é poder ver as coisas em perspectiva.

Por exemplo.

No domingo passado, pude assistir pela televisão ao jogo entre Flamengo e Vasco da Gama pelo Campeonato Carioca.  Num aparelho com mais de 50 polegadas e high definition, é quase (e, em certos casos, até melhor) do que se estar fisicamente no estádio. Como o Maracanã está sendo preparado para as Olimpíadas, a partida foi em São Januário, o lendário campo dos vascaínos. E aí me lembrei.

Há 67 anos assisti, dessa vez in loco, ao mesmo jogo. Mesmos dois times, mesmo estádio, mesmo campeonato. Tinha eu oito anos e fui com meu pai, que já me inserira no DNA a paixão pelo time rubro-negro. Éramos, portanto, o inimigo. Para agravar as coisas, papai conseguira, com um amigo português, duas entradas para a “social do Vasco”, uma espécie de tribuna de honra, onde ficava a elite dos sócios cruzmaltinos. Para quem não está familiarizado com a história do futebol do Rio, o time da Cruz de Malta era, à época, sustentado pela abastada colônia portuguesa, patrícios endinheirados que transferiam para a agremiação o mesmo amor por Portugal, que a saudade da “terrinha” aumentava ainda mais. Nas cadeiras da “social”, não havia lugar para manifestações contrárias. Recordo-me vivamente das instruções paternas antes de sairmos de casa. Se o Flamengo fizer um gol, não abra o bico!...

Em 1949, o futebol brasileiro começava a formar sua escola, mas ainda estava longe de ser reconhecido como uma força importante fora de suas fronteiras. Transferência de jogadores para o exterior, à exceção de alguns vizinhos sul-americanos, era inexistente. Mas, a aproximação da IV Copa do Mundo, a ser realizada no Brasil, enchia-nos da esperança quase juvenil de podermos mostrar ao mundo a arte de craques extraordinários como Zizinho, Jair, Bauer, Danilo, Ademir e a maneira alegre e desconcertante de como jogávamos um esporte que nascera na Europa.

Naquela época, também, o que existia de melhor no esporte gravitava no eixo Rio-São Paulo. Estávamos ainda muito distante de um certame de âmbito nacional e os campeonatos regionais destas duas cidades eram os eventos de maior importância no calendário futebolístico. Ser campeão carioca ou paulista era a glória.

O Flamengo tinha um bom time, mas o Vasco era a base da seleção nacional que iria chegar às finais do Mundial no ano seguinte e encantaria o planeta com goleadas históricas em cima de suecos e espanhóis, antes de sucumbir no desastre frente ao Uruguai. Ostentava o apelido de “Expresso da Vitória” e, no carioca de 1949, já desancara quase todos os adversários. Ao irmos para o São Januário, não carregávamos grandes esperanças...

Mas, aí começam as comparações. Fomos de bonde (tradução: bonde era um transporte de massa movido a energia elétrica que andava sobre trilhos. Na década de 1940, era a maneira preferencial de se deslocar pela cidade). E papai foi, como era de rigueur na tribuna de qualquer estádio, de terno e gravata. Não havia qualquer ameaça de tumulto, além da algazarra feita pelos vascaínos, cantando seu refrão da época (Cazaca, cazaca, cazaca zaca zaca, a nossa turma é boa, é mesmo da fuzarca...). A boa educação coibia os palavrões e, mesmo se fossemos descobertos como torcida contrária, no máximo teríamos sido convidados a nos retirarmos...

Passei a ver, então, os dois jogos em paralelo. As mesmas cores, as mesmas paixões, a mesma ânsia de vitória, a mesma catarse. Mas, em mundos completamente diferentes, distanciados pela erosão de gerações, de avanços e de retrocessos, pela voragem das mudanças, por esperanças, algumas que se desfizeram, outras que ultrapassaram os sonhos. Dois mundos sobrepostos. Só mesmo a idade nos faz poder vê-los em perspectiva. O que não deixa de ser um grande privilégio.

