Quando fiz 13 anos, em
meio a caixas de soldadinhos, bolas de futebol, revólveres de brinquedo e times
de futebol de botão, eu ganhei um livro. Um só, não. Dois. Eram os dois grossos
volumes d´OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES, última obra infantil de Monteiro
Lobato e meu primeiro contato com ele e com a literatura. Foi só depois que
todos foram embora, na casa revirada do avesso para desespero de minha mãe, que
os achei. Estavam soterrados debaixo da tralha festiva de caixas semi despedaçadas
e papéis de embrulho, com manchas de Coca Cola e gordura desenhando sua
decoração de fim de festa. Haviam sido relegados ao ostracismo instantâneo dos
presentes indesejáveis. Livros, junto com roupas, eram tudo o que não
interessava e um olhar de enfado ao recebê-los era reprimido com inaudito
esforço por severas admoestações paternas.
Não me lembro o que me
inspirou. Quem sabe um raio cósmico vindo de uma estrela longínqua, varando o
ar quente de uma primavera carioca, abrandado pela noite quieta. Mas,
ajeitando-me na cama, peguei o primeiro volume – que larguei somente quando
virei a última página e olhei para a manhã clareando Copacabana. No início de
uma adolescência de revelações, eu havia definitivamente recebido uma das boas.
Eu havia sido enfeitiçado
pela palavra escrita, pela magia que operava ao transmitir uma imagem, para
fazer meus olhos verem, não um batalhão de caracteres negros sobre um fundo
branco, mas um bosque no Peloponeso, meu nariz sentir, não o cheiro do papel
impresso ou da cola que unia as páginas, mas o de um carneiro assando num
braseiro nos campos da Tessália. Os diálogos não eram mais parágrafos com um
traço horizontal à frente. Eu podia OUVIR Pedrinho contando histórias do Sítio
para um Hércules encantado, a voz grave do Visconde, os gritinhos da Emília. Magia.
A segunda revelação veio
anos mais tarde, sem o superlativo que a adolescência empresta a tudo, mas com
o choque desagradável de uma traição. Ainda no tempo da TV em preto e branco,
uma emissora, não me lembro se já era a Globo, resolvera encenar os contos de
Lobato. E, de repente, eu me vi frente a frente com os personagens que me
haviam acompanhado durante anos, fervilhando em minha mente pela leitura dos
livros e corporificados pela minha imaginação. Para meu horror, não eram os
mesmos! Representados por atores
escalados pela direção do programa, aqueles não eram os meus companheiros de
aventuras; o Picapau Amarelo que aparecia na telinha não era o cenário que
nascera nos meus treze anos. A história até se parecia com a que eu lera, mas
não tinha as mesmas nuances, a mesma perspectiva mágica e não era vivida como
eu a imaginara. Aos pouco, acabrunhado pelo embuste de que me sentia vítima,
fui percebendo a intrincada mecânica da comunicação entre o escritor e o leitor.
Escrever não é uma arte
gráfica. O escritor não oferece uma fotografia, nem pincela seus escritos numa
tela. Ele pinta, ou tenta pintar, com palavras. Ele descreve aquilo que entende
ver, e tenta fazê-lo da maneira mais fiel que pode. Fiel à sua visão. Ele
concebe uma cena, e depois a codifica em palavras, numa transmutação de ideias
em caracteres, de ação em gramática, de imagem em sintaxe. Usemos o exemplo
mais simples. Na hora em que ele escreve: “O ceú estava azul”, ele certamente
está visualizando, ou até mesmo vendo, um determinado céu e um determinado
azul. É o céu dele, que só ele vê naquele momento ou que guardou num escaninho
da memória de uma experiência visual sua, antiga ou recente.
Assim transmutada em
palavras, a imagem concebida pelo escritor, depois lida e entendida, vai de
encontro à mente do leitor para ser descodificada. O cenário aí, entretanto,
vai ser montado por outro arquivo de memórias, por outras experiências
sensoriais, por céus e azuis diferentes, talvez de outros paises e outras
épocas, que compõem o imaginário do leitor. Dificilmente, os panoramas serão
iguais.
Partindo para mensagens
mais complexas e mais abstratas, como expressões de sentimentos, definições de personalidades
e de propósitos, dissecação de emoções, o afastamento entre as duas realidades,
a do escritor e a do leitor, pode agravar-se.
Já presenciei discussões entre pessoas do mesmo nivel cultural e informativo em
que defendiam apaixonadamente compreensões diametralmente opostas de um mesmo
livro. Ou o lugar comum do “gostei do livro mas detestei o filme”, e
vice-versa.
Não há como ser diferente.
Não existe, e não existirá nunca, a descrição inviolável, o fraseado
fotograficamente fiel, a transmisão, por palavras, da imagem pura. Isso
pertence ao reino dos cineastas, dos escultores clássicos, dos fotógrafos e dos
pintores ultra-realistas. Qualquer escritor sabe, sempre, que a imagem
acalentada por ele e transmitida com fidelidade canina ao que ele chama de
real, será explodida, distorcida, estilhaçada e retorcida milhares de vezes e
nunca será a mesma nos olhos da imaginação de cada leitor.
Mas, o que realmente
interessa, é a transmissão em si. A mola mestra que impele algumas pessoas a
escrever é o desejo febril de compartilhar sensações concebidas nos volteios de
seus neurônios, mesmo se através de um meio tão traiçoeiro como as palavras. E
torcer para que pelo menos o fundo, se não a forma, o sentido, se não o
cenário, sejam processados pelo leitor na mesma medida e no mesmo alcance da
mensagem que ele tanto sonha repartir.
Por isso, desde aquela
noite morna de Copacabana, sigo fascinado pela magia dos livros e pela arte da
escrita. Fascinação que, de uns tempos para cá, transbordou os diques de minha
censura e acabou por permitir a edição de dois livros. E, sem conseguir
estancar seu fluxo, a criação de alguns contos que reuni num site. O desejo, entretanto, continua
intenso e urgente, a ponto de burlar mais uma vez certos cânones pessoais, como
o de nunca encher a paciência de ninguém, e me impelir irresisitivelmente a
enviar meus escritos a amigos resignados, pelo que se convencionou chamar de correio eletrônico.
A proposta, afinal, é
simples. Se tiverem tempo, leiam. Se gostarem, guardem para vocês ou divulguem.
Se ainda puderem, comentem. Se não tiverem tempo ou vagar, ainda é mais
simples. Selecionem a mensagem e cliquem em “lixeira”. Dura menos de dois
segundos e ninguém ficará chateado.
Oswaldo Pereira
Fevereiro 2012
Interessante que você deve ter lido o livro na mesma época que eu, que li com 8 anos e depois com 9, 10, 11, 12, 13 , 14, e 15 e depois parei pois pegava mal um rapazola de 16 anos chorar ao acabar de ler um livro infantil....
ResponderExcluirLinda sua reflexão sobre as letras, amigo!!!
Grande abraço!!