segunda-feira, 21 de setembro de 2015

PREVIDÊNCIA SOCIAL



Portugal vai às urnas. Daqui a duas semanas, acontecem as eleições legislativas que, no presente regime parlamentarista, determinam a possibilidade política de o Primeiro-Ministro, que é o Chefe do Governo, permanecer no cargo. Pelas últimas sondagens, é uma das mais apertadas disputas dos tempos recentes, o que acende uma efervescência nacional em torno das propostas e dos programas dos candidatos. Como em qualquer democracia moderna, debates televisivos abundam entre os postulantes, sendo dissecados, logo após seu término, por uma legião de analistas. A pauta de assuntos levada a debate é extensa, especialmente num país que tenta se realinhar com as austeras regras do Mercado Comum Europeu.

De todos estes assuntos, no entanto, um surge como crucial, cujas alternativas de tratamento apresentadas pelos contendores principais, o PDS e o PS, podem definir as preferências do eleitorado. A Previdência Social.

Em 2005, por ter-me dedicado profissionalmente a esta área durante década e meia, fui convidado a elaborar um dicionário de termos previdenciários no Brasil. Um trabalho de extenuante de pesquisa e oriental paciência. Para a parte introdutória do trabalho, eu preparei um longo texto, em que procurei dar uma noção de perspectiva do conceito de Previdência Social, sua evolução e seu possível desenvolvimento futuro. Futuro que hoje parece ter chegado. Partes desse texto estão a seguir. Se não tiverem nada mais interessante para fazer, experimentem lê-lo.

“Previdência é uma atividade humana. 

Informalmente, a prática da previdência remonta ao aparecimento do homo sapiens. Mesmo na sua forma mais primitiva, o homem já convivia com a noção de previdência. No momento em que o habitante das cavernas, que da caça tirava o necessário para sua subsistência e a do seu núcleo familiar, separava algumas partes do animal abatido e as guardava para consumo futuro, para os dias de inverno ou tormenta, em que não pudesse sair para caçar, ele já estava praticando previdência.

Com a roda da evolução em marcha, o homem foi, aos poucos, reunindo-se em grupos sociais cada vez maiores, alguns se organizando o suficiente para estabelecer relações hierárquicas bastante definidas. Essas relações acabaram por criar sistemas de distribuição de bens, de troca e de moeda, de subordinação e de trabalho. Com o passar dos séculos, a maneira de se auferir o sustento ficou cada vez menos decorrente de uma ação simples e direta, como a caça individual, e mais em função de uma relação de trabalho, onde indivíduos recebiam uma compensação, paga por alguém a quem se prestava determinada tarefa.

Nas primeiras grandes civilizações, embora existisse a figura do “funcionário” (arquitetos, médicos, guerreiros, empregados públicos), a maior parte dos trabalhos era desenvolvida por povos escravizados em guerras de conquista. Assim foi na Antiguidade, do Egito aos romanos. A Idade Média já vê o enriquecimento da relação de trabalho, com a profusão de artesãos, menestréis, cavaleiros mercenários, a serviço do senhor feudal.

Mas é só no século XVII que se começa a formalizá-la. No entanto eram, ainda, condições desumanas, sem horários, folgas, idade mínima, e nem idade máxima. Não havia limite etário para parar de trabalhar. O “empregado” parava quando suas condições físicas não mais o permitissem exercer suas tarefas, fosse por doença, ou porque envelhecia.

Aos poucos, esses “aposentados”, sem vigor físico, idosos, doentes e sem condições básicas de subsistência, foram povoando as ruas e vielas das grandes capitais da época. A prática da mendicância por uma multidão cada vez maior, com suas vertentes de violência e perturbação da paz social, foi aumentando o grau de preocupação das autoridades constituídas até que, em 1601, a Coroa inglesa editou a Lei dos Pobres, que instituía a distribuição de uma refeição diária aos que não tivessem condições mínimas de sustento. Era a primeira formalização de um ato previdenciário.

A partir de então, embora lentamente, os governos europeus começaram a montar seus sistemas públicos de previdência. Paternalistas, elitistas, às vezes inócuos, outras vezes corrompidos, esses sistemas foram-se aperfeiçoando, à medida que se aperfeiçoava também a noção do Estado de Direito, da cidadania, impulsionados pelos ideais das revoluções francesa e americana. Em meados do século XIX, aflorava a noção do Estado Previdenciário, isto é, o Estado como responsável por todos os aspectos da vida de seus cidadãos, como ensino, saúde, segurança e previdência. Corporificado na Alemanha de Otto von Bismark, o conceito difundiu-se por todo o mundo ocidental. Sua manifestação mais intensa acabou por eclodir na instauração do governo comunista na Rússia, em 1917. Aí, o Estado obscurece toda e qualquer iniciativa privada e torna-se o único ator da redistribuição de riquezas e responsável pela vida do cidadão, do berço ao túmulo. De qualquer forma, as sociedades, em grau maior ou menor, promoveram, nas primeiras décadas do século XX, a glorificação do Welfare State.

