Portugal vai às urnas. Daqui a duas semanas, acontecem as eleições legislativas que, no presente regime parlamentarista, determinam a possibilidade política de o Primeiro-Ministro, que é o Chefe do Governo, permanecer no cargo. Pelas últimas sondagens, é uma das mais apertadas disputas dos tempos recentes, o que acende uma efervescência nacional em torno das propostas e dos programas dos candidatos. Como em qualquer democracia moderna, debates televisivos abundam entre os postulantes, sendo dissecados, logo após seu término, por uma legião de analistas. A pauta de assuntos levada a debate é extensa, especialmente num país que tenta se realinhar com as austeras regras do Mercado Comum Europeu.
De todos estes
assuntos, no entanto, um surge como crucial, cujas alternativas de tratamento
apresentadas pelos contendores principais, o PDS e o PS, podem definir as
preferências do eleitorado. A Previdência Social.
Em 2005, por
ter-me dedicado profissionalmente a esta área durante década e meia, fui
convidado a elaborar um dicionário de termos previdenciários no Brasil. Um
trabalho de extenuante de pesquisa e oriental paciência. Para a parte introdutória do
trabalho, eu preparei um longo texto, em que procurei dar uma noção de perspectiva
do conceito de Previdência Social, sua evolução e seu possível desenvolvimento
futuro. Futuro que hoje parece ter chegado. Partes desse texto estão a seguir.
Se não tiverem nada mais interessante para fazer, experimentem lê-lo.
“Previdência
é uma atividade humana.
Informalmente,
a prática da previdência remonta ao aparecimento do homo sapiens. Mesmo na sua
forma mais primitiva, o homem já convivia com a noção de previdência. No
momento em que o habitante das cavernas, que da caça tirava o necessário para
sua subsistência e a do seu núcleo familiar, separava algumas partes do animal
abatido e as guardava para consumo futuro, para os dias de inverno ou tormenta,
em que não pudesse sair para caçar, ele já estava praticando previdência.
Com
a roda da evolução em marcha, o homem foi, aos poucos, reunindo-se em grupos
sociais cada vez maiores, alguns se organizando o suficiente para estabelecer
relações hierárquicas bastante definidas. Essas relações acabaram por criar
sistemas de distribuição de bens, de troca e de moeda, de subordinação e de trabalho.
Com o passar dos séculos, a maneira de se auferir o sustento ficou cada vez
menos decorrente de uma ação simples e direta, como a caça individual, e mais
em função de uma relação de trabalho, onde indivíduos recebiam uma compensação,
paga por alguém a quem se prestava determinada tarefa.
Nas
primeiras grandes civilizações, embora existisse a figura do “funcionário”
(arquitetos, médicos, guerreiros, empregados públicos), a maior parte dos
trabalhos era desenvolvida por povos escravizados em guerras de conquista. Assim
foi na Antiguidade, do Egito aos romanos. A Idade Média já vê o enriquecimento
da relação de trabalho, com a profusão de artesãos, menestréis, cavaleiros
mercenários, a serviço do senhor feudal.
Mas
é só no século XVII que se começa a formalizá-la. No entanto eram, ainda,
condições desumanas, sem horários, folgas, idade mínima, e nem idade máxima. Não
havia limite etário para parar de trabalhar. O “empregado” parava quando suas
condições físicas não mais o permitissem exercer suas tarefas, fosse por
doença, ou porque envelhecia.
Aos
poucos, esses “aposentados”, sem vigor físico, idosos, doentes e sem condições
básicas de subsistência, foram povoando as ruas e vielas das grandes capitais
da época. A prática da mendicância por uma multidão cada vez maior, com suas
vertentes de violência e perturbação da paz social, foi aumentando o grau de
preocupação das autoridades constituídas até que, em 1601, a Coroa inglesa
editou a Lei dos Pobres, que instituía a distribuição de uma refeição diária
aos que não tivessem condições mínimas de sustento. Era a primeira formalização
de um ato previdenciário.
A
partir de então, embora lentamente, os governos europeus começaram a montar
seus sistemas públicos de previdência. Paternalistas, elitistas, às vezes
inócuos, outras vezes corrompidos, esses sistemas foram-se aperfeiçoando, à
medida que se aperfeiçoava também a noção do Estado de Direito, da cidadania,
impulsionados pelos ideais das revoluções francesa e americana. Em meados do
século XIX, aflorava a noção do Estado Previdenciário, isto é, o Estado como
responsável por todos os aspectos da vida de seus cidadãos, como ensino, saúde,
segurança e previdência. Corporificado na Alemanha de Otto von Bismark, o
conceito difundiu-se por todo o mundo ocidental. Sua manifestação mais intensa
acabou por eclodir na instauração do governo comunista na Rússia, em 1917. Aí,
o Estado obscurece toda e qualquer iniciativa privada e torna-se o único ator
da redistribuição de riquezas e responsável pela vida do cidadão, do berço ao túmulo.
De qualquer forma, as sociedades, em grau maior ou menor, promoveram, nas
primeiras décadas do século XX, a glorificação do Welfare State.
