domingo, 10 de fevereiro de 2013

DÁDIVA








Nunca se saberá ao certo. Se for verdade que todas as mais geniais invenções nasceram de algo que deu errado, fica-se imaginando qual sequencia de atos falhos determinou que o homem esmagasse as primeiras uvas, deixasse o líquido fermentar, e decidisse bebê-lo.
Qualquer que tenha sido o motivo, acaso, descuido ou sorte, essa feliz coincidência, que deve ter ocorrido por volta de 7000 a.C. à sombra do Cáucaso, mudou dramaticamente a maneira de a humanidade tratar duas de suas funções mais básicas – beber e comer.
 Atravessando a Ásia Menor, levada pela marcha da civilização, a prática aprimorou-se e foi conquistando mesas e hábitos, dos mais simples aos mais sofisticados, dos mais profanos aos mais sagrados. Deu origem a, pelo menos, um deus mitológico, regou vários rituais, tornou-se indispensável em todas as celebrações, das bacanálias à Última Ceia.
Hoje, seja na mais modesta tasca ou no mais real dos salons, colorindo copos de vidro ou cálices de cristal com cores que vão do suave amarelo ao carmim rútilo, todo vinho tem sempre sua história para contar.
Porque, das planícies de onde nasceu até estes primórdios do terceiro milênio, o processo descoberto talvez sem querer passou por muitos aperfeiçoamentos. Atualmente, é uma arte, cujos artífices procuram o melhor casamento entre cepa, solo e sol, e fazer com que dele surja a verdadeira voz do terroir, a inquestionável alma do vinhedo. E, é só o começo.
A partir daí, o caráter final do líquido que vai ser aprisionado nas garrafas e entregue a um consumidor, cujo ávido paladar pode estar do outro lado do mundo, vai ser produto de várias escolhas. Ele poderá ser um varietal egoísta em sua individualidade, ou um concerto de castas e famílias de uvas, em combinações incalculáveis. Poderá estagiar por períodos diversos em contato com madeiras de outros países. Dependendo dos caprichos do tempo, talvez nem tenha nome em anos maus. Viajará muito ou pouco, bem ou mal. Será guardado com carinho e preceito ou abandonado à sua sorte.
Estas são as histórias que ele contará, a você, no momento em que tirar a rolha, deixar que ele respire o novo ar; no ponto em que ele vazar voluptuosamente para dentro do seu copo; no instante em que você sentir seu perfume, examinar sua cor; na hora em que ele tocar os seus lábios.  
E, se o que ele tiver para contar o fizer sorrir, feche os olhos e agradeça a todos os seus deuses pela dádiva.  

Oswaldo Pereira
Fevereiro 2013

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