O acontecimento fez, durante muito tempo, parte
importante da nossa crônica familiar. Eu mesmo não me lembro com muitos
detalhes. Tinha pouco menos de três anos e as imagens parecem confusas,
desmaiadas pelo tempo. Mas minha mãe sempre preservou o relato íntegro do fato,
e o contava sempre que podia. Deve ter sido em 1943. Getúlio Vargas presidia o
país, depois de ter, em 1937, rasgado a Constituição e proclamado o Estado
Novo, impedindo as eleições previstas para o ano seguinte e assumindo poderes
ditatoriais. Seu comando era total, num tempo em que muitos países do
continente americano também se rendiam à liderança de seus homens-fortes,
enquanto que, na Europa e na Ásia, uma guerra mundial ceifava vidas, cidades e
culturas.
Morávamos na rua Paissandu, no bairro do Flamengo,
num Rio que tinha pouco mais de um milhão de habitantes e repousava tranquilo
ao redor da baía. A orla do Atlântico apenas começava a ser povoada. A rua
tinha início na praia que dera nome ao bairro e seguia, reta, até a rua
Pinheiro Machado e às portas do Palácio Guanabara. O palácio fora propriedade
particular de um português no século XIX, comprada pelo Império para servir de
residência à Princesa Isabel. Com o intuito de agradar a filha, D. Pedro II
mandara plantar, em toda a extensão da Paissandu, palmeiras imperiais,
transformando-a num magnífico corredor arborizado e cartão postal de uma cidade
que sorria para o futuro.
Embora o Palácio do Catete fosse sede do Governo,
Getúlio escolhera o Palácio Guanabara para sua residência oficial. E adquirira
o hábito de, pelo menos uma vez por semana, e à tarde, fazer o footing pela Paissandu (para os novos, footing é um anglicismo em voga na época
para descrever um agradável passeio a pé por sítios aprazíveis). Gozando ainda de
uma sólida popularidade, o Presidente descia a rua in style, acompanhado de alguns assessores, saboreando seu
indefectível charuto e acenando para a pequena multidão que se formava nas
calçadas. No dia do tal acontecimento, minha mãe decidira levar-me junto para o
ritual de ver Getúlio passar. Devo ter achado que o momento era mesmo solene
pois, de acordo com a crônica materna, assim que o grupo aproximou-se de onde
estávamos, perfilei-me e esbocei uma continência militar do melhor estilo. O
Presidente sorriu, aproximou-se de mim e “condecorou-me” com um aviãozinho em
miniatura ornado com duas fitinhas verde-amarelas. Um mimo que ficou guardado por muitos anos nas
gavetas da família.
Getúlio acabou deposto dois anos depois. O vento
democrático que varreu o mundo após a derrota do Eixo não poupou o ditador. Foi
para o exílio em sua estância no Rio Grande do Sul, mas sua chama não se havia
apagado. Político sagaz e inteligente, esperou que o Governo de Eurico Dutra
servisse como tampão, enquanto se contabilizava sua influência poderosa na vida
nacional. Nas eleições livres de 1950, seu nome foi sufragado pela maioria,
empolgada pela onda irresistível do queremismo,
movimento inspirado na frase-slogan
“queremos Getúlio” e que apregoava o fervor pela volta do velho caudilho.
O segundo mandato do político gaúcho foi um
desastre. Num ambiente de liberdade democrática, a arena política era um free for all de interesses. O Brasil
virou território livre de forças internas e externas que se contrapunham ao
programa social-trabalhista do Governo. Logo, vozes eloquentes começaram a
atacar o aparelhamento socializante da máquina estatal e a denunciar o empreguismo
palaciano. Uma dessas vozes mais contundentes era a do jornalista e candidato a
deputado Carlos Lacerda, dono do jornal A TRIBUNA DA IMPRENSA e um dos maiores
oradores de seu tempo. Nas páginas do seu periódico e pela TV, Lacerda
desancava Getúlio e seu Ministério com a ferocidade peculiar de sua índole
combativa, atacando frontalmente, e sem medir palavras, a entourage do poder e principalmente a figura do Presidente. Até
que, em agosto de 1954, uma ação engendrada dentro dos muros do Palácio resolveu
silenciar o jornalista. No dia 5, ocorreu o atentado. E teve início um dos
períodos mais dramáticos de nossa História. Um período de apenas 19 dias, que culminou
com o suicídio de Vargas no dia 24 e mexeu profundamente com a vida nacional.
É exatamente o drama desenrolado com máxima
intensidade nesses poucos dias o assunto do filme “Getúlio”, uma produção que merece todos os elogios possíveis. A começar pelo roteiro, uma impecável e fidedigna reconstituição daqueles sombrios dias, magistralmente encadeados e oferecidos
ao público, preservando toda a força de seu pathos
por um super competente trabalho de edição e pelo fato de noventa por cento
da ação terem sido gravados dentro do Catete, no mesmo lugar onde ocorreram os
acontecimentos reais. O mérito maior, porém, vem das poderosas interpretações dos atores. Drica Moraes como Alzirinha Vargas, e Alexandre Borges
como Lacerda comandam um elenco perfeito nas suas caracterizações dos
personagens que fizeram a história naqueles dias. Mas espetacular mesmo é o
trabalho de Tony Ramos no
papel-título. Dizem que o ator viveu dias dentro do Palácio para poder incorporar
a figura do Presidente. Deu certo. Dos mínimos gestos aos detalhes mais
expressivos da persona de Getúlio,
tudo está lá. Uma magnífica representação, que nada fica a dever à premiada atuação
de Daniel Day-Lewis em Lincoln.
Para quem, como eu, viveu a época, é uma
fantástica volta ao passado. Para os que não haviam nascido, serve como necessária
lição de história pátria de exatos sessenta anos atrás, um tempo em que os
homens públicos ainda se matavam para salvar sua honra.
Oswaldo
Pereira
Maio
2014
Oswaldente, concordo plenamente com você. Uma aula de história brilhantemente apresentada. Adorei. Recomendo a todos.
ResponderExcluirHá muito tempo considero que o Tony Ramos é um de nossos melhores atores, quiçá o melhor. E todo o elenco é de primeiríssima qualidade.
Só teve um pequeno detalhe que me incomodou, talvez pelo meu perfeccionismo virginiano... A frase "Inspirado (ou baseado, não me lembro bem) em fatos reais".
Beijão
Osvaldo, o suicídio marcou muito minha vida. Morava em Niterói, estudava no Colégio Salesiano Santa Rosa, tinha aulas pela manhã e a tarde atravessava a baia e ia trabalhar na Rua México, 21 como office-boy, Não me esqueço do papo dos adultos na imobiliária onde trabalhava, e só se falava de Getulio/Lacerda e outros. Me lembro que foi uma semana de folga (escola/trabalho) e quando o corpo do Presidente foi levado para o Sul, em avião da FAB e escoltado por alguns jatos Gloster-Meteor eu estava na praia de Icaraí com amigos. Tinha 13 anos na época. Não perderei o filme com a história. Abraço do Thomaz
ResponderExcluirVou ver o filme mal chegue! Abraço. Fernanda
ResponderExcluirOswaldo, fui ver o filme e, gostei muito, o trabalho do artista principal está muito bom. Há algumas coisas que a história não mostra como no filme, mas também não poderia ser tão real.
ResponderExcluirAbr., Cleusa.