segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

ANO VELHO






O ano do selfie? Não, não é possível que 2014 passe à história com esta fama... Seria injusto com o ano que viu uma nave pousar no cometa, duzentos países assinarem novo acordo sobre a proteção climática do planeta, Malala Yousafzai ganhar o Nobel da Paz, um Papa inspirar dois países brigados há décadas a fazerem as pazes.


PAPA FRANCISCO - O HOMEM DO ANO
Aliás, este podia ser o ano de Francisco. Além de ser fundamental na aproximação entre Cuba e os Estados Unidos, este surpreendente sucessor de Bento XVI, em poucos meses de reinado, já mostrou ao que veio. Fez sentir sua mão pesada em cima dos casos de pedofilia e abusos sexuais, ao mesmo tempo em que demonstrou seu ânimo compreensivo para com o homossexualismo e as uniões fora do casamento. Procurou outros credos debaixo da luz de um ecumenismo universal, enquanto que, em casa, investiu contra os malfeitos do Banco do Vaticano. E, pasmem, desancou a Cúria Romana em sua mensagem de Natal...

MÓDULO PHILAE NO COMETA
Não fosse isso, 2014 ia deixar apenas marcas pouco recomendáveis para futuros historiadores. Uma indigesta lista de tribulações mundiais cujas consequências ainda podem transbordar para os próximos doze meses. A ascensão de Exército Islâmico, por exemplo, ou o recrudescimento da tensão na Faixa de Gaza. Obama refém de um Congresso republicano caminhando tropegamente para um fim de mandato melancólico. Um ex-Primeiro Ministro português indo em cana ao voltar de uma vilegiatura dourada em Paris. O aterrorizante espetáculo das decapitações também pode deixar seus rastros no curriculum do ano, assim como a queda de braço entre Putin e a Ucrânia, a insensatez religiosa do Boko Haram, o avanço cruel do ebola, as despedidas prematuras de Robin Williams, de José Wilker, de Eusébio e tantos outros...
O HORROR: DECAPITAÇÕES DO EI


ESCÂNDALO DA PETROBRAS
Mas, má fama mesmo, 2014 terá é nos arquivos brasileiros. Mal refeitos do exorcismo do Mensalão, um novo tsunami de desonestidade foi destampado nos bueiros da maior empresa do País, dando início a uma aluvião de águas turvas cuja corrente ainda não se sabe até onde chegará. Uma campanha eleitoral tisnada pela morte de Eduardo Campos e pelo nível rasteiro dos ataques verbais entre os candidatos.  Um crescimento econômico pífio e uma inflação renitente. E a mordida do inacreditável 7 a 1 no orgulho nacional, em pleno Mineirão...

VERGONHA NO MINEIRÃO


Foi dose. Só espero que 2015 não seja o barítono... Explico. Dizem que, numa determinada apresentação operística na Itália, o tenor era tão mau que a plateia começou a vaiar impiedosamente. A ponto de fazê-lo parar de cantar e sair de cena. Não sem antes avisar: aspettate il baritono (ou seja, esperem pelo barítono, como a sinalizar que o próximo cantor ainda seria pior...)  

Mas, como dizia o colunista social Zózimo Barroso do Amaral, enquanto houver champagne, há esperança. Vamos então esperar por melhores dias, melhores ares, melhores sonhos, melhores sinas. E melhores cantores...



FELIZ 2015 PARA TODOS!



Oswaldo Pereira

Dezembro 2014

sábado, 20 de dezembro de 2014

FELIZ NATAL









UM NATAL MUITO, MUITO FELIZ PARA 

TODOS





E, para manter a tradição, um 

pequeno conto de Natal





NOITE DE NATAL


A chuva gelada molhava tudo. Quando ele acordou, no meio da noite, sentindo as gotas bater de encontro à madeira da janela, pensou logo nos bichos que estavam no campo. Um cachorro, seis ovelhas e um pequeno asno. Seus bens, sua fortuna. A dúvida rodou por minutos em sua cabeça. Vou ou não vou?... A manta de lã rija dava-lhe algum conforto, uma proteção abençoada contra o frio cortante daquele inverno enfezado. Ficou pensando nas conversas dos dias anteriores. Nas horas do final da tarde, em que todos se reuniam para deixar seus animais nos estábulos comunitários, os outros pastores tinham passado a comentar sobre a estrela. Era o assunto do momento. A estrela de rabo comprido, que surgira no começo do inverno. Para os mais velhos, era mau agouro, um prenúncio de desgraças, um aviso amaldiçoado. Isto haviam aprendido de seus avós, e esses dos seus, numa cadeia infinita pelas brumas do tempo. Pastos esturricados pela seca, ou aluviões de chuvas que afogariam a todos como no dilúvio. Talvez a peste. Ou tudo junto. Para eles, a morte do grande rei três anos antes significara algo mais do que uma consequência natural da vida. Era o fim de um ciclo de bem-aventuranças, embora Herodes nunca tivesse feito nada por eles. Ele morrera, pronto, e isso era o bastante para temer o amanhã. E agora, essa estrela com crinas... abhadda kedhabhra!

