No
limiar do século XX, o imenso Império russo nada mais era do que uma floresta
de galhos desidratados e árvores crestadas, em cujo solo um tapete de folhas
secas esperava apenas uma centelha para deflagrar um incêndio de proporções
catastróficas. Esta centelha surgiria sob a forma de um homem obstinado,
carismático e messiânico. Seu nome era Vladimir Ilyich Ulyanov.
Vladimir
era o terceiro filho de um casal extraordinário. Seu pai, Ilya Nikolaievitch,
nascera numa família de criados e, não fosse sua diligência e ambição, estaria
destinado ao mesmo destino modesto de seu círculo familiar. Mas, graças a uma
incansável dedicação aos estudos, conseguiu chegar à Universidade de Kazan e formar-se
como Professor. Eventualmente, viria a tornar-se um importante diretor geral de
escolas regionais, não só ascendendo à classe média como, ao ter recebido por
mérito um título da Ordem de São Vladimir, à pequena nobreza. Sua mãe, Maria
Alexandrovna Blank, filha de uma sueca e de um alemão, tinha sido
primorosamente educada pelos pais, ambos provenientes de duas afluentes
sociedades europeias.
Dos
dois, Vladimir herdou uma inteligência acima da média e, com a confortável
situação financeira de berço, o direito ao ingresso na melhor educação
disponível na época e no lugar onde moravam. O espírito inquieto nascera com
ele. E essa permanente indagação pela razão de viver desabrochou numa
formidável disposição para o confronto com o mundo que o cercava no momento em
que duas tragédias familiares abateram-se sobre ele. A primeira foi a repentina
morte do pai, em 1886, quando Vladimir tinha apenas 16 anos. A segunda, a
condenação à morte, e posterior execução pelos tribunais czaristas, do seu
irmão mais velho, Aleksandre, em seguida à captura de uma célula de
conspiradores contra o regime de que era integrante.
Essas
duras perdas, principalmente a de “Sasha”, o irmão que idolatrava, serviram,
entretanto, para endurecer sua mente e temperá-la no caldo de inquietação
revolucionária que escorria por entre várias camadas da sociedade russa. No
meio universitário, a corrente elétrica dessa inquietação veio apanhá-lo, assim
que entrou para a mesma escola onde seu pai estudara. Paralelamente ao brilho
intelectual, sua incontida agitação logo o transformou num líder estudantil e
um comandante de vozes que gritavam contra a opressão palaciana. A influência
da memória de seu pai e intervenções de sua mãe livraram-no várias vezes da
cadeia, mas não conseguiram impedir sua expulsão da Universidade de Kazan. Por
essa época, o jovem Ulyanov já lera Das
Kapital. A ideia da luta de classes como meio para o progresso social, a
ascensão do proletariado e a derrota do capitalismo penetrou fundo nas suas
convicções, formando a base que serviria para apoiar seu ativismo político.
Em
setembro de 1889, resume a obra de Karl Marx n’ O Manifesto Comunista e começa a exercer sua influência nos
diversos movimentos subterrâneos que proliferavam numa Rússia em crescente
ebulição. O ano de 1893 o encontra em São Petersburgo, usando seu especial
talento organizador para estabelecer células revolucionárias que seriam o
embrião dos futuros soviets. Mas aí, a polícia o apanha e, em 1897,
vai para a Sibéria. São 11 meses de prisão, às margens do Rio Lena. Tempo para
refinar sua estratégia e se preparar para a grande luta à frente.
Ao
ser solto, vai para o exílio na Alemanha. Fora de seu país, a agitação dos
expatriados chegava ao rubro. Em Munique, funda um jornal, Iskra (centelha, em russo) e escreve seus editoriais usando um pseudônimo,
N. Lenin, inspirado no rio que
banhava a cidade siberiana onde ficara. O jornal, contrabandeado para a Rússia,
torna-se um símbolo de resistência à opressão e catapulta Lenin para o centro
do movimento. Quando, em 1903, acontece o congresso do Partido Operário
Social-Democrata Russo em Londres, sua liderança racha a organização
partidária. Comandando a ala autodenominada majoritários
(bolsheviques em russo), que
defende a luta armada como caminho para a revolução, derrota os minoritários (mencheviques), que adotavam uma linha mais branda.
A
partir daí, com a tragédia do Domingo
Sangrento manchando de sangue a neve da praça Dvortsovaya, não há mais como
frear a História. Lenin está pronto. A centelha vai incendiar um país
inteiro.
(Continua)
Oswaldo Pereira
Novembro 2017