sábado, 5 de abril de 2014

MEU RELATO





Parece que todo mundo já escreveu sobre o assunto. Nos últimos dias, a imprensa brasileira foi pródiga em artigos, testemunhos, entrevistas, declarações de quem esteve lá, de quem não esteve, fartas análises de colunistas, posicionamentos categóricos, denúncias contundentes.  Abriu o baú. Dada a importância do fato, nada mais natural. Mas o que me perturbou realmente foi a falta de distanciamento histórico que, julgava eu, seria adequado aplicar-se a um evento ocorrido há 50 anos.  Só por comparação, outra convulsão de igual magnitude, a Revolução dos Cravos em Portugal, desencadeada dez anos depois, tem sido tratada naquele país com um amadurecimento digno de feridas cicatrizadas.

Pelo que vi e ouvi, a nossa ferida ainda está aberta. Ainda se procuram culpados, se abrem arquivos, se remexe em pedaços de passado. A justificativa é de que há ainda porões a serem abertos e histórias a serem contadas. Mas, assim é o passado, sempre incompleto, sempre escrito pela metade, contado pelos vencedores, passível sempre de revisão. Até entendo que muita gente viu-se amputada de seu futuro, perdeu juventude, amigos, parentes e quer saber a Verdade. Também quero. Todos queremos. Mas seria preferível que essa procura fosse feita para apaziguar lembranças, encerrar inquietudes e dúvidas e não para acirrar revanchismos. E que fosse feita imparcialmente, que expusesse todos os pecados, tanto de um lado da trincheira como do outro.

Resolvi também escrever sobre o assunto. Mais como testemunho do que presenciei, lançando mão mais uma vez desta prerrogativa que a idade me confere, que é a circunstância de ter estado presente, vivo e atento, nos dias da Revolução de 31 de Março, que aconteceu mesmo em 1º de abril e já foi apelidada de Golpe Militar e de Redentora, dependendo do prisma político com que se olha o movimento. Antes de mais nada, quero acrescentar que não vou fazer qualquer juízo de valor. Meu testemunho é na primeira pessoa do singular e serve apenas como mais um dos milhões de relatos individuais de quem viveu a hora.

A primeira coisa de que me lembro foi a assepsia da deposição de Jango. Nem um só tiro foi deflagrado. A coisa ocorreu como num tabuleiro de xadrez, com o perdedor derrubando seu rei ao reconhecer a derrota. A sensação dominante era de que as forças defensoras do projeto político de Goulart, tão propaladas pelos sindicatos e organizações de esquerda, nada mais eram do que um castelo de cartas. Se havia alguma parcela da sociedade que desejava as reformas anunciadas pelo Governo no Comício da Central, ou era ínfima ou totalmente desorganizada.

A segunda foi a sensação geral de regozijo. Logo no dia 2, a Marcha da Vitória reuniu quase um milhão de pessoas na Avenida Rio Branco, no centro do Rio. Ninguém me contou. Eu estava lá, como quase todos os meus amigos e colegas de trabalho. Gente de todas as classes, de todos os níveis sociais e culturais, de todas as idades também lá estava, festejando. Depois, a vida seguiu, normalmente. O Campeonato Carioca prosseguiu com estádios cheios, e os cinemas, os bares e as praias continuaram, como se nada tivesse acontecido, a celebrar o Outono temperado do Rio.  

Era a primeira página de um capítulo de 21 anos da vida nacional.
Menos de um ano depois, quando ainda se cogitava a realização de eleições livres para breve, eu deixei o Brasil. Por motivos profissionais, iria viver por sete anos na Europa. Quando retornei, em 1971, o regime militar já enfrentava uma inquietante dissenção interna, um braço de ferro entre o pessoal da linha dura e os que já apontavam para uma distensão política e, ao mesmo tempo, reforçava a repressão e a censura. Preocupado em gerir a minha família, com mulher e três filhos pequenos, e totalmente apolítico, não senti nem uma coisa nem outra. É claro que, conceitualmente, incomodavam-me certos procedimentos truculentos e, mais ainda, o conhecimento abafado de que uma guerra surda e suja vicejava nas profundezas do poder. Mas, eu tinha emprego, estabilidade financeira, escola para os meninos, segurança nas ruas e ainda lia o PASQUIM. Vi muitos erros, mas também vi muitos acertos. Vi o desmantelamento do campus universitário, vi a quimera da Transamazônica atolando-se no barro, vi a burrice do fechamento do mercado de informática, vi o desastre dos choques do petróleo golpeando uma economia super endividada. Mas também vi a construção de um parque industrial revocacionando um país que só exportava commodities, vi o aparelhamento da política energética, que acabou por tornar o Brasil autossuficiente em combustíveis, vi o Proálcool e o Mobral.

Depois, vi o fim do Regime, os destinos da Nação sendo mansamente entregues pelos militares às lideranças civis. Regozijei-me novamente. Mais uma transição histórica sem sangue. Assim fora com a Independência, declarada pelo próprio filho do Rei colonizador; com a República, proclamada por um Marechal doente a depor uma Monarquia ainda mais debilitada; com a própria Revolução de Março.  Vi o Comício das Diretas. Vi Tancredo morrendo aos poucos. Vi a inflação estratosférica de Sarney, o impeachment do Collor. Vi o Plano Real. E vi a promessa de um estado democrático.

O que eu vejo hoje?

Vejo um sistema político viciado, refém das mais rasteiras manobras para privilegiar interesses diametralmente opostos aos anseios de um povo. Vejo o escorrer do rio podre da corrupção, em todos os níveis e patamares da administração pública, roubando o futuro, a dignidade e a vida da geração presente e, ainda pior, das próximas.
Neste rememorar do 31 de Março, lamenta-se a perda das mais de trezentas pessoas mortas ou desaparecidas durante a Ditadura. Também lamento. Mas, alguém já parou para contabilizar os milhares de mortos nas filas dos hospitais, criminosamente desequipados e desaparelhados pela subtração dos recursos a eles destinados e que, em vez de leitos, remédios e atendimento médico competente, vão pagar viagens milionárias, regabofes partidários, comissões sombrias?

Vi o bastante para poder afirmar, sem a menor dúvida, de que, pior, muito pior do que redentoras ou anos de chumbo, é o monstro insaciável e assassino da corrupção. Só não é pior do que o silêncio anestesiado de uma Sociedade.

Oswaldo Pereira
Abril 2014



5 comentários:

  1. Muito bem analisado e historiando o que realmente aconteceu. Hoje está claro que o Brasil estava desgovernado e que a sociedade se levantou para que se resolvessem problemas que se mostravam desastrosos. Abraço, Cleusa.

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  2. Como sempre, excelente texto. Fico so imaginando como vao contar este periodo da historia brasiliera daqui a 50 anos. Cade aquela bola de cristal que eu pedi rs.
    Bruno

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  3. Podes substituir Brasil por Portugal ! Um belo texto!
    Abraço.

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  4. Como sempre você foi muito feliz nas colocações. o que penso é que a idéia de democracia nunca esteve na cabeça dos que, à época, diziam lutar por ela e hoje estão aí a confirmar essa suposição, avolumando esse rio de corrupção a que você muito bem alude.
    Grande abraço.
    Zé Correa

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