quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A GRANDE NUVEM




Viemos aproveitar a calmaria antes da tempestade, isto é, os dias de relativo sossego que antecedem o apocalipse do Carnaval aqui em São Pedro da Aldeia, e a Lei de Murphy entrou em funcionamento. Pifou a televisão, morreu a aparelhagem de som e, aqui às margens da Lagoa de Araruama, eu não tenho acesso à Internet. A sensação é de se estar em pleno retiro espiritual numa aldeia dos Himalaias. O que é feito do Mundo? Como estará ele se comportando sem a minha atenção diária?...

Nos maravilhosos dias de hoje, toda gente já deve ter sentido esta sensação de desamparo quando o sinal do celular é fraco ou a conexão da Web nos abandona. Tornamo-nos dependentes da comunicação ao alcance de um toque, de um Skype familiar, de um whatsapp comunitário. A vida parece perder o sentido sem a informação ao segundo do clima ou do último lance do campeonato espanhol, sem a literatura em pílulas do Face, sem as rajadas curtas de frases abreviadas do twitter. E o que dizer do Google, versão mágica e infinitamente alargada dos antigos almanaques Eu Sei Tudo?

Outra benesse que se torna cada vez mais indispensável é a possibilidade de mandarmos tudo para a Nuvem, este repositório ilimitado de arquivos, acessível (ou será acessável?) instantaneamente, como uma grande biblioteca gerida por anjos que se movem à velocidade da luz. Lá podemos guardar carinhosamente nossas fotos e nossos vídeos, nossos diários e nossos escritos, nossas mensagens de amor e nossos recados de ódio. Os registros de nossa existência. Sua permanência está assegurada pela imensa tecnologia digital que reina sobre as nossas vidas.

Só que eu, com a desconfiança mineira que herdei de meus pais, conservo o antiquado (e ridicularizado pelas hostes mais jovens) hábito de guardar tudo em pen-drives, cd’s e, pasmem, em velhos cadernos. Vai que...

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A família está reunida em torno da mesa de jantar. Ninguém conversa, é claro. Estão todos com os olhos fixos na pequena tela de seus smartphones. De repente, a filha mais nova exclama.

«Caraca!»

A mãe imediatamente, e sem desviar o olhar de seu Galaxy hiper-6, a repreende.

«Atenção à linguagem, Mildred! Estamos à mesa.»

«Mas, mãe, o meu celular apagou o Minecraft, bem na hora em que eu ia explodir uma cidade inteira...»

O pai tenta fazer melhor. Enviar uma mensagem de teor semelhante para Mildred pelo whatsapp familiar. Mas, também de repente, o arquivo de fotos de garotas da Playboy que consultava em segredo havia desparecido.

Em seguida, o filho grita «Meu trabalho para a aula de Química foi apagado.» E vira-se para a irmã «Só pode ter sido você, sua idiota!»

A mãe tenta apaziguar os ânimos, mas quando volta a olhar para a tela do Galaxy, sente um calafrio. Todo o elaborado discurso que levara semanas preparando para sua posse amanhã como Diretora do Country Club de sua cidade tinha sumido.

A família se entreolha em pânico crescente. O pai vai até a porta da frente. «Deve ser problema com o sinal», e dirigindo-se à mulher, «Quem mandou você escolher esta porra de provedor!»

O filho corrige. «O problema não é do provedor. Eu continuo tendo internet. Os arquivos é que estão se apagando...» Da casa do vizinho, vem um sonoro palavrão e uma frase angustiada. «As fotos do nosso casamento!...»

Decidem ligar a TV.

«Estamos aguardando um pronunciamento do Presidente», diz um repórter com ansiedade controlada. A imagem corta para a locutora-âncora do canal, também ela com cara de quem comeu uma enguia estragada. No rodapé, as notícias vão passando como um trem veloz. “Putin acusa Obama e promete retaliar”. “O exército de Israel entra em prontidão máxima e Netanyahu diz que o país sofreu um ataque cibernético”. “O Papa Francisco pede calma até que se saiba algo mais sobre o que está acontecendo com o i-cloud”. “No Brasil, Dilma Rousseff declara que não tem noção do que se passa, o que não é nenhuma novidade”.