Teriam razão?...Pensou ele, enquanto se revirava sobre a palha seca. O Diabo sabe muito por ser Diabo, mas sabe muito mais por ser velho..., era o que se dizia. Por que então este pessimismo corrosivo, este bolor pegajoso do medo. Seria consequência do frio nos ossos esclerosados, da névoa que embaçava o olhar, do desaparecimento dos cabelos e da paixão, da proximidade do fim? Só quando lá chegar saberei... Os mais jovens dividiam-se. Uns davam aos ombros com indiferença. Uma luz no céu da noite era só isso, uma luz. Distante. O que importava era ter lentilhas no prato, vinho quente nos alguidares, coxas complacentes debaixo das mantas. Outros eram os sonhadores. Discutiam até depois da ceia contos de faraós, portentos da Babilônia, profecias e profetas, magos e loucos. Não chegavam a qualquer conclusão, mas iam dormir com os olhos banhados pela claridade da esperança.

Na noite anterior, entretanto, pouco antes de o pão ficar cozido e a fumaça das favas voltear no ar gelado, o desconhecido aparecera.  Ninguém era bem vindo numa noite de escassez invernal, alimento pouco, ojeriza de estranhos. Um mutismo de desconfiança saudou-o. E ele ali ficou, cajado apoiado no chão gelado, um tosco manto como abrigo precário, sandálias trazendo as histórias de muitas estradas cruéis. E um terno sorriso nos lábios.

Ele apiedara-se do recém-chegado. Enquanto os demais, velhos e novos, cuidavam de si e de sua fome, ele levantara-se e lhe entregara o resto dos grãos que ainda fumegavam em seu prato de barro, mais uma côdea e um naco de queijo. Depois, voltara para seu lugar junto ao braseiro, sem esperar pelo agradecimento do outro. Não precisou ouvi-lo. Uma suave brisa morna pareceu mexer com os seus cabelos.

O desconhecido comeu lentamente, saciando um jejum ancestral, silencioso e quase invisível. Será que só eu o vejo? perguntou-se, observando a maneira com que os seus companheiros o ignoravam.  Aos poucos, a noite ficou mais fria. Um a um os pastores foram para dentro de suas cabanas, murmurando despedidas quase inaudíveis. Ele e o desconhecido ficaram sós ao relento. Foi então que este saiu da escuridão e falou.

«Amanhã antes da ceia pegue uma ovelha e siga pelo caminho que leva a Bethlehem. Vá só. Pouco antes da cidade, vai encontrar uma gruta. Lá acharás o que procuras...» 

Vou ou não vou?... A dúvida continuou mordendo-o no escuro. Um estranho. E se fosse um assaltante, pronto a emboscá-lo... Mas a voz era poderosa como um clarim angelical tocando um chamamento irresistível, o olhar que varava o ar de inverno eram dois faróis de luz terna. Não, o desconhecido não era um malfeitor, ele sabia. E resolveu ir.

A noite seguinte estava ainda mais gelada. Apenas o pequeno animal que levava por sobre os ombros lhe dava certo conforto, o abraço quente da lã em torno do pescoço, o respirar suave do ventre da pequena ovelha acariciando-lhe a nuca. O escuro do caminho era amortecido pelo brilho da estrela de caudas, sempre à frente lá no céu.

Antes que ele pudesse perceber os contornos do casario da cidade, uma pequena luz começou a aparecer, longe ainda, na beira da estrada, onde uma elevação rochosa crescia como uma grande onda de pedra negra. À medida que se aproximava, foi percebendo os contornos. Era a gruta. Só podia ser ela.

Havia algumas pessoas quando chegou. Pastores como ele. Havia mais. Andarilhos, carpinteiros, pescadores, talvez atraídos pela claridade que emanava do lugar. E três homens vestidos como ele nunca vira alguém, nem os sacerdotes de Jerusalém. Todos em profundo silêncio, admirando a cena. Uma mãe de sorriso exausto, um marido em desvelo. E a criança.

Não era uma criança qualquer, ele notou. Seu corpo parecia brilhar na exígua manjedoura, tanto quanto a estrela comprida, que agora parecia um sol alongado por cima do morro que cobria a gruta. Subitamente, ele sentiu os olhos do recém-nascido traspassarem os seus. Num segundo, foi como se tudo, gruta, morro, estrada e céu desaparecessem e um turbilhão de imagens soprasse como um vendaval. E ele viu uma cruz no alto de uma colina, soldados romanos destruindo o Templo, Maomé concebendo o Islã, os cruzados em seus cavalos, mamelucos e otomanos. O vórtice de visões continuou girando em torno dele, as tribos árabes mesclando-se em nações, as guerras ceifando campos e vidas, o nascimento de Israel, os canhões e os ódios, os tanques e o confronto, os mísseis e a morte.

E, de repente, ele estava no futuro. Não havia mais estrela nem gruta. Um muro cortava a terra, um jipe passou levantando poeira, um estrondo longínquo assustou uma gralha, uma fumaça preta, um grito, um cacarejar de uma metralhadora. Lágrimas correram em seu rosto. Por ele. Pela humanidade. Pela criança que vira na gruta.

Então, um reflexo colorido. Ele virou e viu. Uma menina vinha caminhando na sua direção, sorrindo. Chegou perto dele e entregou-lhe uma flor. E murmurou: Feliz Natal... Ele agradeceu comovido e perguntou o seu nome.

Esperança, ela disse.