Nas
últimas três décadas, entretanto, vem-se observando a perda de capacidade dos
governos de se constituírem em provedores únicos do que se convencionou chamar
de aposentadoria digna. E isto decorre do seguinte.
Os
sistemas oficiais, ou públicos, de previdência social trabalham em base caixa. Isto
quer dizer que os benefícios concedidos em um determinado
período são pagos com as contribuições recolhidas naquele mesmo período. Assim,
a geração que trabalha contribui, não para pagar sua aposentadoria no futuro,
mas para sustentar as aposentadorias de quem já parou de trabalhar – uma
geração transferindo recursos para aquela que a antecedeu no mercado de trabalho.
Este tratamento orçamentário da previdência tem fundamento na falta de vocação
dos governos em lidar com grandes fundos de capitalização, principalmente, com
recursos recolhidos durante um mandato para utilização em administrações futuras.
A história é pródiga em exemplos de reservas que nunca chegaram a cumprir seu
papel, sendo gastas muito antes em projetos governamentais de todo o tipo. O
caso mais conhecido é o da construção de Brasília, com dinheiro acumulado pelos
institutos de previdência criados nos anos 1930.
De
todo o modo, regimes em base caixa podem funcionar, e, mesmo, têm funcionado
até recentemente. Só que, como são estruturados na repartição simples do fluxo
de recursos, pressupõem uma relação favorável, e estável, aposentados/contribuintes.
Os técnicos em previdência preconizam que é indispensável uma relação mínima de
3 contribuintes para 1 aposentado, para que o sistema funcione a contento. Em
todo o mundo, no entanto, a relação contribuinte/aposentado decresce
continuamente.
Isso
decorre do fenômeno planetário do envelhecimento da população. Graças às
descobertas no campo da medicina preventiva e curativa, e à penetração dos
meios de informação, que veiculam noções de cuidados pessoais, de higiene e de
alimentação, o homem passou a viver mais. À medida que a tecnologia avança, já
não é mais um sonho tão distante a clonagem de órgãos para transplantes, a
erradicação de doenças tidas como mortais e da extensão da vida humana a
limites hoje apenas vislumbrados.
A
conquista da vida longa, ou melhor, o retardamento da morte com a fruição de
uma vida útil, saudável e prazerosa por mais tempo, é um dos grandes sonhos da
humanidade, desde o aparecimento da espécie. Seus efeitos, entretanto, nos
regimes previdenciários de repartição simples são desastrosos e determinarão a
sua incapacidade de prover, exclusivamente, a aposentadoria digna.
É o
fim do Welfare State.
Com
a deterioração contínua e inexorável da relação contribuinte/aposentado, os
diversos sistemas de previdência social, em todo o mundo, têm estudado fórmulas
para poder “fechar a conta”. Na maioria dos casos, o processo passa por duas
soluções alternativas: aumentar as contribuições ou diminuir os benefícios. Nenhuma
delas do agrado popular.
Aumentar
as contribuições significa aumentar a carga tributária das empresas e dos cidadãos.
É difícil encontrar, nos dias de hoje, uma sociedade disposta a pagar mais impostos.
Principalmente, se essa carga adicional não vai beneficiar diretamente a quem
contribui, e sim redistribuir sua contribuição para quem já se aposentou. Mais
difícil ainda é, nos regimes democráticos, encontrar políticos que aceitem
apoiar iniciativas tão impopulares junto aos eleitores.
Diminuir
os benefícios, ou tornar mais restritivas as condições para sua concessão,
ainda representa uma alternativa mais viável para alguns políticos, haja vista
que atinge uma camada menos vocal, pelo menos até agora, da população votante. Dentro
do conceito de diminuição de benefícios, tanto se pode falar de redução do
valor em si, como do agravamento das condições mínimas para obtê-los. Esta
última alternativa tem sido mais considerada, principalmente no que tange à
elevação do limite etário. Com o aumento da expectativa de vida, aumenta-se a
carência da idade. Vale dizer, se você vive mais, trabalhará mais.
Pode-se
inferir, assim, que a Previdência Social, no mundo inteiro, prepara-se para
grandes reformas. Evidentemente, dependendo do processo político de cada país,
as mudanças ensejarão grandes debates nacionais.”
Oswaldo Pereira
Setembro 2015
Parabéns e obrigado pela magnífica aula sobre um assunto tão atual!
ResponderExcluirValeu, amigão.
ExcluirMais alguns séculos e previdência social será uma especie de lenda sobre os sistemas arcaicos usados pelas organizações dispostas a atender os destinos e os designos da "humanidade".
ResponderExcluirAssim como instituições como "Estado", "Governo", "País". O Homem Social terá se reinventado até lá.
ExcluirSeu texto é muito bom. Como sempre claro, cheio de velocidade. Vale apena ler de novo.
ResponderExcluirMerci bien.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObrigada por tantos conhecimentos históricos e não só, tão bem transmitidos!
ResponderExcluirObrigado, Isabel. Bom saber que você segue este modesto blog.
ExcluirSempre atual e eloquente. Abraço
ResponderExcluirObrigado, José.
ExcluirAprendi muito.Abraço
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