Logo, os japoneses descobriram. A i-cloud, a grande nuvem que abrigava as informações do mundo, derretera. Uma supersaturação de zilhões de terabytes causara uma brutal indigestão nos intestinos informatizados do cumulus-nimbus virtual. E ele simplesmente se auto desligara. O mundo voltava aos meados do século XX.


Num pequeno casebre do interior, um casal de capiaus prepara-se para dormir. O dia está morrendo num poente majestoso. Ali ainda não há luz elétrica. E nem telefone. A iluminação vem das velas e o fogão é a lenha. Ela diz para o marido.

«Ô Zé, andam dizendo aí que sumiram com a nuvem...»

Zé vai até a única janela do casebre.

«Uai, muié... Tem umas nuvem lá prás bandas do compadre João. Será que foi ele que roubou ela?»

«Sei não, Zé» Ela veste a camisola. «Zé, isso muda alguma coisa prá nóis?»

Zé sopra a vela. O quarto mergulha na penumbra do fim do dia.

«Nadica de nada, minha véia. Vâmo durmir...»


Oswaldo Pereira
Fevereiro 2016

PS.:  Este modesto blog está comemorando três aninhos. Foram 3 livros e mais de 200 postagens, incluindo contos, crônicas, poesias, dicas de turismo, homenagens a cidades musicais e até uma turma de bar que se escafedeu para os States. A recompensa foram as quase 38.000 visitas, centenas de comentários e inúmeros elogios, recompensa esta que credito à paciência e boa vontade dos meus abnegados leitores. MUITO OBRIGADO A TODOS VOCÊS!!! 






16 comentários:

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    1. Obrigado, grande amigo. Você sempre foi um eterno incentivador.

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  2. Então! Tornamos-nos as hostes dos nefelibatas.

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    1. "Estou nas nuvens" diz-se em Portugal quando o mundo parece sublime e tudo anda certo na ordem universal...

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  3. PARABÉNS, Oswaldo! Fui e continuarei a ser leitora assídua dos seus tesouros literários.

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    1. Muito obrigado, querida Salette. Você sempre foi uma das grandes incentivadoras deste modesto blog.

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  4. JÁ PASSARAM TRÊS ANOS? COMO É RAPIDO( RAPIDINHO COM SOTAQUE). LEMBRO DE UMA HISTÓRIA SUA SOBRE AS GUERRAS DO ULTRAMAR, ONDE VOCÊ DIZIA QUE SEUS CUNHADOS TINHAM PASSADO POR LÁ, É VERDADE, EU VOU VOLTAR Á GUINÉ. ACHO QUE ESTÁ NA ALTURA, E O TEMPO VÔA, DE RECORDAR VELHOS TEMPOS E VISITAR AQUELES SITIOS. COMO DIGO AGORA "VOU COMER OSTRAS E CONHECER OS NETOS". ESTOU A BRINCAR QUANTO A NETOS. MAS VOU COMER OSTRAS COM O MEU AMIGO PINTO DIA 24 DE FEVEREIRO. ABRAÇOS JOÃO

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  5. Votos de que a riqueza da sua enorme nuvem intelectual continue a descarregar, sobre este blogue, tão boa energia escrita.
    Abraço de PARABÉNS

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    1. Obrigadíssimo,caro José. É sempre gratificante ter leitores assíduos como o amigo.

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  6. Parabéns, Oswaldo. Que bom poder ler suas crônicas, comentários e estórias e histórias. Continuo lendo e hoje está mais que interessante a "nuvem" que sumiu,,,

    Abraço, Cleusa.

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    1. Obrigado, Cleusa. Você sempre foi uma das mais assíduas e interessadas comentadoras deste meu blog. Novamente, muito obrigado.

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  7. Querido Primo,
    Quem agradece sou eu, pela sua prosa elegante e pelo contato que, mesmo virtual, me traz caloras lembranças de nosso amigo Célio Rezende.
    Ósculos nas bochechas,
    Geraldo

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    1. Célio seria certamente um seguidor deste modesto blogue. E, quem sabe, não o é, mesmo, em alguma dimensão...

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  8. Oi Oswaldo
    Como o tempo passa.
    Muito obrigado por nos proporcionar momentos de agradável leitura. Que esses anos se multipliquem para que possamos continuar a ter esse privilégio.
    Grande abraço
    Zé Correa

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    1. Muito obrigado, amigo Zé.
      Enquanto Deus me der engenho e arte (e saúde...)

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