Oswaldo Pereira
Dezembro 2014


PS.: Quem quiser ler o Conto de Natal do ano passado, é só clicar no link abaixo.


 http://obpereira.blogspot.com.br/2013/12/e-natal.html

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

MARTE







A data está marcada. Será em algum mês de 2033.

O fascínio pelo pequeno planeta começou no momento em que um homo sapiens mais esperto notou, dentre os zilhões de pontos luminosos que se espalhavam por cima de sua cabeça nas noites sem nuvens, um de cor avermelhada, como se uma pequena brasa, elevada da tosca fogueira que aquecia sua pele pelo vento cortante da savana, tivesse ido parar no firmamento. Às vezes ela aparecia, outras não e seu caminho pelo escuro profundo parecia incerto. Por mais que desse tratos à bola, o nosso interessado primata não conseguiu encontrar um significado para aquele estranho ponto encarnado e resignou-se apenas a admirá-lo.

Mas, quando o Nilo passou a refletir o contorno das pirâmides, os astrônomos do faraó já haviam decifrado o movimento excêntrico daquela estrela vermelha e, pouco depois, os babilônios tinham anotado em suas tábuas de barro que ela perfazia 42 circuitos do zodíaco a cada setenta e nove anos. Logo, os gregos criaram seus deuses e a poesia mitológica deu-lhes um lugar no céu. O planeta cor de fogo só podia ser o impetuoso Aries, senhor da guerra. Aries virou Marte para os romanos e para os compêndios de astronomia.

Aos poucos, a poesia e a lenda cederam seu lugar à observação científica. Aristóteles verificou que o deus era apenas um corpo celeste e se situava muito além da Lua. Pela mesma época, os hindus chegavam a um cálculo aproximado de seu tamanho. Na Europa, as trevas da Idade Média tiveram de dissipar-se para que novos avanços científicos fossem retomados. No século XVII Tito Brache e Johannes Kepler determinaram sua distância da Terra e Gallileo Gallilei viu-o em rudimentar close-up no seu telescópio.


MANCHETE DE 1912
O invento de Galileu desenvolveu-se e, em 1877, outro italiano, chamado Giovanni Schiaparelli, trabalhando no mapeamento do planeta, distinguiu, pelas lentes poderosas do Observatório de Brera, linhas retas e extensas na sua superfície. Decidiu chamá-las de canali. E deu início à primeira martemania da história. Renomados cientistas, como o astrônomo americano Percival Lowell, jogaram mais lenha na fogueira, declarando que as figuras geometricamente perfeitas observadas em solo marciano só poderiam ser obra de mentes inteligentes. O mundo viveu um frenesi. A especulação mais verossímil era de que os “canais” haviam sido construídos para distribuir água oriunda das calotas polares, também visíveis nos telescópios. Água = Vida. Extraterrestres de todos os tamanhos e cores povoaram a imaginação de toda gente. Em 1898, o grande escritor inglês H. G. Wells lançou o livro The War of the Worlds (A Guerra dos Mundos), uma impressionante ficção sobre a invasão da Terra pelos alienígenas e a histeria tomou conta. Virado o século, entretanto, observações mais apuradas indicaram que os “canais” eram apenas desfiladeiros profundos, provavelmente causados por erosão eólica, e a mania acalmou-se.


ORSON WELLES NO RÁDIO - 1938
Para retornar em 1938.  Era o auge da Era do Rádio e a emissora americana CBS mantinha um programa líder de audiência chamado Mercury Theatre on the Air, uma encenação radiofônica de grandes obras literárias narradas por atores que soubessem passar o máximo de realismo com sua voz. Como Orson Welles. No dia 30 de outubro daquele ano, ele apresentou a dramatização de “A Guerra dos Mundos” e milhares de pessoas entraram em pânico, confundindo a ficção do relato com a realidade e acreditando que o texto lido por Welles com aterrorizante fidelidade era um noticiário transmitido ao vivo. Foi um pandemônio nos Estados Unidos. Orson Welles foi guindado à fama e Marte voltou à cena.

A Segunda Guerra desviou as atenções, mas, com o advento da Guerra Fria, a febre voltou. Entre 1949 e 1959, multiplicaram-se os depoimentos sobre a aparição de discos voadores. Tantos, que a Força Aérea americana instituiu uma investigação oficial do fenômeno, conhecida como Projeto Blue Book. Para a legião de crentes na existência dos  Unindentified Flying Objects (UFO’s), ou OVNI’s, se não eram russos, eles só poderiam vir de Marte.

A GUERRA DOS MUNDOS - FILME DE 1953
Surfando na onda, Hollywood botou a indústria cinematográfica para municiar os cinemas com produções voltadas para o assunto. Muitos não passaram de filmes B (como um delirante Abbot and Costello Go to Mars), mas alguns retiveram uma certa qualidade e viraram cult nos anos recentes, como The Day the Earth Stood Still (O Dia em que a Terra Parou), It Came from Outer Space (Veio do Espaço), Forbidden Planet (Planeta Proibido) e (mais uma vez o livro de H. G. Wells) The War of the World, de 1953.  No embalo, ficcionistas de nível como Ray Bradbury, Edgard Rice Burroughs e Robert Heinlein encheram mais os seus cofres com thrillers interplanetários focados no planeta encarnado.

