terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

PALAVRA ESCRITA


Quando fiz 13 anos, em meio a caixas de soldadinhos, bolas de futebol, revólveres de brinquedo e times de futebol de botão, eu ganhei um livro. Um só, não. Dois. Eram os dois grossos volumes d´OS DOZE TRABALHOS DE HÉRCULES, última obra infantil de Monteiro Lobato e meu primeiro contato com ele e com a literatura. Foi só depois que todos foram embora, na casa revirada do avesso para desespero de minha mãe, que os achei. Estavam soterrados debaixo da tralha festiva de caixas semi despedaçadas e papéis de embrulho, com manchas de Coca Cola e gordura desenhando sua decoração de fim de festa. Haviam sido relegados ao ostracismo instantâneo dos presentes indesejáveis. Livros, junto com roupas, eram tudo o que não interessava e um olhar de enfado ao recebê-los era reprimido com inaudito esforço por severas admoestações paternas.

Não me lembro o que me inspirou. Quem sabe um raio cósmico vindo de uma estrela longínqua, varando o ar quente de uma primavera carioca, abrandado pela noite quieta. Mas, ajeitando-me na cama, peguei o primeiro volume – que larguei somente quando virei a última página e olhei para a manhã clareando Copacabana. No início de uma adolescência de revelações, eu havia definitivamente recebido uma das boas.

Eu havia sido enfeitiçado pela palavra escrita, pela magia que operava ao transmitir uma imagem, para fazer meus olhos verem, não um batalhão de caracteres negros sobre um fundo branco, mas um bosque no Peloponeso, meu nariz sentir, não o cheiro do papel impresso ou da cola que unia as páginas, mas o de um carneiro assando num braseiro nos campos da Tessália. Os diálogos não eram mais parágrafos com um traço horizontal à frente. Eu podia OUVIR Pedrinho contando histórias do Sítio para um Hércules encantado, a voz grave do Visconde, os gritinhos da Emília. Magia.

A segunda revelação veio anos mais tarde, sem o superlativo que a adolescência empresta a tudo, mas com o choque desagradável de uma traição. Ainda no tempo da TV em preto e branco, uma emissora, não me lembro se já era a Globo, resolvera encenar os contos de Lobato. E, de repente, eu me vi frente a frente com os personagens que me haviam acompanhado durante anos, fervilhando em minha mente pela leitura dos livros e corporificados pela minha imaginação. Para meu horror, não eram os mesmos!  Representados por atores escalados pela direção do programa, aqueles não eram os meus companheiros de aventuras; o Picapau Amarelo que aparecia na telinha não era o cenário que nascera nos meus treze anos. A história até se parecia com a que eu lera, mas não tinha as mesmas nuances, a mesma perspectiva mágica e não era vivida como eu a imaginara. Aos pouco, acabrunhado pelo embuste de que me sentia vítima, fui percebendo a intrincada mecânica da comunicação entre o escritor e o leitor.

Escrever não é uma arte gráfica. O escritor não oferece uma fotografia, nem pincela seus escritos numa tela. Ele pinta, ou tenta pintar, com palavras. Ele descreve aquilo que entende ver, e tenta fazê-lo da maneira mais fiel que pode. Fiel à sua visão. Ele concebe uma cena, e depois a codifica em palavras, numa transmutação de ideias em caracteres, de ação em gramática, de imagem em sintaxe. Usemos o exemplo mais simples. Na hora em que ele escreve: “O ceú estava azul”, ele certamente está visualizando, ou até mesmo vendo, um determinado céu e um determinado azul. É o céu dele, que só ele vê naquele momento ou que guardou num escaninho da memória de uma experiência visual sua, antiga ou recente.

Assim transmutada em palavras, a imagem concebida pelo escritor, depois lida e entendida, vai de encontro à mente do leitor para ser descodificada. O cenário aí, entretanto, vai ser montado por outro arquivo de memórias, por outras experiências sensoriais, por céus e azuis diferentes, talvez de outros paises e outras épocas, que compõem o imaginário do leitor. Dificilmente, os panoramas serão iguais.

Partindo para mensagens mais complexas e mais abstratas, como expressões de sentimentos, definições de personalidades e de propósitos, dissecação de emoções, o afastamento entre as duas realidades,  a do escritor e a do leitor, pode agravar-se. Já presenciei discussões entre pessoas do mesmo nivel cultural e informativo em que defendiam apaixonadamente compreensões diametralmente opostas de um mesmo livro. Ou o lugar comum do “gostei do livro mas detestei o filme”, e vice-versa.

Não há como ser diferente. Não existe, e não existirá nunca, a descrição inviolável, o fraseado fotograficamente fiel, a transmisão, por palavras, da imagem pura. Isso pertence ao reino dos cineastas, dos escultores clássicos, dos fotógrafos e dos pintores ultra-realistas. Qualquer escritor sabe, sempre, que a imagem acalentada por ele e transmitida com fidelidade canina ao que ele chama de real, será explodida, distorcida, estilhaçada e retorcida milhares de vezes e nunca será a mesma nos olhos da imaginação de cada leitor.

Mas, o que realmente interessa, é a transmissão em si. A mola mestra que impele algumas pessoas a escrever é o desejo febril de compartilhar sensações concebidas nos volteios de seus neurônios, mesmo se através de um meio tão traiçoeiro como as palavras. E torcer para que pelo menos o fundo, se não a forma, o sentido, se não o cenário, sejam processados pelo leitor na mesma medida e no mesmo alcance da mensagem que ele tanto sonha repartir.

Por isso, desde aquela noite morna de Copacabana, sigo fascinado pela magia dos livros e pela arte da escrita. Fascinação que, de uns tempos para cá, transbordou os diques de minha censura e acabou por permitir a edição de dois livros. E, sem conseguir estancar seu fluxo, a criação de alguns contos que reuni num site. O desejo, entretanto, continua intenso e urgente, a ponto de burlar mais uma vez certos cânones pessoais, como o de nunca encher a paciência de ninguém, e me impelir irresisitivelmente a enviar meus escritos a amigos resignados, pelo que se convencionou chamar de correio eletrônico.

A proposta, afinal, é simples. Se tiverem tempo, leiam. Se gostarem, guardem para vocês ou divulguem. Se ainda puderem, comentem. Se não tiverem tempo ou vagar, ainda é mais simples. Selecionem a mensagem e cliquem em “lixeira”. Dura menos de dois segundos e ninguém ficará chateado.

Oswaldo Pereira
Fevereiro 2012

Um comentário:

  1. Interessante que você deve ter lido o livro na mesma época que eu, que li com 8 anos e depois com 9, 10, 11, 12, 13 , 14, e 15 e depois parei pois pegava mal um rapazola de 16 anos chorar ao acabar de ler um livro infantil....

    Linda sua reflexão sobre as letras, amigo!!!

    Grande abraço!!

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