Viemos aproveitar a
calmaria antes da tempestade, isto é, os dias de relativo sossego que antecedem
o apocalipse do Carnaval aqui em São Pedro da Aldeia, e a Lei de Murphy entrou
em funcionamento. Pifou a televisão, morreu a aparelhagem de som e, aqui às
margens da Lagoa de Araruama, eu não tenho acesso à Internet. A sensação é de
se estar em pleno retiro espiritual numa aldeia dos Himalaias. O que é feito do
Mundo? Como estará ele se comportando sem a minha atenção diária?...
Nos maravilhosos dias
de hoje, toda gente já deve ter sentido esta sensação de desamparo quando o
sinal do celular é fraco ou a conexão da Web
nos abandona. Tornamo-nos dependentes da comunicação ao alcance de um toque,
de um Skype familiar, de um whatsapp comunitário. A vida parece
perder o sentido sem a informação ao segundo do clima ou do último lance do
campeonato espanhol, sem a literatura em pílulas do Face, sem as rajadas curtas de frases abreviadas do twitter. E o que dizer do Google, versão mágica e infinitamente
alargada dos antigos almanaques Eu Sei Tudo?
Outra benesse que se
torna cada vez mais indispensável é a possibilidade de mandarmos tudo para a Nuvem, este repositório ilimitado de
arquivos, acessível (ou será acessável?)
instantaneamente, como uma grande biblioteca gerida por anjos que se movem à
velocidade da luz. Lá podemos guardar carinhosamente nossas fotos e nossos
vídeos, nossos diários e nossos escritos, nossas mensagens de amor e nossos
recados de ódio. Os registros de nossa existência. Sua permanência está
assegurada pela imensa tecnologia digital que reina sobre as nossas vidas.
Só que eu, com a
desconfiança mineira que herdei de meus pais, conservo o antiquado (e
ridicularizado pelas hostes mais jovens) hábito de guardar tudo em pen-drives, cd’s e, pasmem, em velhos
cadernos. Vai que...
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A
família está reunida em torno da mesa de jantar. Ninguém conversa, é claro.
Estão todos com os olhos fixos na pequena tela de seus smartphones. De repente,
a filha mais nova exclama.
«Caraca!»
A
mãe imediatamente, e sem desviar o olhar de seu Galaxy hiper-6, a repreende.
«Atenção
à linguagem, Mildred! Estamos à mesa.»
«Mas,
mãe, o meu celular apagou o Minecraft, bem na hora em que eu ia explodir uma
cidade inteira...»
O
pai tenta fazer melhor. Enviar uma mensagem de teor semelhante para Mildred
pelo whatsapp familiar. Mas, também de repente, o arquivo de fotos de garotas
da Playboy que consultava em segredo havia desparecido.
Em
seguida, o filho grita «Meu trabalho para a aula de Química foi apagado.» E
vira-se para a irmã «Só pode ter sido você, sua idiota!»
A
mãe tenta apaziguar os ânimos, mas quando volta a olhar para a tela do Galaxy,
sente um calafrio. Todo o elaborado discurso que levara semanas preparando para
sua posse amanhã como Diretora do Country Club de sua cidade tinha sumido.
A
família se entreolha em pânico crescente. O pai vai até a porta da frente.
«Deve ser problema com o sinal», e dirigindo-se à mulher, «Quem mandou você
escolher esta porra de provedor!»
O
filho corrige. «O problema não é do provedor. Eu continuo tendo internet. Os
arquivos é que estão se apagando...» Da casa do vizinho, vem um sonoro palavrão
e uma frase angustiada. «As fotos do nosso casamento!...»
Decidem
ligar a TV.
«Estamos
aguardando um pronunciamento do Presidente», diz um repórter com ansiedade
controlada. A imagem corta para a locutora-âncora do canal, também ela com cara
de quem comeu uma enguia estragada. No rodapé, as notícias vão passando como um
trem veloz. “Putin acusa Obama e promete retaliar”. “O exército de Israel entra
em prontidão máxima e Netanyahu diz que o país sofreu um ataque cibernético”.
“O Papa Francisco pede calma até que se saiba algo mais sobre o que está
acontecendo com o i-cloud”. “No Brasil, Dilma Rousseff declara que não tem
noção do que se passa, o que não é nenhuma novidade”.