Em tempo. Naquele dia de 1949, o Flamengo fez dois gols logo no início. Não sei até hoje como consegui segurar o grito de Mengooo! na minha garganta infantil... Mas, o Vasco era mesmo um grande time. Virou o jogo e goleou por 5 a 2. Domingo passado, nem deu para torcer muito. O jogo foi fraco. E o Flamengo perdeu. De novo...


Oswaldo Pereira
Fevereiro 2016  

13 comentários:

  1. Uma agradável visita ao passado que poucos tiveram o prazer de usufruir.

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    1. Quem viveu e se lembra, é verdadeiramente um privilegiado...

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  2. Não lembro quanto tempo faz que o Flamengo foi campeão. Na manhã seguinte passei pela Praça Santos Dumont aqui na Gávea e me deparei com toneladas de lixo abandonadas ali pelos torcedores. Atravessei a Praça em silencio. Qdo cheguei no outro lado...Declarei tb em silêncio para mim mesma. Não sou mais Flamengo, como fui desde os 5 anos. Tenho hoje, 70. Agora vou ser Vasco, qq contratempo tb posso virar Botafogo, Fluminense não! Embora seja o hino mais bonito que conheço.

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    1. In illo tempore, isto chamava-se "virar a casaca" (rsrsrs)...

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    2. ...mas futebol no Brasil sempre foi sempre será, muito mais que esporte. Pois virar qq coisa do avesso, sempre é revelador. E eu contínuo sendo flamengo. Um menino na rua me perguntou o meu time e eu disse. Sou Flamengo, Vasco e Botafogo, o que me proporciona muito divertimento entre derrotas e vitórias. O menino concordou com um gesto de cabeça,mas não disse uma palavra. Ficou pensando. rs

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  3. Caro Osvaldo, muito boa sua lembrança e fiquei muito feliz em saber que seu pai foi um admirador do nosso querido Flamengo. No retrospecto o Flamengo leva grande vantagem sobre o Bacalhau, tanto em vitórias como em campeonatos conquistados. Não será a derrota de domingo que irá alterar meu amor pelo + querido. Grande abraço do Thomaz.

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    1. "Flamengo até debaixo d'água", dizia o velho Gabriel. Foram muitas partidas juntos, da Gávea ao Maracanã. Inesquecíveis.

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  4. Meu caro Oswaldo
    Ótima a retrospectiva. Mas sua resposta ao Thomaz me estimulou a registrar que, também como você e o velho Gabriel (permita-me a intimidade), eu assisti com o meu velho e saudoso pai Antonio a partidas memoráveis. Somos rubro-negros como vocês. Como recordou duas derrotas, permito-me uma vitória inesquecível. No Maracanã, 1978, final do Carioca, Vasco jogando pelo empate. Rondinelli de cabeça, após escanteio cobrado por Zico, aos 44 min do 2º tempo, nos bridou com o 1x0 do campeonato. No gol vascaíno - Leão.
    Receba um forte abraço.
    Jose Antonio (Zeca)

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    1. Caro Zeca, as lembranças são tantas... Como um Fla x Flu em que Babá (com 1,49m de altura) saltou mais do que Pinheiro (1,86m) e ganhou o lance para marcar a vitória de 1x0. Dava para escrever um livro ou ficar até de madrugada contando histórias...

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  5. Muito bom! Uma visão do pais pelo esporte.

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    1. É claro que no esporte também há bandalheiras. Mas, as paixões são mais genuínas...

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  6. Grande Oswaldo
    Ao contrário de você sou vascaino desde os tempos do Expresso da Vitória. Mas hoje sou um torcedor alienado que nem sabe quando o time joga. Antigamente a gente conhecia o time. Sabia de cor. Hoje a cada semana tem cara nova jogando e aos poucos fui me afastando.
    De qualquer forma a rivalidade Flamengo Vasco tem que continuar dentro da saudável disputa esportiva.
    Grande abraço
    Zé Correa

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    1. O "Clássico dos Milhões", com um Maracanã lotado será sempre um espetáculo inesquecível. Quem viu esta maravilha, principalmente nas décadas de 1950 e 1960 tem de agradecer aos deuses do futebol.

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