Junho, 1450.
O
silêncio na madrugada fria é total. Todos esperam. O Imperador, os sacerdotes,
a nobreza e o povo. Uma bruma leve se levanta do vale, amaciando os contornos
da cidade de pedra, carregando a brisa que brinca suavemente com os adornos
rituais dos homens e das mulheres. Ainda não há pássaros, encolhidos em seus
ninhos nestes últimos momentos de penumbra.
Pouco a pouco,
o céu vai misturando suas cores, o carmim-violeta abate-se para um rosa
ligeiro, o índigo profundo esmaece-se num azul cristalino, uma dança de matizes
anunciando que a hora está para chegar. A pequena multidão, imóvel em frente ao
Templo das Três Janelas, mantem seus olhos fixos na cordilheira do lado leste,
especialmente no lugar onde dois picos formam uma abrupta forquilha.
De repente,
como o toque de um clarim dourado, o primeiro raio de sol arremessa seu fulgor
através da forquilha. A luz incide diretamente no Templo e três quadrados
cintilantes desenham sua forma geométrica no chão úmido. Pachacútec, o
Imperador, dá um passo à frente, levanta sua lança e saúda o Solstício.
Junho,
1550.
Tawantinsuyu,
o Império Inca, acabou. Seus últimos reis, os irmãos Atahualpa e Huáscar, estão
mortos. Os espanhóis dominam Cusco e o Vale Sagrado. Mas não chegaram até aqui.
Mesmo assim, não adianta cá ficar. Os sacerdotes se foram, os nobres
conquistados, não há mais quem plante, ou colha. O silêncio que emudece o vale
não é de reverência. É de morte e de abandono.
O último
habitante da cidade de pedra olha para o céu. Nuvens cerradas ocultam a
montanha do lado leste. O sol não irá anunciar o Solstício. Mau agouro.
Lentamente, ele e sua pequena família vão descendo em direção ao rio Urubamba,
serpenteando lá embaixo. Com o coração pesado, nem olham para trás.
Pelos
próximos 360 anos, Machu Picchu quedará esquecida, a vegetação lentamente
abraçando seus templos, suas paredes, escondendo-a da história e dos homens.
Em 1911, um professor da universidade americana de Yale,
chamado Hiram Bingham, chegou ao Peru. Seu objetivo era tentar encontrar a cidade perdida de Vilcabamba, cuja lenda
a descrevia como a última cidade importante do império inca. A procura levou-o
ao vale do Urubamba e, lá, um camponês chamado Melchior Arteaga acabou por
mencionar-lhe a existência de um fantástico lugar, 700 metros acima do rio,
abandonado há séculos. O destino havia traçado suas linhas. Bingham (cuja
personalidade de intelectual aventureiro serviu de modelo inspirador para a
criação do herói Indiana Jones)
seguiu a indicação. Depois de um sono centenário, a cidadela de pedra iria
renascer para a luz. Profundamente surpreso com o que descobrira, o americano
escreveu em seu diário: ‘Would anyone
believe what I have found?”(Alguém acreditaria no que eu encontrei?...)
Munido de dezenas de fotos tiradas das ruínas, ainda cobertas
pela ação dos anos de esquecimento, Bingham voltou para os Estados Unidos.
Enquanto escrevia sua tese sobre o achado, uma revista já com imenso prestígio
internacional comprou-lhe a matéria e, em seu número especial de abril de 1913,
dedicou 183 páginas às fotografias e ao relato do explorador. Era a National
Geographic Magazine. Machu Picchu tornava-se, instantaneamente, um ícone
mundial.
HIRAM BINGHAM 1911 |
Há várias maneiras de se chegar. A pé, no lombo de burros,
pelas antigas trilhas. Mas, o que a maioria faz é vir de ônibus desde Águas
Calientes, um trajeto de 25 minutos sempre subindo. Para chegar até Águas
Calientes, um pequeno povoado com ares de velho oeste andino, o melhor é pegar
um confortável trem panorâmico desde Cusco ou de Ollantaytambo, no meio do Vale
Sagrado. Seja, porém, qualquer o meio de locomoção, a chegada ao Santuário
causa, até no mais empedernido cético, uma distinta comoção. Mesmo antes de se
cruzar a porta de acesso à cidadela, a visão das construções de pedra que
brilham ao sol, derramadas pela crista do monte e o concerto de montanhas que
as rodeiam, do qual sobressai a imponência de Huayna Picchu (a montanha nova), tiram o significado das palavras.