Como não podia deixar de ser, a corrida espacial, mais científica que ficção e mais empolgante que a fábula, sepultou a visão romântica que se tinha de Marte. Com o homem chegando à Lua, o astro ficara mais perto. E mais ainda ficou quando as primeiras sondas pousaram em suas areias vermelhas. Nada havia de fantasmagórico nas fotografias tiradas pelas naves Viking, embora secretamente muita gente torcesse para que, de repente, a carinha verde de um marciano aparecesse diante das câmeras.

VIKING LANDER EM SOLO MARCIANO

Hoje, os probes Opportunity e Curiosity trafegam ágeis pela topografia marciana, enviando preciosos dados para a Terra. O planeta está mapeado e parece tão desprovido de vida quanto o nosso satélite natural. Parece. A certeza virá somente quando a caminhada, que esta semana começou com a viagem orbital do equipamento que levará os primeiros astronautas, a cápsula Orion, chegar ao seu destino, em algum momento de 2033.

Alyssa Carson, uma adolescente de 13 anos, já está se preparando para a grande aventura. Ela terá 32 anos então. Poderá ser o primeiro ser humano a pisar em Marte. E, finalmente, dirimir as dúvidas que assaltavam aquele homo sapiens que, na noite pré-histórica, primeiro notou um ponto vermelho no céu.


Oswaldo Pereira
Dezembro 2014

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

ETERNIDADE POR UM FIO








Ufa!

Acabei de virar a última página, a de número 1003 nesta edição de capa dura, de Edge of Eternity. A última, não só do livro, como da alentada trilogia The Century (O Século) criada por Ken Follett, o aclamado escritor galês que trocou sua carreira vitoriosa como criador de thrillers, como The Eye of the Needle  (O Buraco da Agulha), por outra mais vitoriosa ainda como historiador, iniciada no mundialmente reverenciado The Pillars of the Earth (Os Pilares da Terra).
Como já abordei a história de Follett na crônica que escrevi em dezembro do ano passado, quando acabei de ler o primeiro volume (Fall of Giants) da trilogia, não vou repeti-la.  Mas não posso deixar de comentar esta sua mais recente obra, que conclui um meticuloso trabalho de reconstituição de um dos séculos mais decisivos da História.
O Século XX, com duas guerras mundiais, vertiginosos avanços da ciência e palco de turbulências sociais modificadoras de vidas e comportamentos, superou tudo o que veio antes dele em termos de velocidade das mudanças e sua amplitude. De transatlânticos a naves espaciais, da metralhadora aos mísseis nucleares intercontinentais, do rádio de galena à TV em cores, da valsa ao funk, do telégrafo à internet, não deixou pedra sobre pedra.   Tabus, conceitos e valores inquestionáveis foram revirados sem remorso, produtos e mercados surgiram e desapareceram sem deixar suas marcas na poeira do esquecimento. Em cem anos, muitos ismos regeram a cena política, muitas fés prometeram seus céus particulares, muitos bálsamos trouxeram cura, muitas epidemias trouxeram a morte. O último ato do Segundo Milênio foi arrasador.

Isto tudo Follett, filtrando os acontecimentos pelo dia-a-dia de cinco famílias imaginárias, traz para o leitor, usando seus conflitos, seus sonhos e suas escolhas de vida como veículo. É evidente que, para isto funcionar, suas criaturas precisam ter o condão de estarem sempre presentes, ou até participar ativamente, na maior parte das ocorrências que mudaram o mundo no período. O que já valeu comentários, comparando-os a uma dinastia de Forrest Gumps, e críticas ao caráter às vezes raso e didático dos diálogos.   

Só posso dizer que as observações procedem. Por outro lado, entretanto, há que se aceitar esta técnica literária como a única capaz de produzir o efeito desejado por Follett, ou seja, enredar o fato histórico no personagem e repassá-lo ao leitor já emoldurado pelos seus batentes culturais ou emocionais e pelo impacto causado na sua psique. E digo mais. Neste último volume, Follett amenizou aquele aspecto bi dimensional dos diálogos, tornando-os mais redondos, mais carne e osso (principalmente carne nas inúmeras passagens de relacionamento sexual do livro), e com muito mais drama. Ao mesmo tempo, coloriu mais as cenas descritivas, algumas verdadeiramente magníficas.

Assim, foi mais fácil percorrer as mil paginas de “Eternidade por um Fio” (a péssima tradução do título para o Português), do que as duas mil dos volumes precedentes. Partindo da construção do Muro de Berlim e terminando com sua queda, os netos das cinco famílias criadas por Follett no início da saga (americana, inglesa, galesa, alemã e russa) vivem, convivem e interagem com as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos, o assassinato dos Kennedys e de Martin Luther King, a crise dos mísseis de Cuba, a repressão soviética aos movimentos na Hungria e na Tchecoslováquia, a luta pela liberdade na Alemanha Oriental, os meandros da Guerra Fria, a Guerra do Vietnam, a revolução musical dos anos sessenta, o summer of love e as drogas, Nixon & Watergate. Enfim, os monumentais terremotos sociais ocorridos entre 1961 e 1989. Há também um elegante epílogo, no qual uma das famílias assiste pela televisão o discurso de vitória de Barack Obama, em quatro de novembro de 2008. Um primoroso ponto final.

