segunda-feira, 6 de outubro de 2014

TRILHA SONORA




A música vinha de um segundo andar. Ou terceiro, não sei. Um standard do Nat “King” Cole. Alguém colocara o som no máximo. Talvez quisesse que todo mundo ouvisse. Era uma canção de amor não correspondido, com os trompetes ferindo o ar num desafio ao desespero, orgulhosamente apregoando seu despeito. When Your Lover has Gone. Quando seu amor foi embora...

Tudo em tons maiores. Era uma canção de um coração supostamente partido pelo abandono, pela perda. Dor de cotovelo. E, no entanto, era toda em tons maiores. Não entendo muito de música, mas pelo menos isto eu posso explicar a quem não sabe (da única maneira que sei), pedindo contritas desculpas aos que dominam o assunto. Tons maiores são os das teclas brancas de um piano. Seu som traz sempre a sensação de alegria, de animação, de “prá cima”. Ao contrário, tons menores são os das teclas pretas. Ao ouví-los, o sentimento é de melancolia, tristeza, de “prá baixo”.

E, de repente, eu notei. A maioria das músicas americanas que tratam do amor é composta em tons maiores. Mesmo as que versam sobre a sua ausência, seu fim, seu desencontro. E a maioria das canções românticas brasileiras, até aquelas que relatam estórias de encantos, encontros ou expectativas positivas, é em tons menores. Modinhas, sambas canções, chorinhos, até alguma bossa nova, acabam parecendo lamentos, embora cantem venturas. Será que o motivo advém do fato de sermos, como já se disse, o produto de três raças tristes? O português desterrado, o negro escravo e o índio subjugado? Ou está no som das florestas densas e úmidas, na secura das caatingas, na planície infindável dos pampas, na imensidão do mar?

Toda regra tem exceções, claro. E antes que algum dos meus raríssimos comentadores se adiante, cito logo os exemplos do Carnaval, a alegria contagiante de milhões pelo país afora em fevereiro ou março. O batuque, a exaltação, o coro uníssono dos sambas-enredo. E a contrapartida americana dos blues, trazidos pelos negros, eles também escravos, que choram em volteios lamentosos sua dor. (Aliás, por falar nisso, todos os blues utilizam apenas as teclas pretas do piano. Sacaram?...)

Dizem que a vida, diferentemente dos filmes, não tem trilha sonora, que não há música de fundo quando andamos pela existência a procura de um destino, ou até quando o encontramos. Eu discordo. Talvez não a tenhamos apenas do lado de fora. Dentro de nós, se apurarmos o ouvido interior, existirá sempre um refrão musical, um fiapo de canção, os ecos de um tema. De repente, até o background de uma aparelhagem de som de um segundo andar.

Só para citar outra vez o cancioneiro americano, a música Without a Song, termina declarando: I only know there ain’t no love at all, without a song (eu sei somente que não existe amor sem uma canção). Foi sucesso nos anos 1960, na voz do Sinatra. Fala da tristeza e do vácuo que significaria um mundo sem música. Toda em tons maiores...

PS.: Estou longe, mas estou antenado... As urnas brasileiras, ou melhor, cento e quarenta e três milhões de brasileiros deram ontem o seu recado. Livremente. Nossa democracia pode não ser ainda muita coisa, há um grande distanciamento entre o eleitor e seu representante e a corrupção sistêmica deturpa os melhores propósitos, se é que ainda existem, dos nossos políticos. Mas ver um brasileiro andar quase um dia de barco e mais muitas horas a pé para exercer seu direito de voto, é bonito. O voto é obrigatório, etcetera e tal... dirão alguns. Mas isto não tira a beleza do ato, repetido vezes sem fim, ontem, neste nosso país-continente.

Oswaldo Pereira
Outubro 2014




4 comentários:

  1. Bom dia, Oswaldo. Em tons maiores e menores parece que A Música, mesmo silenciada é quem melhor acompanha o pensamento. Atualmente prefiro ..........
    O Silencio.

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  2. A letra de Without a song está certa quando diz que não existe amor sem uma canção, e digo mais: acho que nossa vida seria muito vazia sem uma canção. Em tons maiores... Grande abraço do Thomaz.

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  3. Que pena que minha postagem novamente desapareceu. Entre outras coisas disse que foi muito bem falado por você perceber o que se passava através da música que ouvia. A música é uma coisa divina
    e faz parte de nossa vida.

    Abraço, Cleusa

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  4. A música faz bem à alma seja em tons maiores ou menores, caro Oswaldo
    Paula Calisto (comadre da Maria de La Salette)

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