Não há mais o que dizer. Só resta sentir.
Machu
Picchu quer dizer montanha antiga e até hoje se especula por que,
entre 1420 e 1450, os incas resolveram construir aí um fenômeno arquitetônico
de pedras perfeitamente encaixadas obedecendo a um planejamento urbanístico que
conjugava harmoniosamente as construções sagradas, as habitações da nobreza, as
casa populares, os terraços de plantio e um intricado sistema de abastecimento
de água. Apesar de esbanjar uma cultura altamente sofisticada para a época, os
incas não deixaram escrita e, assim, perdeu-se na poeira dos tempos o real
propósito de Machu Picchu. A teoria mais aceita atualmente sustenta que a
cidade, que abrigava 500 habitantes, era um refúgio privilegiado dos
imperadores e sua corte, idealizado, construído e utilizado por um dos mais
conhecidos reis incas – Pachakutic Inka
Yupanki, ou Pachacútec. E que aí eram realizadas as cerimônias rituais no
dia mais reverenciado da religiosidade nativa. O dia 21 de junho, o solstício
de inverno no hemisfério sul.
Percorrer o santuário é respirar este mistério. Depois de anos
de recuperação e limpeza, em seguida à revelação operada por Bingham, hoje a
cidade mostra-se em todo seu esplendor. Um guia (existem vários à disposição) é
fundamental para desvendar a natureza de cada construção. Assim, com a história
sendo contada com competência e cultura, vai-se apreendendo a magia do Templo
do Sol, do Templo das Três Janelas, do Templo do Condor, do Templo Principal, o
fascínio de subir até onde está intihuatana,
a “pedra que ancora o sol”, os espelhos d’água que eram usados para observar os
eclipses solares. Para os mais destemidos, há a trilha que sobe a montanha nova. Uma íngreme escadaria
escorregadia que se eleva a 320 acima da cidade, com a promessa de uma vista
inesquecível.
Foram dois dias de intensa magia. Uma dica: se puderem,
reservem um quarto no Hotel Sanctuary
Lodge. É o único em Machu Picchu e fica a 20 metros da entrada do
Santuário. Passar uma noite ali, olhando as estrelas e sentindo a vibração
da cidadela ao lado, imersa na escuridão, é uma experiência de se guardar para
sempre na memória.
Oswaldo Pereira
Maio 2014
Oi Oswaldo
ResponderExcluirAinda não estive em Machu Picchu, mas está nos meus planos. E esse relato seu só fez aumentar a vontade.
Zé Correa
Jamais serei turista, mas hoje, com essa narrativa, um "Ser" pre-colombiano, derramou lágrimas através de mim.
ResponderExcluirMuito bom seu relato, Oswaldo, sente-se como se estivesse lá. Interessante como os antigos observavam o solstício. Lá eles observavam a sua chegada em plena montanha, e no Egito eles fizeram um templo que só possue uma porta, pequena, e no interior daquela mensidão, depois de percorrer muitos metros que agora não me lembro mais, há um altar onde o sol bate através da pequena porta . Esse templo foi tirado de seu lugar porcausa da represa de Assuam e levado para um lugar seguro, próximo. E, não acertaram em relaçao ao solstício, o sol chega lá com dois dias de diferença.
ResponderExcluirFico agora com vontade de visitar esse lugar mágico.
Abr., Cleusa.
Que magnífica descrição! Deve ser mesmo fascinante e mágico este local.
ResponderExcluirA minha vontade de não adiar por mais tempo a visita ao Perú redobrou. Está há muito na lista das minhas prioridades. Obrigada pelas dicas.
Muito bom ! Ja mandei para meu cunhado peruano e estou certa que ele vai gostar muito dessa descrição rica em detalhes. Fi²
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