Nas últimas três décadas, entretanto, vem-se observando a perda de capacidade dos governos de se constituírem em provedores únicos do que se convencionou chamar de aposentadoria digna. E isto decorre do seguinte.

Os sistemas oficiais, ou públicos, de previdência social trabalham em base caixa. Isto quer dizer que os benefícios concedidos em um determinado período são pagos com as contribuições recolhidas naquele mesmo período. Assim, a geração que trabalha contribui, não para pagar sua aposentadoria no futuro, mas para sustentar as aposentadorias de quem já parou de trabalhar – uma geração transferindo recursos para aquela que a antecedeu no mercado de trabalho. Este tratamento orçamentário da previdência tem fundamento na falta de vocação dos governos em lidar com grandes fundos de capitalização, principalmente, com recursos recolhidos durante um mandato para utilização em administrações futuras. A história é pródiga em exemplos de reservas que nunca chegaram a cumprir seu papel, sendo gastas muito antes em projetos governamentais de todo o tipo. O caso mais conhecido é o da construção de Brasília, com dinheiro acumulado pelos institutos de previdência criados nos anos 1930.

De todo o modo, regimes em base caixa podem funcionar, e, mesmo, têm funcionado até recentemente. Só que, como são estruturados na repartição simples do fluxo de recursos, pressupõem uma relação favorável, e estável, aposentados/contribuintes. Os técnicos em previdência preconizam que é indispensável uma relação mínima de 3 contribuintes para 1 aposentado, para que o sistema funcione a contento. Em todo o mundo, no entanto, a relação contribuinte/aposentado decresce continuamente. 

Isso decorre do fenômeno planetário do envelhecimento da população. Graças às descobertas no campo da medicina preventiva e curativa, e à penetração dos meios de informação, que veiculam noções de cuidados pessoais, de higiene e de alimentação, o homem passou a viver mais. À medida que a tecnologia avança, já não é mais um sonho tão distante a clonagem de órgãos para transplantes, a erradicação de doenças tidas como mortais e da extensão da vida humana a limites hoje apenas vislumbrados.

A conquista da vida longa, ou melhor, o retardamento da morte com a fruição de uma vida útil, saudável e prazerosa por mais tempo, é um dos grandes sonhos da humanidade, desde o aparecimento da espécie. Seus efeitos, entretanto, nos regimes previdenciários de repartição simples são desastrosos e determinarão a sua incapacidade de prover, exclusivamente, a aposentadoria digna.

É o fim do Welfare State.

Com a deterioração contínua e inexorável da relação contribuinte/aposentado, os diversos sistemas de previdência social, em todo o mundo, têm estudado fórmulas para poder “fechar a conta”. Na maioria dos casos, o processo passa por duas soluções alternativas: aumentar as contribuições ou diminuir os benefícios. Nenhuma delas do agrado popular.

Aumentar as contribuições significa aumentar a carga tributária das empresas e dos cidadãos. É difícil encontrar, nos dias de hoje, uma sociedade disposta a pagar mais impostos. Principalmente, se essa carga adicional não vai beneficiar diretamente a quem contribui, e sim redistribuir sua contribuição para quem já se aposentou. Mais difícil ainda é, nos regimes democráticos, encontrar políticos que aceitem apoiar iniciativas tão impopulares junto aos eleitores.

Diminuir os benefícios, ou tornar mais restritivas as condições para sua concessão, ainda representa uma alternativa mais viável para alguns políticos, haja vista que atinge uma camada menos vocal, pelo menos até agora, da população votante. Dentro do conceito de diminuição de benefícios, tanto se pode falar de redução do valor em si, como do agravamento das condições mínimas para obtê-los. Esta última alternativa tem sido mais considerada, principalmente no que tange à elevação do limite etário. Com o aumento da expectativa de vida, aumenta-se a carência da idade. Vale dizer, se você vive mais, trabalhará mais.

Pode-se inferir, assim, que a Previdência Social, no mundo inteiro, prepara-se para grandes reformas. Evidentemente, dependendo do processo político de cada país, as mudanças ensejarão grandes debates nacionais.”


Oswaldo Pereira
Setembro 2015



12 comentários:

  1. Parabéns e obrigado pela magnífica aula sobre um assunto tão atual!

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  2. Mais alguns séculos e previdência social será uma especie de lenda sobre os sistemas arcaicos usados pelas organizações dispostas a atender os destinos e os designos da "humanidade".

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    1. Assim como instituições como "Estado", "Governo", "País". O Homem Social terá se reinventado até lá.

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  3. Seu texto é muito bom. Como sempre claro, cheio de velocidade. Vale apena ler de novo.

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  4. Obrigada por tantos conhecimentos históricos e não só, tão bem transmitidos!

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    1. Obrigado, Isabel. Bom saber que você segue este modesto blog.

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