Um porém (há sempre um...) Assim como Ken Follett ignorou a imensa hecatombe da gripe espanhola no volume que cobria as décadas de 1910 e 1920, também agora passou por cima de outra tão ou mais trágica. Não há, em qualquer das 1003 páginas de Edge of Eternity uma SÓ menção ao flagelo da AIDS. Tenho de concluir que o famoso escritor galês possui memória curta para pandemias.

 
Oswaldo Pereira
Dezembro 2014

 
PS.: Para os que não leram o meu texto sobre o primeiro volume de “O Século”, Queda de Gigantes, ou quiserem relê-la, é só clicar no link abaixo.

http://obpereira.blogspot.com.br/2013/12/queda-de-gigantes.html

domingo, 30 de novembro de 2014

BINÔMIO ENCANTADO




No mundo da informação de varejo chamado Facebook, onde o dia a dia de centenas de milhões de pessoas enche uma nuvem cósmica, que depois desce em chuva rápida e frenética sobre pc’s, i-pads, i-phones, tablets e outros receptores, abundam fotos e filmes do binômio criança/cachorro.  

Talvez porque nesta semana meus netos americanos, para alegria geral da família, ganharam seu primeiro cãozinho, e também porque as cenas filmadas e fotografadas deles, e de todos os que aparecem na rede, mostrem ternos momentos de encantamento entre gente e bicho, tive a atenção chamada para o assunto.

Registros arqueológicos indicam que a transformação de cães selvagens em animais domésticos começou a ocorrer há 15.000 anos. Caninos com fome numa época de escassez aproximaram-se dos aglomerados humanos e trocaram sua agressividade por comida. E bingo! a relação com o “melhor amigo do homem” teve início pois, no intercâmbio, os animais passaram a guardar seus benfeitores com a mesma diligência que empregavam na defesa de suas matilhas.

É evidente, e nisto todos os veterinários concordam, que nem todo cachorro, e nem toda criança, nasceram para viver este binômio. Os muito agressivos (ambos) poderão tornar a vida familiar e a organização da casa num inferno, além de criar situações de eventual dano à integridade física de humanos e animais. E, sempre, pais precisam entender que, dependendo das idades de filho e filhote, os dois precisarão de cuidado, ensinamento e atenção.

Mas, superados e compreendidos estes requisitos fundamentais, observar o encantamento mútuo de uma criança e seu cachorro e de como se completam em afeição é um grande prazer. Pesquisas informam que um cão com treinamento básico tem a mesma percepção intelectual de um ser humano de dois anos de idade. Assim, pode compreender a hierarquia da família com que vive e a considerá-la como sua matilha, inclusive sua obrigação instintiva de defendê-la, como fizeram os primeiros lobos no Neolítico.

Como criança morando numa casa com um enorme terreno em Botafogo, eu tive um cachorro. Chamava-se Jupi e era um pinscher miniatura. E até hoje, passados quase setenta anos, eu me lembro da terna simbiose de um filho único vivendo num casarão com seu animal de estimação. Tanto das horas boas quanto da tristeza de sua morte, atropelado em plena Rua General Polidoro. Eu tinha oito anos e me deparei pela primeira vez na vida com uma coisa dolorida chamada perda. Mas, os quatro anos durante os quais eu e Jupi jogamos bola, atravessamos florestas imaginárias no quintal, fomos numa nave até o fim do mundo que ficava atrás do galinheiro e cruzamos juntos os mares da fantasia valeram. Ah! Se valeram...


JUPI & EU 1946




Oswaldo Pereira
Novembro 2014



terça-feira, 25 de novembro de 2014

PAPO DE BAR - LARANJAS & ADVOGADOS


A coisa deve estar mesmo feia...


Bem... TUDO está mesmo feio. Inflação, corrupção, futebol... De que você está falando?


















«Do Barco...»

«Barco? Que Barco, Antonia? Mais algum escândalo na costa brasileira?»

«Estou falando do PT. Já viu quanta gente está abandonando o barco nestas últimas semanas? A Marta Suplicy saiu atirando, o Zuenir Ventura deu para falar mal do Governo, o Gabeira metendo o pau na Dilma. Até parece que o partido perdeu as eleições... Há inclusive algumas alas partidárias tradicionais começando a divergir das orientações do Comitê Central. Isto é quase uma oposição dentro de casa»

«Também pudera, com um mega escândalo desses assombrando a turma, tocou o salve-se quem puder. Vai ser um tal de não vi, não sei de nada em profusão. Inda mais se os tribunais americanos entraram na dança e apontarem as baterias para este lado. Muita gente não vai poder botar o pé nos States durante um longo tempo... A não ser que a Dilma mande blindar seus correligionários»

«Acontece que, mesmo que ela queira, não dá mais. Abriram a caixa de Pandora, cara, e jogaram a chave fora. E a Dilma sabe que a sua única saída é apoiar as investigações e as ações penais. O doa a quem doer vai ter que valer desta vez. É a maneira que ela tem de tentar se desvincular do fato de que ela foi Presidente do Conselho da Petrobras no tempo da compra de Pasadena e de que todo este esquema gigantesco de corrupção também já rolava no tempo dela.  Tem de minimizar isto passando a imagem de que a Operação Lava-Jato tem o seu mais completo beneplácito»

«Mesmo que isto comece a atingir alguns quadros do Partido?  E a ameaça de perder o apoio parlamentar no Congresso? Lembre-se que o PT já esvaziou as CPI`s anteriores, pressionou para amenizar as penas do Mensalão. Eu não seria tão categórico. Já se encobriu muita coisa neste país de memória curta. O Natal já vem por aí. E depois férias e Carnaval. Será que o Petrolão vai sobreviver a estas catarses nacionais?»

