segunda-feira, 12 de maio de 2014

GETÚLIO




O acontecimento fez, durante muito tempo, parte importante da nossa crônica familiar. Eu mesmo não me lembro com muitos detalhes. Tinha pouco menos de três anos e as imagens parecem confusas, desmaiadas pelo tempo. Mas minha mãe sempre preservou o relato íntegro do fato, e o contava sempre que podia. Deve ter sido em 1943. Getúlio Vargas presidia o país, depois de ter, em 1937, rasgado a Constituição e proclamado o Estado Novo, impedindo as eleições previstas para o ano seguinte e assumindo poderes ditatoriais. Seu comando era total, num tempo em que muitos países do continente americano também se rendiam à liderança de seus homens-fortes, enquanto que, na Europa e na Ásia, uma guerra mundial ceifava vidas, cidades e culturas.

Morávamos na rua Paissandu, no bairro do Flamengo, num Rio que tinha pouco mais de um milhão de habitantes e repousava tranquilo ao redor da baía. A orla do Atlântico apenas começava a ser povoada. A rua tinha início na praia que dera nome ao bairro e seguia, reta, até a rua Pinheiro Machado e às portas do Palácio Guanabara. O palácio fora propriedade particular de um português no século XIX, comprada pelo Império para servir de residência à Princesa Isabel. Com o intuito de agradar a filha, D. Pedro II mandara plantar, em toda a extensão da Paissandu, palmeiras imperiais, transformando-a num magnífico corredor arborizado e cartão postal de uma cidade que sorria para o futuro.

Embora o Palácio do Catete fosse sede do Governo, Getúlio escolhera o Palácio Guanabara para sua residência oficial. E adquirira o hábito de, pelo menos uma vez por semana, e à tarde, fazer o footing pela Paissandu (para os novos, footing é um anglicismo em voga na época para descrever um agradável passeio a pé por sítios aprazíveis). Gozando ainda de uma sólida popularidade, o Presidente descia a rua in style, acompanhado de alguns assessores, saboreando seu indefectível charuto e acenando para a pequena multidão que se formava nas calçadas. No dia do tal acontecimento, minha mãe decidira levar-me junto para o ritual de ver Getúlio passar. Devo ter achado que o momento era mesmo solene pois, de acordo com a crônica materna, assim que o grupo aproximou-se de onde estávamos, perfilei-me e esbocei uma continência militar do melhor estilo. O Presidente sorriu, aproximou-se de mim e “condecorou-me” com um aviãozinho em miniatura ornado com duas fitinhas verde-amarelas.  Um mimo que ficou guardado por muitos anos nas gavetas da família.

Getúlio acabou deposto dois anos depois. O vento democrático que varreu o mundo após a derrota do Eixo não poupou o ditador. Foi para o exílio em sua estância no Rio Grande do Sul, mas sua chama não se havia apagado. Político sagaz e inteligente, esperou que o Governo de Eurico Dutra servisse como tampão, enquanto se contabilizava sua influência poderosa na vida nacional. Nas eleições livres de 1950, seu nome foi sufragado pela maioria, empolgada pela onda irresistível do queremismo, movimento inspirado na frase-slogan “queremos Getúlio” e que apregoava o fervor pela volta do velho caudilho.

O segundo mandato do político gaúcho foi um desastre. Num ambiente de liberdade democrática, a arena política era um free for all de interesses. O Brasil virou território livre de forças internas e externas que se contrapunham ao programa social-trabalhista do Governo. Logo, vozes eloquentes começaram a atacar o aparelhamento socializante da máquina estatal e a denunciar o empreguismo palaciano. Uma dessas vozes mais contundentes era a do jornalista e candidato a deputado Carlos Lacerda, dono do jornal A TRIBUNA DA IMPRENSA e um dos maiores oradores de seu tempo. Nas páginas do seu periódico e pela TV, Lacerda desancava Getúlio e seu Ministério com a ferocidade peculiar de sua índole combativa, atacando frontalmente, e sem medir palavras, a entourage do poder e principalmente a figura do Presidente. Até que, em agosto de 1954, uma ação engendrada dentro dos muros do Palácio resolveu silenciar o jornalista. No dia 5, ocorreu o atentado. E teve início um dos períodos mais dramáticos de nossa História. Um período de apenas 19 dias, que culminou com o suicídio de Vargas no dia 24 e mexeu profundamente com a vida nacional.









É exatamente o drama desenrolado com máxima intensidade nesses poucos dias o assunto do filme “Getúlio”, uma produção que merece todos os elogios possíveis. A começar pelo roteiro, uma impecável e fidedigna reconstituição daqueles sombrios dias, magistralmente encadeados e oferecidos ao público, preservando toda a força de seu pathos por um super competente trabalho de edição e pelo fato de noventa por cento da ação terem sido gravados dentro do Catete, no mesmo lugar onde ocorreram os acontecimentos reais. O mérito maior, porém, vem das poderosas interpretações dos atores. Drica Moraes como Alzirinha Vargas, e Alexandre Borges como Lacerda comandam um elenco perfeito nas suas caracterizações dos personagens que fizeram a história naqueles dias. Mas espetacular mesmo é o trabalho de Tony Ramos no papel-título. Dizem que o ator viveu dias dentro do Palácio para poder incorporar a figura do Presidente. Deu certo. Dos mínimos gestos aos detalhes mais expressivos da persona de Getúlio, tudo está lá. Uma magnífica representação, que nada fica a dever à premiada atuação de Daniel Day-Lewis em Lincoln.

Para quem, como eu, viveu a época, é uma fantástica volta ao passado. Para os que não haviam nascido, serve como necessária lição de história pátria de exatos sessenta anos atrás, um tempo em que os homens públicos ainda se matavam para salvar sua honra.  



Oswaldo Pereira
Maio 2014


4 comentários:

  1. Oswaldente, concordo plenamente com você. Uma aula de história brilhantemente apresentada. Adorei. Recomendo a todos.

    Há muito tempo considero que o Tony Ramos é um de nossos melhores atores, quiçá o melhor. E todo o elenco é de primeiríssima qualidade.

    Só teve um pequeno detalhe que me incomodou, talvez pelo meu perfeccionismo virginiano... A frase "Inspirado (ou baseado, não me lembro bem) em fatos reais".

    Beijão

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  2. Osvaldo, o suicídio marcou muito minha vida. Morava em Niterói, estudava no Colégio Salesiano Santa Rosa, tinha aulas pela manhã e a tarde atravessava a baia e ia trabalhar na Rua México, 21 como office-boy, Não me esqueço do papo dos adultos na imobiliária onde trabalhava, e só se falava de Getulio/Lacerda e outros. Me lembro que foi uma semana de folga (escola/trabalho) e quando o corpo do Presidente foi levado para o Sul, em avião da FAB e escoltado por alguns jatos Gloster-Meteor eu estava na praia de Icaraí com amigos. Tinha 13 anos na época. Não perderei o filme com a história. Abraço do Thomaz

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  3. Vou ver o filme mal chegue! Abraço. Fernanda

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  4. Oswaldo, fui ver o filme e, gostei muito, o trabalho do artista principal está muito bom. Há algumas coisas que a história não mostra como no filme, mas também não poderia ser tão real.
    Abr., Cleusa.

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