Parece que todo mundo já escreveu sobre o assunto. Nos últimos dias, a imprensa brasileira foi pródiga em artigos, testemunhos, entrevistas, declarações de quem esteve lá, de quem não esteve, fartas análises de colunistas, posicionamentos categóricos, denúncias contundentes. Abriu o baú. Dada a importância do fato, nada mais natural. Mas o que me perturbou realmente foi a falta de distanciamento histórico que, julgava eu, seria adequado aplicar-se a um evento ocorrido há 50 anos. Só por comparação, outra convulsão de igual magnitude, a Revolução dos Cravos em Portugal, desencadeada dez anos depois, tem sido tratada naquele país com um amadurecimento digno de feridas cicatrizadas.
Pelo que vi e ouvi, a nossa ferida ainda está aberta.
Ainda se procuram culpados, se abrem arquivos, se remexe em pedaços de passado.
A justificativa é de que há ainda porões a serem abertos e histórias a serem
contadas. Mas, assim é o passado, sempre incompleto, sempre escrito pela
metade, contado pelos vencedores, passível sempre de revisão. Até entendo que
muita gente viu-se amputada de seu futuro, perdeu juventude, amigos, parentes e
quer saber a Verdade. Também quero. Todos queremos. Mas seria preferível que
essa procura fosse feita para apaziguar lembranças, encerrar inquietudes e
dúvidas e não para acirrar revanchismos. E que fosse feita imparcialmente, que
expusesse todos os pecados, tanto de um lado da trincheira como do outro.
Resolvi também escrever sobre o assunto. Mais como
testemunho do que presenciei, lançando mão mais uma vez desta prerrogativa que
a idade me confere, que é a circunstância de ter estado presente, vivo e
atento, nos dias da Revolução de 31 de Março, que aconteceu mesmo em 1º de
abril e já foi apelidada de Golpe Militar
e de Redentora, dependendo do
prisma político com que se olha o movimento. Antes de mais nada, quero
acrescentar que não vou fazer qualquer juízo de valor. Meu testemunho é na
primeira pessoa do singular e serve apenas como mais um dos milhões de relatos
individuais de quem viveu a hora.
A primeira coisa de que me lembro foi a assepsia da
deposição de Jango. Nem um só tiro foi deflagrado. A coisa ocorreu como num
tabuleiro de xadrez, com o perdedor derrubando seu rei ao reconhecer a derrota.
A sensação dominante era de que as forças defensoras do projeto político de
Goulart, tão propaladas pelos sindicatos e organizações de esquerda, nada mais
eram do que um castelo de cartas. Se havia alguma parcela da sociedade que
desejava as reformas anunciadas pelo Governo no Comício da Central, ou era
ínfima ou totalmente desorganizada.
A segunda foi a sensação geral de regozijo. Logo no dia
2, a Marcha da Vitória reuniu quase um milhão de pessoas na Avenida Rio Branco,
no centro do Rio. Ninguém me contou. Eu estava lá, como quase todos os meus
amigos e colegas de trabalho. Gente de todas as classes, de todos os níveis
sociais e culturais, de todas as idades também lá estava, festejando. Depois, a
vida seguiu, normalmente. O Campeonato Carioca prosseguiu com estádios cheios,
e os cinemas, os bares e as praias continuaram, como se nada tivesse
acontecido, a celebrar o Outono temperado do Rio.
Era a primeira página de um capítulo de 21 anos da vida
nacional.
Menos de um ano depois, quando ainda se cogitava a realização
de eleições livres para breve, eu deixei o Brasil. Por motivos profissionais, iria
viver por sete anos na Europa. Quando retornei, em 1971, o regime militar já
enfrentava uma inquietante dissenção interna, um braço de ferro entre o pessoal
da linha dura e os que já apontavam
para uma distensão política e, ao mesmo tempo, reforçava a repressão e a
censura. Preocupado em gerir a minha família, com mulher e três filhos
pequenos, e totalmente apolítico, não senti nem uma coisa nem outra. É claro que,
conceitualmente, incomodavam-me certos procedimentos truculentos e, mais ainda,
o conhecimento abafado de que uma guerra surda e suja vicejava nas profundezas
do poder. Mas, eu tinha emprego, estabilidade financeira, escola para os
meninos, segurança nas ruas e ainda lia o PASQUIM. Vi muitos erros, mas também
vi muitos acertos. Vi o desmantelamento do campus
universitário, vi a quimera da Transamazônica atolando-se no barro, vi a
burrice do fechamento do mercado de informática, vi o desastre dos choques do
petróleo golpeando uma economia super endividada. Mas também vi a construção de
um parque industrial revocacionando um país que só exportava commodities, vi o aparelhamento da
política energética, que acabou por tornar o Brasil autossuficiente em
combustíveis, vi o Proálcool e o Mobral.
Depois, vi o fim do Regime, os destinos da Nação sendo
mansamente entregues pelos militares às lideranças civis. Regozijei-me
novamente. Mais uma transição histórica sem sangue. Assim fora com a
Independência, declarada pelo próprio filho do Rei colonizador; com a
República, proclamada por um Marechal doente a depor uma Monarquia ainda mais
debilitada; com a própria Revolução de Março. Vi o Comício das Diretas. Vi Tancredo morrendo
aos poucos. Vi a inflação estratosférica de Sarney, o impeachment do Collor. Vi o Plano Real. E vi a promessa de um
estado democrático.
O que eu vejo hoje?
Vejo um sistema político viciado, refém das mais
rasteiras manobras para privilegiar interesses diametralmente opostos aos
anseios de um povo. Vejo o escorrer do rio podre da corrupção, em todos os
níveis e patamares da administração pública, roubando o futuro, a dignidade e a
vida da geração presente e, ainda pior, das próximas.
Neste rememorar do 31
de Março, lamenta-se a perda das mais de trezentas pessoas mortas ou desaparecidas
durante a Ditadura. Também lamento. Mas, alguém já parou para contabilizar os
milhares de mortos nas filas dos hospitais, criminosamente desequipados e desaparelhados
pela subtração dos recursos a eles destinados e que, em vez de leitos, remédios
e atendimento médico competente, vão pagar viagens milionárias, regabofes partidários,
comissões sombrias?
Vi o bastante para poder afirmar, sem a menor dúvida,
de que, pior, muito pior do que redentoras
ou anos de chumbo, é o monstro
insaciável e assassino da corrupção. Só não é pior do que o silêncio
anestesiado de uma Sociedade.
Oswaldo
Pereira
Abril
2014
Muito bom! Muito obrigado!
ResponderExcluirMuito bem analisado e historiando o que realmente aconteceu. Hoje está claro que o Brasil estava desgovernado e que a sociedade se levantou para que se resolvessem problemas que se mostravam desastrosos. Abraço, Cleusa.
ResponderExcluirComo sempre, excelente texto. Fico so imaginando como vao contar este periodo da historia brasiliera daqui a 50 anos. Cade aquela bola de cristal que eu pedi rs.
ResponderExcluirBruno
Podes substituir Brasil por Portugal ! Um belo texto!
ResponderExcluirAbraço.
Como sempre você foi muito feliz nas colocações. o que penso é que a idéia de democracia nunca esteve na cabeça dos que, à época, diziam lutar por ela e hoje estão aí a confirmar essa suposição, avolumando esse rio de corrupção a que você muito bem alude.
ResponderExcluirGrande abraço.
Zé Correa