«Vai, amigo. Desta vez, vai. O escândalo na Petrobras é o refluxo do Mensalão. A garganta e o esôfago da Nação não aguentam mais este amargor, esta farra obscena com o nosso dinheiro. Passamos do point of no return. Não tem volta»

«Você acha? Pois eu acho que isto vai morrer num ambiente parecido com o balanço do terror nuclear...»

«Como assim?»

«Lembra-se da Guerra Fria? Durante três décadas o mundo esteve à beira de uma Terceira Guerra Mundial. Só não aconteceu porque tanto a União Soviética como os Estados Unidos possuíam um enorme arsenal nuclear. Ambos os lados sabiam que qualquer iniciativa bélica de um deles teria como resposta a mesma dose de destruição em seu território. Ironicamente, este balanço de poderio destrutivo preservou a paz»

«E?...»

«Você acha mesmo que este tipo de negociata, favorecimentos, propinas, superfaturamentos e que tais aconteceram, e acontecem, somente na Petrobras e com o PT? Qualquer investigação mais profunda no relacionamento de empreiteiras com órgãos públicos de qualquer tamanho e de qualquer cor política tem grande chance de encontrar coisas semelhantes, espalhadas por este nosso vasto território. Quantos dos mais de cinco mil municípios brasileiros podem abrir sua contabilidade sem receio? Pois então. É esta corrupção endêmica que vai travar o processo investigatório. O tamanho da maracutaia é tão grande, tão onipresente e seu alcance tão disseminado que todos os esforços vão morrer na praia. É o balanço dos interesses. Tem muita gente fingindo apoiar as ações da Polícia Federal e, escondidinho, tentando apagar rastros e entrando em contato com bons conselheiros legais. É tempo dos laranjas e dos advogados...»

«Não posso acreditar nisso. Não quero... Tem de haver uma saída...»

«Pelo contrário. Temos é que fechar as saídas. Se não, todo mundo escapa. Parte da grana já foi para a Suíça...»


Oswaldo Pereira

Novembro 2014

sábado, 22 de novembro de 2014

NOVO PATAMAR?




Dois alunos foram flagrados com facas em suas mochilas escolares. Sua intenção era agredir um colega com quem haviam tido uma rixa dias antes. Isto aconteceu ontem, num dos mais conceituados e tradicionais estabelecimentos de ensino do Rio de Janeiro, o Colégio Cruzeiro. E os alunos tinham sete e oito anos. Colégio CRUZEIRO?! SETE e OITO ANOS!!?

E aí o medo bate. Será que estamos chegando a outro patamar?

Violência infantil não era novidade por aqui. Pivetes, trombadinhas, aviões do tráfico já encheram as páginas policiais dos meios de comunicação. Uma criança de onze anos, com um tresoitão pendurado na cintura de um bermudão maior que ela, era até considerada mais perigosa do que um bandido mais velho. Era mais assustadora e assustadiça, o dedo moleque mais propenso a puxar o gatilho, a consciência ainda virgem, pronta para ser estuprada sem remorso. Vinha de um mundo sem lei, sem família, sem professora, sem primeira comunhão, sem passado, sem futuro. Sua cartilha era o beco da favela, seu recreio o cheiro da cola, seu mestre o chefão da droga. Sem deus, sem sonhos.

Os dois mini-delinquentes de ontem não são nada disto. São membros de uma classe média alta, têm um lar, tênis da moda, TV em cores, ensino da melhor qualidade, comida na mesa, presentes de Natal, proteção e mimo. Como é que a violência crua penetra nessas cabeças? De onde vem esse instinto bárbaro que move uma criança a se armar e desejar ferir um colega?

Pode ser um caso isolado? Pode. Mas também pode não ser. Há tempos, escrevi uma crônica aqui neste blog, intitulada “Contos da Carochinha”, em que comparava a retórica da violência nos contos infantis do passado com a agressividade explícita dos joguinhos virtuais de hoje. E terminava com o seguinte parágrafo:

“Espero que seja só um achaque nostálgico. Entretanto, me aflige observar um aumento gradativo de agressividade entre os jovens. Os fatores devem ser vários, mas algo me sussurra que jogos nos quais a ação violenta é um objetivo em si têm um pouco de culpa no cartório. 

Com a palavra, o futuro.

Será que este futuro já chegou?


Oswaldo Pereira
Novembro 2014



quarta-feira, 19 de novembro de 2014

sábado, 15 de novembro de 2014

FUNDO DO POÇO






Há muita gente, inclusive colunistas de respeito, dizendo que chegamos ao fundo do poço. O escândalo da Petrobras já é, em termos do montante desviado e de amplitude de envolvidos, o maior episódio de corrupção nacional de todos os tempos. E olhe que estamos falando de um país recém-saído do espetáculo midiático que foi o processo do Mensalão, de um povo que convive com relatos de falcatruas esfregados diariamente em sua cara pela imprensa, das incontáveis denúncias de malversação do erário que saem pelos poros do tecido da sociedade brasileira.