Logo,
os japoneses descobriram. A i-cloud, a grande nuvem que abrigava as informações
do mundo, derretera. Uma supersaturação de zilhões de terabytes causara uma
brutal indigestão nos intestinos informatizados do cumulus-nimbus virtual. E
ele simplesmente se auto desligara. O mundo voltava aos meados do século XX.
Num
pequeno casebre do interior, um casal de capiaus prepara-se para dormir. O dia
está morrendo num poente majestoso. Ali ainda não há luz elétrica. E nem
telefone. A iluminação vem das velas e o fogão é a lenha. Ela diz para o
marido.
«Ô
Zé, andam dizendo aí que sumiram com a nuvem...»
Zé
vai até a única janela do casebre.
«Uai,
muié... Tem umas nuvem lá prás bandas do compadre João. Será que foi ele que
roubou ela?»
«Sei
não, Zé» Ela veste a camisola. «Zé, isso muda alguma coisa prá nóis?»
Zé
sopra a vela. O quarto mergulha na penumbra do fim do dia.
«Nadica
de nada, minha véia. Vâmo durmir...»
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2016
PS.: Este modesto blog está comemorando três aninhos. Foram 3 livros e mais de 200 postagens, incluindo contos, crônicas, poesias, dicas de turismo, homenagens a cidades musicais e até uma turma de bar que se escafedeu para os States. A recompensa foram as quase 38.000 visitas, centenas de comentários e inúmeros elogios, recompensa esta que credito à paciência e boa vontade dos meus abnegados leitores. MUITO OBRIGADO A TODOS VOCÊS!!!
Parabéns. querido amigo!
ResponderExcluirObrigado, grande amigo. Você sempre foi um eterno incentivador.
ExcluirEntão! Tornamos-nos as hostes dos nefelibatas.
ResponderExcluir"Estou nas nuvens" diz-se em Portugal quando o mundo parece sublime e tudo anda certo na ordem universal...
ExcluirPARABÉNS, Oswaldo! Fui e continuarei a ser leitora assídua dos seus tesouros literários.
ResponderExcluirMuito obrigado, querida Salette. Você sempre foi uma das grandes incentivadoras deste modesto blog.
ExcluirJÁ PASSARAM TRÊS ANOS? COMO É RAPIDO( RAPIDINHO COM SOTAQUE). LEMBRO DE UMA HISTÓRIA SUA SOBRE AS GUERRAS DO ULTRAMAR, ONDE VOCÊ DIZIA QUE SEUS CUNHADOS TINHAM PASSADO POR LÁ, É VERDADE, EU VOU VOLTAR Á GUINÉ. ACHO QUE ESTÁ NA ALTURA, E O TEMPO VÔA, DE RECORDAR VELHOS TEMPOS E VISITAR AQUELES SITIOS. COMO DIGO AGORA "VOU COMER OSTRAS E CONHECER OS NETOS". ESTOU A BRINCAR QUANTO A NETOS. MAS VOU COMER OSTRAS COM O MEU AMIGO PINTO DIA 24 DE FEVEREIRO. ABRAÇOS JOÃO
ResponderExcluirBOA VIAGEM! E um grande beijo nos netinhos...
ExcluirVotos de que a riqueza da sua enorme nuvem intelectual continue a descarregar, sobre este blogue, tão boa energia escrita.
ResponderExcluirAbraço de PARABÉNS
Obrigadíssimo,caro José. É sempre gratificante ter leitores assíduos como o amigo.
ExcluirParabéns, Oswaldo. Que bom poder ler suas crônicas, comentários e estórias e histórias. Continuo lendo e hoje está mais que interessante a "nuvem" que sumiu,,,
ResponderExcluirAbraço, Cleusa.
Obrigado, Cleusa. Você sempre foi uma das mais assíduas e interessadas comentadoras deste meu blog. Novamente, muito obrigado.
ExcluirQuerido Primo,
ResponderExcluirQuem agradece sou eu, pela sua prosa elegante e pelo contato que, mesmo virtual, me traz caloras lembranças de nosso amigo Célio Rezende.
Ósculos nas bochechas,
Geraldo
Célio seria certamente um seguidor deste modesto blogue. E, quem sabe, não o é, mesmo, em alguma dimensão...
ExcluirOi Oswaldo
ResponderExcluirComo o tempo passa.
Muito obrigado por nos proporcionar momentos de agradável leitura. Que esses anos se multipliquem para que possamos continuar a ter esse privilégio.
Grande abraço
Zé Correa
Muito obrigado, amigo Zé.
ExcluirEnquanto Deus me der engenho e arte (e saúde...)