Foram contabilizados, até agora, R$56 bilhões (para os que me ouvem nos Estados Unidos e na Europa, o equivalente a US$22 billion ou €16 mil milhões), desviados, propinados, lavados e enxugados em paraísos internacionais, por uma teia pegajosa composta por políticos, lobistas, funcionários, diretores, empresários, doleiros e outros profissionais do ramo. É estarrecedor imaginar que todo esse esquema, aparentemente vicejando impune nos corredores da maior e mais emblemática empresa do Brasil, passou despercebido de fiscais, dirigentes, conselheiros e auditores por tanto tempo. Quero contritamente acreditar no que dizem os colunistas. Que este seja mesmo o fundo do poço, o ponto final, o fim da linha. Não há mais estômago para aguentar outra dose destas. Mas, aqui em Pindorama, quem sabe?...

E a pergunta chave é: como conseguimos chegar até a este ponto? Quais são os ingredientes venenosos que cozinharam este caldo pútrido que escorre viscoso por todos os níveis de atividade, sejam eles públicos ou privados? Que vento é este que corrói o mais puro propósito, que afoga as consciências, que ceva a ganância e assassina o pudor?

Muitos vão dizer o que sempre ouço quando falo neste assunto: A corrupção existe em toda a parte, até no Vaticano. A roubalheira não é apanágio nosso... Concordo. Parece até que a desonestidade está no DNA do poder e da proximidade com o dinheiro. Mas, para mim, a diferença entre nós e o resto do mundo, além da escala desproporcionalmente grande da malandragem pátria, é o caráter endêmico do mal que nos assola.

Então, como viemos parar nesta situação? Acho que cada um de nós deve ter sua resposta, sua explicação. A minha baseia-se em dois fatos acontecidos comigo. Há muito, muito tempo.

Como já devo ter contado aqui neste blog, em 1957 (isto mesmo, galera, há cinquenta e sete anos), eu fui passar uma temporada nos Estados Unidos. Aí fiquei por deslumbrados três meses, a maior parte do tempo em Nova Iorque, que devorava com os meus olhos de adolescente. Quando voltei, relatando as maravilhas do mundo mágico ao Norte, expliquei que lá não havia a figura do vendedor de jornais. Os exemplares eram colocados em pilhas nas calçadas e os compradores simplesmente pegavam o seu e deixavam o montante correspondente numa caixa que ficava ao lado. O impacto nos meus amigos foi enorme. Como era possível isto? Quer dizer que ninguém deixava de pagar, ou levava dois e pagava um? Que absurdo...

Quando voltei a morar no Brasil em 1971, depois de passar sete anos na Itália e em Portugal, espantou-me o comportamento dos brasileiros no trânsito. Principalmente, nas estradas onde, a cada engarrafamento, a turma não hesitava em escapar pelo acostamento. De onde eu viera, isto era um crime de lesa-pátria, uma esperteza unanimemente condenável. Certa ocasião, observando com raiva surda este nefando procedimento numa estrada para Minas, verifiquei que, à frente, a Patrulha Rodoviária estabelecera um posto de controle. Antegozando a minha vingança, aguardei ansiosamente chegar até onde estavam os policiais e poder assistir ao doce espetáculo de ver os transgressores impedidos de prosseguir e punidos com a devida multa. Para minha incredulidade e profundo desencanto, vi, quando lá cheguei, que os guardas paravam os que estavam na mão correta e abriam passagem para a alegre turma dos ispertos.

Deseducação cívica e Impunidade.

Este coquetel letal vem, há mais de cinquenta anos, minando o organismo da sociedade e secando suas reservas morais. Há cinco décadas que observo este processo. Quase três gerações. Será que estamos mesmo no fim?...


Oswaldo Pereira
Novembro 2014













   

domingo, 9 de novembro de 2014

CIDADES QUE DÃO MÚSICA III






RIO DE JANEIRO


Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil
Cidade Maravilhosa, coração do meu Brasil...”
Cidade Maravilhosa. André Filho e Silva Sobreira. 1934.


Quando a expedição exploratória de Gaspar de Lemos, descendo a costa brasileira, passou em frente ao que parecia ser a foz de um rio, a extraordinária beleza da paisagem deslumbrou o coração curtido daqueles marinheiros - dois montes aconchegados na saída do delta, uma cintilante praia na outra ponta, as águas infinitamente azuis dos trópicos exalando o cheiro doce da maresia, o sol de verão dourando o verdor das suaves colinas.  Era o dia primeiro de janeiro do ano de 1502. O cartógrafo de plantão prontamente desenhou os contornos daquele acidente geográfico de mágico esplendor e deu sua certidão de batismo. Daí, e para todo o sempre, o lugar passou a ser chamado de Rio de Janeiro.


“Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudade
Rio, teu mar, praias sem fim
Rio você foi feito prá mim...”
Samba do Avião. Antonio Carlos Jobim. 1963.


Os navegadores portugueses, e uma legião de visitantes depois, chegaram ao Rio por mar. Mas, a partir da década de 1930, outro meio de transporte, tornado realidade pelo pioneirismo de homens como Alberto Santos-Dumont, dominou a cena. E passou a proporcionar uma das mais incríveis experiências visuais de uma viagem aérea – chegar ao Rio de Janeiro de avião. Você pode repetir isto centenas de vezes, de manhã, quando o brilho do amanhecer tropical reflete na pedra dos morros, de tarde, com o pincel do poente desenhando em carmim um céu abençoado, de noite com a luz da cidade refletindo as estrelas. E você jamais deixará de se apaixonar pelo poema de uma cidade aninhada entre o mar e as montanhas, abrindo seus braços morenos para o viajante que chega.


“Moça do corpo dourado do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar...”
Garota de Ipanema. Vinícius de Morais e Antonio Carlos Jobim. 1962.


Na língua dos indígenas que habitavam a região antes do Descobrimento, ipanema significava água ruim ou água sem peixes. Mas, quem iria querer saber de peixes, quando a famosa garota passou, seu ritmo de ingenuidade sensual na cadência da brisa que vinha das ondas, colorindo a tarde menina e desatando a inspiração galopante nos dois marmanjos que, entre um chopp e outro, viram-na e viram-se golpeados pela epifania do momento. A genialidade de Vinícius e Tom Jobim transformou-a na canção mais tocada em todo o mundo. Cinco anos antes, os dois também haviam participado de outra descoberta, ali mesmo em Ipanema, num apartamento de classe média. Uma batida diferente de violão, uma voz suave, quase em surdina, uma letra falando de amor e felicidade e, com a iluminada cumplicidade de João Gilberto, nascia o fenômeno da Bossa Nova.


“Chego ao Rio de janeiro
Terra do samba, da mulata e do futebol
Vou vivendo o dia a dia, embalado na magia
Do seu Carnaval
Explode coração, na maior felicidade...”
Peguei um Ita no Norte (samba enredo da Escola de Samba do Salgueiro). Demá Chagas, Arizão, Bala, Guaracy e Celso Trindade. 1993.



A maior festa do planeta. Como descrever de outra maneira uma catarse de milhões de pessoas, mesmerizadas pelo batuque do samba, pelo colorido das fantasias, pelo canto alegre das marchinhas, pela energia primal que vem das saturnálias romanas, dos bals masqués de Veneza, dos entrudos medievais. Centenas de milhares de turistas acorrem ao chamado e se juntam aos nativos nesta celebração. Há quem vá aos bailes dos clubes, há quem se una aos blocos das ruas, há quem dance nas areias das praias, na subida dos morros ou simplesmente se adorna com uma fantasia singela e se deixa levar pelo fascínio do Carnaval Carioca. Ou participa, como espectador ou integrante, nas arquibancadas ou no asfalto, do maior espetáculo da Terra: o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.


“Vento do mar no meu rosto e o sol a queimar, queimar
Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar
Rio de Janeiro, gosto de você
Gosto de quem gosta, deste céu, deste mar, desta gente feliz...”
Valsa de Uma Cidade. Antonio Maria e Ismael Neto. 1950.


Em 1565, os portugueses voltaram. Desta vez para ficar. As primeiras casas brancas de cal foram surgindo nas margens da baía. Os tamoios logo usaram seu dicionário para dar-lhes nome: cari (branca) oca (casa) e o gentílico estava estabelecido. O pequeno aglomerado foi crescendo à sombra das colinas verdes e aos afagos do clima ameno. Despertou cobiça, enfeitiçou os franceses de Villegagnon, atraiu os navios corsários de Duclerc e Duguay-Trouin, foi invadida, foi resgatada e, em 1756, foi alçada ao seu posto de direito – Capital do Brasil. Então veio o Rei que daqui não queria mais sair, seu filho que ficou e deu o grito da independência. Aqui nasceram a República, o samba, o Maracanã, a mulata e o malandro, a tanga e o frescobol, a caipirinha e a feijoada. A nossa História, com agá maiúsculo escreveu-se por aqui, no Terreiro do Paço, no Theatro Municipal, na Cinelândia, no Palácio do Catete, na Quinta da Boavista, nas pedras portuguesas de Copacabana. Em 1960, o cetro foi para Brasília. Mas a Majestade ficou.


“Um cantinho, um violão
Esse amor, uma canção
Prá fazer feliz a quem se ama
Muita calma prá pensar, e ter tempo prá sonhar,
Da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo...”
Corcovado. Antonio Carlos Jobim. 1960.


Braços abertos sobre a Guanabara. E sobre todos nós, cariocas de berço e de adoção. O morro e a estátua, lá colocada em 1912, num dueto sublime com o Pão de Açúcar, formam uma das paisagens mais conhecidas em todo o mundo, um ícone que sussurra promessas de um eterno verão, de aguas mornas quebrando suas ondas em areias finas, do encantado pôr-do-sol na ponta do Arpoador, das tardes em frente ao mar, de um cantinho, um violão e de alguém cantando seu amor eterno por esta cidade morena...



Oswaldo Pereira
Novembro 2014

PS.: Esta é a terceira crônica da série "Cidades que Dão Música". As duas anteriores foram sobre minhas outras duas paixões: San Francisco e Lisboa. Para quem não leu ou quiser ler de novo, aí abaixo estão os links para acessá-las. 


http://obpereira.blogspot.com.br/2012/05/cidades-que-dao-musica-1.html

http://obpereira.blogspot.com.br/2013/10/cidades-que-dao-musica-2.html